Distanciamento social sob olhares de fotógrafos vira exposição
Estar sempre em movimento, em busca da melhor imagem, costuma ser pré-requisito para o trabalho dos fotógrafos, sendo as lentes de suas câmeras a única barreira entre seus olhos e o mundo. Com a pandemia, tudo mudou, menos a criatividade, que serviu de combustível para continuarem ativos. De quebra, essas fotos produzidas no período mais desafiador do mundo contemporâneo trazem reflexões e até poesia. Projetos inspiradores reuniram profissionais de vários países.
Por aqui, merece destaque o Obs-cu-ra, idealizado pelo carioca Bruno Alencastro, diretor de fotografia na agência Canarinho, que partiu de uma técnica simples e milenar, a câmera escura, para produzir belas imagens. A primeira foi feita na janela do quarto andar de seu apartamento, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Considerada a ancestral da câmera fotográfica, a técnica surgiu no século 5 a.C., mas foi somente no renascimento que seu uso se propagou, como auxiliar para o desenho e para a pintura. Para construir o dispositivo, é necessário um ambiente sem nenhuma iluminação e com apenas um pequeno orifício que possibilite a entrada da claridade externa. Pelo princípio físico da propagação retilínea da luz, os raios são projetados na parede oposta à abertura de entrada, de forma invertida. “Olhamos para o passado para entender o que estávamos vivendo, como a gripe espanhola. Eu fui até o princípio da formação da imagem para tentar me conectar com isso de alguma maneira e achei nessa linguagem uma forma de falar sobre esse momento”, explica Alencastro. Foi repensando sobre seu espaço e trabalho que ele olhou para as paredes de seu apartamento. No início, o processo serviu como uma terapia, uma oportunidade para treinar os modelos analógicos e rudimentares da formação de imagem, já que sua especialidade é a fotografia digital. Após ver o potencial das imagens, teve certeza de que era um trabalho que deveria ser compartilhado. “Aquela projeção sobre mim, minha mulher e nosso cachorro mexeu comigo. Dentro de casa, ela era ao mesmo tempo claustrofóbica, falando tanto sobre o mundo de cabeça para baixo. Na hora, tive a certeza de que eu precisava levar esse trabalho adiante”, conta.
Primeiro, o carioca convidou amigos fotógrafos que, por meio de videochamadas e mensagens, combinavam como realizariam os cliques. O desafio se espalhou e, ao todo, 80 fotógrafos de 24 países participaram do projeto. A partir de uma janela, que para muita gente foi a única conexão com a rua, a série questiona a fronteira e o abismo entre os mundos exterior e interior, o público e o privado, a liberdade e o confinamento. “Fui atrás de pessoas que falavam a mesma língua e tive a grata surpresa de minha expectativa ser mais do que superada. Consegui não só me conectar com os pares, pessoas próximas, como também com profissionais que eu sempre admirei e respeitei no campo da fotografia”, diz.
As imagens também são janelas para a reflexão. “Obs-cu-ra tocou nesse ponto de olhar para si e repensar trajetórias, caminhadas profissionais, além de perceber o lugar onde mora”, comenta, acrescentando o pensar sobre o fazer na fotografia, particularmente a improvisação. “A imagem sai desse lugar de uma estética apurada e dá lugar a retratos que circulam além de sua qualidade técnica, mas que fazem sentido porque nos conectam”, avalia. “Eu nunca tinha trabalhado tão diretamente a fotografia a partir dessa lógica de solidariedade, com um papel até terapêutico de trazer boas sensações e saúde mental às pessoas.”
Incertezas bem parecidas motivaram a fundação inglesa The Wellcome Trust a convidar cinco profissionais para produzirem uma resposta fotográfica à pergunta: “Como você, sua família e seus amigos estão lidando com a ansiedade relacionada à covid-19?”. Os resultados vão de um solitário aniversário em Johannesburgo até a suspensão das restrições na Nova Zelândia. A fotógrafa britânica Hayleigh Longman, que se mudou temporariamente para a casa de sua mãe no início da pandemia, comenta: “Achei o tema bastante difícil de retratar inicialmente. Embora muito do meu trabalho seja pessoal, geralmente tento abordar as coisas de uma forma mais conceitual e lúdica”.
Foi conversando com seus vizinhos, amigos, familiares e integrantes de sua comunidade que ela encontrou um caminho. “Juntos, todos nós tínhamos sido atingidos por um novo modo de vida, pelos contratempos e pela separação de nossos entes queridos. Então, tentei falar com o máximo de pessoas ao meu redor para ver como elas estavam se sentindo”, conta Hayleigh. Para ela, cada pessoa lida, sente e expressa os efeitos da ansiedade de uma maneira singular, e incorporar essa pluralidade na série imagética era essencial. Uma de suas imagens – uma mão segurando, em forma de leque, tecidos que tinham de ser limpos, dobrados e guardados de maneira específica – retrata o padrasto, que sofre de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), intensificado durante o confinamento. Para Hayleigh, esse é um exemplo de como o impacto de estar em casa pode desencadear outros gatilhos e emoções.
“Definitivamente me fez olhar e pensar sobre como isso estava afetando todos ao meu redor”, avalia a fotógrafa, que em outras imagens adotou a cerca da casa como elemento simbólico e registrou, a distância, os vizinhos. Para ela, a fotografia foi fundamental para sua mente enfrentar o momento vivido de forma mais criativa e leve. “Com esse espaço livre vem uma ternura e um cuidado extras que tentei demonstrar no meu trabalho ao usar a câmera fotográfica da maneira mais autobiográfica que pude durante este momento”, conclui Hayleigh. Em tempos de imagens compartilhadas de maneira frenética pelas mídias sociais, a pandemia parece ter sido, também, a oportunidade de registrar narrativas simples, unir e compartilhar experiências.
A valorização de coisas cotidianas, como abraçar e apertar as mãos, aparece no trabalho do sul-africano Lindokuhle Sobekwa. Ele conta que ter famílias numerosas morando em casas pequenas e o fornecimento deficiente de energia elétrica agravavam a ansiedade. Ainda assim, era preciso buscar escapismos, como brincar de criar fantoches com as sombras da luz de velas, presentes em seus registros. Acostumado a cobrir conflitos, o espanhol Manu Brabo estranhou o perigo batendo a sua porta e levou seus medos por sua saúde e pela do pai para as fotos do projeto. Em Nova York, a fotógrafa Cait Oppermann conta que ela e a parceira só quebraram o confinamento quando aconteceu o assassinato de George Floyd, causa que “rivalizava com a covid-19 em termos de urgência e ameaça à vida humana”, conta ela, acrescentando que ambas se juntaram ao protesto munidas de máscaras e álcool em gel. No projeto, suas imagens destacam a tensão do momento. Já Tatsiana Chypsanava revela que o lockdown trouxe flashbacks da infância na Bielorrússia, com as consequências de Chernobyl, em 1986. A fotógrafa relata que ela e a filha de 13 anos interiorizaram tão bem o mantra “ficar em casa, salvar vidas” que o difícil foi voltar à convivência social. Por isso, sua escolha foi retratar a flexibilização, na Nova Zelândia, o que trouxe o próprio conjunto de ansiedades. Em tempos de imagens compartilhadas de maneira frenética pelas mídias sociais, a pandemia parece ter sido, também, a oportunidade de valorizar narrativas simples, revisitar o passado e dividir experiências.