Walter Salles fala de suas próprias memórias com a família Paiva
Além do livro! Sem pender para o melodrama, Walter Salles explica como usou suas memórias da família Paiva para dar forma ao filme "Ainda Estou Aqui".
Longe dos sets desde 2012 – o seu último filme foi “Na Estrada”, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes –, Walter Salles embarcou no projeto de “Ainda Estou Aqui” após o lançamento do livro de Marcelo Rubens Paiva, em 2015. Nesse tempo, foram 15 versões de script feitas por Murilo Hauser e Heitor Lorega até chegar ao que o mundo está vendo nas telas. Consagrado como o melhor roteiro da 81a edição do Festival de Veneza, ele vem sendo ovacionado por onde passa e foi o representante brasileiro no Oscar 2025 - ganhando a estatueta de melhor filme internacional - além de uma indicação de Fernanda Torres como melhor atriz, repetindo o feito da mãe, Fernanda Montenegro, 25 anos depois de “Central do Brasil”, também de Salles. Ela vive Eunice, a mãe de Marcelo Rubens Paiva, que precisa se reinventar após o desaparecimento do marido, Rubens (Selton Mello).
O entusiasmo com o filme, que começou em Veneza, parece não ter fim. E foi no Lido, onde acontece o festival de cinema mais antigo do mundo, que Walter Salles conversou com exclusividade para L’Officiel Hommes.
“Estou muito feliz com o que está acontecendo porque a gente faz filmes como quem escreve cartas ao mar, às vezes eles são lindos, às vezes não. É tão bom ver que um filme pode repercutir. Acho que se isso está acontecendo, primeiramente, é pela importância da história relatada com profunda maturidade e beleza pelo Marcelo no seu livro e roteirizada com tanto amor pelo Murilo Hauser e pelo Heitor Lorega. É um longa-metragem sobre uma família, feito por uma família de cinema. Então ele ser recebido amorosamente também é um presente”, diz o diretor. Amigo de Marcelo e de uma das irmãs dele, Ana Lúcia, desde criança, “Ainda Estou Aqui” é um resgate também da memória afetiva de Walter Salles. “Tentamos entender o livro e traduzi-lo cinematograficamente, ou seja, adequá-lo ao roteiro. E nisso o livro foi um extraordinário ponto de partida. O roteiro tem que dialogar com o livro, não pode ser uma transcrição. O livro do Marcelo daria uma série de dez horas facilmente, de tão brilhante que é, e pela dimensão do mergulho existencial e humano que oferece. Por outro lado, tinha a experiência pessoal, a minha lembrança deles e da casa, o fato de ser informado por muito do que ouvi nas discussões políticas. Descobri correntes musicais; a Tropicália para mim virou uma evidência dentro daquele lar. O filme é uma confluência do pessoal, mas com o livro do Marcelo a tiracolo.”
Salles reforça que os detalhes da residência só foram possíveis graças a um trabalho de equipe. “Lembrava da moradia, mas se não fosse pelos elementos trazidos pela Analu [irmã de Marcelo] e pelo livro, não teria conseguido reproduzi-la fielmente. O cinema só existe no coletivo, e esse projeto, desde o começo, só existe por causa do coletivo.”
A narrativa tem start em 1970, quando a ditadura brasileira já deixava um rastro de medo, entretanto, as pessoas tentavam viver normalmente. Chama a atenção a luminosidade da família Paiva, que ao longo da trama vai sumindo à medida que os acontecimentos mudam a história de cada um. “O filme é sobre o que uma família poderia ter sido. Ele é sobre o que aquela família era, mas também o que ela poderia ter sido. Se ele fosse apenas um retrato nostálgico, ele não seria leal ao livro e nem à Eunice”, explica.
A figura de Rubens Paiva, mesmo quando está ausente, se faz presente em toda a história. Pergunto a Salles como ele construiu esse enredo. “Existem as memórias pessoais que eu tinha do Rubens. Naquele lugar coexistiam turmas de idades diferentes, e o elo entre elas era o Rubens. Interessante porque a Eunice era de família italiana, mas quem tinha esse tipo de comportamento, que é descrito como sendo ‘italiano’, era o Rubens. Ele se sentia imediatamente confortável com a garotada. Eu tinha 13 para 14 anos e ele conversava comigo de igual para igual. Ele fazia a mesma coisa com o Marcelo. Essa presença vital era importante para mim. A recordação que tenho dele é forte por isso.”
O diretor conta como usou as suas lembranças para conduzir a trama. “Uma das memórias que tenho era de dez garotos no banco traseiro do Opel que o Rubens tinha. Ele levava a gente para o Festival da Canção, onde o Tony Tornado cantou BR3. Rubens era um cara que gostava disso. Ele vivia intensamente. Essa presença impactante era fundamental para depois sentir a ausência desse personagem. E a partir do momento em que ele sai da história, a própria gramática do filme se altera. Deixa de ser câmera na mão e passa a ser descrito com planos fixos ou com plano sequência, em que a dilatação do tempo é muito maior. Você começa a ver os personagens um pouco mais de longe.”
As transformações emocionais dos Paiva são uns dos pontos relevantes de “Ainda Estou Aqui”, e que tem feito o filme arrancar aplausos e lágrimas mundo afora. Walter Salles explica como trabalhou esses anseios. “Quando a casa é invadida pelos policiais militares à paisana, a família não pode mais falar abertamente, e isso é o oposto do que acontecia naquele local. Aquela era uma habitação onde todo mundo falava tudo o que queria. Ao contrário da minha casa, por exemplo. Ali [no endereço dos Paiva] o debate era livre. Isso cessou de um momento para o outro. Os momentos exteriores, a luz, aquele contato entre as pessoas tornaram-se mais subjetivos. O não dito e a troca de um olhar passaram a ser mais importantes. E tudo isso, e esse sentimento de ausência, tem que nos carregar até o final.” Walter também comenta como o passado e o presente se encontram no roteiro. “A ausência de um corpo, como é exibido no filme, é uma tortura psicológica eterna. Porque você não consegue marcar um antes e um depois. Então, era importante que isso fosse entendido no filme. E a beleza do livro é que tudo o que é trágico passa pelo humano, pelo existencial; como a Eunice sente tudo isso, como os filhos sentem. Esse é o milagre do livro do Marcelo. É essa possibilidade de nos permitir sentir o que é passar por um governo autoritário e quais as consequências disso, no pessoal, que se mistura com o político. É o olhar para o político através do humano. Quando a gente começou o projeto nunca pensei que o filme pudesse falar ao mesmo tempo com o passado e com o presente.”
Salles lembra ainda de uma frase que Fernanda Montenegro dizia para ele enquanto filmavam “Central do Brasil”. “Ela me ensinou um monte de coisas – e sempre pontuava, com serenidade: ‘meu filho, a gente não tem saída fora do humano e do existencial’. Ou seja, as histórias, por mais trágicas que sejam, só valem a pena serem contadas se passam pelo humano e pelo existencial”, finaliza.