Seda enquadrada: explore a exposição de Salvatore Ferragamo
Uma das matérias-primas naturais mais antigas da humanidade, a seda tem presença marcante também na história da Salvatore Ferragamo. O criador italiano começou a desenvolver seus primeiros lenços estampados, ao lado dos icônicos sapatos, ainda na década de 1950. Mas foi a partir dos anos 1970, com a paixão de sua filha Fulvia Ferragamo pelo assunto, que a produção tomou corpo. Veio dela o trabalho de criar a história dos foulards da marca, por meio de uma intensa pesquisa iconográfica que resultou em um precioso arquivo de estampas. Parte desse acervo ganha mostra especial no Museo Salvatore Ferragamo, em Florença, aberta até abril de 2022. L’Officiel conversou com Stefania Ricci, diretora da Fundação Ferragamo, para saber mais sobre a exposição.
L’OFFICIEL Como foi esse processo de imersão criativa e de pesquisa no arquivo de sedas da Ferragamo?
STEFANIA RICCI Foi um processo longo porque temos um arquivo muito grande – e que está em contínuo crescimento. Para esta exposição, nós recolhemos materiais que estavam divididos em diversas partes da marca. O arquivo de seda, por exemplo, fica principalmente em Milão, pois é usado como referência para as novas coleções. Depois do falecimento de Fulvia Ferragamo, em 2018, decidimos reunir as peças que estavam em Milão e Florença em um único acervo. Tratando-se de tanto material, foi um grande trabalho de preparação – organizando, documentando, conferindo o estado de preservação das peças e agrupando as estampas por seus motivos. Há também mais de mil álbuns com recortes e projetos, muitos sem data e não sequenciais, que criam uma forma de colagem do trabalho de criação desses lenços.
L’O Esse acervo todo é traduzido na exposição?
SR A partir do trabalho de organização, usamos esses elementos para desenvolver a instalação e o conceito da mostra, que ficou nas mãos de Judith Clark (curadora e expografista inglesa). Tivemos a preocupação de não criar uma exposição repetitiva, com diversas salas parecidas apenas com lenços de seda. Por isso, usamos nosso arquivo como fonte, mas também criamos relações com o que circunda a moda: o mundo da cultura, da arte, da natureza. Da mesma forma que Fulvia fazia quando se inspirava, colecionando livros e objetos diversos de antiquários, mercados de rua. Principalmente quando ela viajava para a China e o Japão – lugares onde essa distinção e essa riqueza estética são vistas não só nos museus mas também na rua.
L’O Como nasceu a ideia de colaborar com a dupla chinesa Sun Yuan e Peng Yu?
SR Normalmente dedicamos a primeira sala das mostras a artistas contemporâneos, uma forma de introduzir o público no conceito da exposição. A escolha de Sun Yuan e Peng Yu foi uma maneira de homenagear o lugar onde a seda se originou. Penso que eles fazem quase um manifesto de ligação entre Ocidente e Oriente, mostrando o papel desse tecido tão precioso, que possibilitou inúmeras trocas culturais entre os dois lados. Por meio de sua arte conceitual, eles criaram, com total liberdade, esse foulard, que foi estampado seguindo uma técnica chinesa tradicional. O desenho é quase um catálogo de animais míticos chineses e ocidentais, uma forma de mostrar que as raízes dessas histórias estão próximas. Com esse paralelo, vemos que a união das culturas se encontra nos mitos, que são respostas filosóficas criadas pelo homem para responder aos mistérios da vida.
L’O Quais as dificuldades em fazer uma exposição baseada em objetos históricos tão delicados quanto lenços de seda?
SR É verdade que um foulard é como um quadro, devido a seu formato, por isso mais adaptável para ser exposto em museu. Mas também é um objeto feito para se mover, portanto a ideia de emoldurá-lo não nos agradava. Criamos um sistema onde cada lenço foi costurado por um especialista de conservação têxtil, para não estragar a seda, em um plano macio e não rígido. Afinal, não é um quadro, mas sim uma peça que você veste. Outra dificuldade é que, infelizmente, muitos lenços que não eram guardados com o objetivo de arquivo histórico, mas como referência de produto, eram mantidos dobrados. Os lenços de seda não podem ser guardados assim, pois, depois de anos, é quase impossível remover as marcas. Em nosso acervo, por exemplo, essas peças são mantidas suspensas, cobertas com papel de proteção especial. Claro, a escolha também foi um problema, pois gostávamos de todos! Tivemos de renunciar a alguns lindíssimos que não se adequavam ao conceito da mostra. Escolhemos os temas mais presentes na produção de Ferragamo: principalmente os animais exóticos – com preferência para os felinos, mas não só; os pássaros, que, com seu movimento, possibilitam composições muito ricas; e as flores. E um tema muito único nosso, que são os sapatos, inspirados nas peças produzidas por Salvatore Ferragamo.
L’O Falando como historiadora da arte, como você enxerga a evolução das estampas representadas na seda por Ferragamo? Essas peças podem ser tratadas como pequenas obras de arte?
SR É sempre muito difícil distinguir arte e artesanato, mas, por exemplo, como vemos no trabalho de Sun Yuan e Peng Yu, uma obra de arte deve refletir sobre o mundo contemporâneo, e muitas vezes possui uma função provocativa. Afinal, a arte toca os grandes temas do momento e da humanidade, enquanto a moda tem claramente uma função comercial. Isso não significa que o trabalho dos artesãos tenha menos valor, pois dentro de seu ofício eles são grandes artistas. Mas cada um tem uma abordagem diversa, e nós tentamos mostrar na exposição que existe uma grande história por trás desses objetos, ainda que sejam produzidos em série. E que seguem uma importante pesquisa, mostrando as mudanças culturais pelo olhar de Ferragamo.
L’O Quão importante é para a Ferragamo revisitar seu patrimônio, repensá-lo e mostrá-lo ao público?
SR Somos uma marca histórica, sem dúvida. Considerando desde quando Salvatore chegou a Florença, já se vão quase 100 anos. E essa história é contada por meio de um acervo incrível. Hoje, todas as marcas fazem um arquivo, mas aqui a ideia veio do fundador, para que as peças pudessem ser usadas como referência e não por autoglorificação. Poderíamos ser um museu ligado à marca mas, para mim, o museu é um instrumento de diálogo da marca com o território. Nós estamos em Florença, então entramos na oferta museológica da cidade. E também criamos essa ligação contínua entre passado, presente e futuro. Partimos sempre da tradição mas chegamos ao contemporâneo, o que nos possibilita sair das limitações impostas pelo mundo comercial, como ao mostrar o trabalho provocativo dos artistas Sun Yuan e Peng Yu. Penso também que temos uma função quase social, de valorizar artistas jovens e fotógrafos que infelizmente não poderiam emergir de outra forma. Porque, caso contrário, quem se importa se só dissermos “veja como somos bons”? Claro que isso pode interessar a um público específico, mas parece-me que temos a possibilidade de ter um diálogo mais interessante. E os jornalistas de moda têm também esse dever de abordar temas que vão além da moda, pois ela tem uma importância que vai muito além de um vestido que se vê na vitrine: a moda é antropologia, sociologia, é um conto sobre a vida da pessoa que a vestiu; é o trabalho de quem está por trás de sua produção e as tecnologias. A moda é uma forma de falar sobre todos esses temas por meio de uma simples peça de roupa.
Imagens de arquivo Salvatore Ferragamo