Moda

A Origem de Coven - Liliane Rebehy celebra três décadas de sucesso

A estilista Liliane Rebehy comemora três décadas da marca que criou, a Coven, retornando ao início de tudo com a coleção Origem

Liliane Rebehy
Liliane Rebehy

A inquieta e empreendedora Liliane Rebehy já tinha vendido sanduíche natural e bijuteria quando resolveu fazer algumas peças de tricô, empolgada com a máquina Elgin que pertencia a uma prima que morava, assim como sua família, na pequena cidade de Patrocínio, no interior de Minas Gerais. Eram meses que antecederam seu ingresso no curso de Arquitetura, em Belo Horizonte. Já na capital, o que deveria ser mais um passatempo acabou roubando seu coração e tomando as rédeas do seu futuro profissional.

Foi assim que a Coven nasceu, há 30 anos. O nome da marca, referência à convenção de bruxas, recorda sua fase mística, mas ganhou um sentido bem mais amplo de cumplicidade com funcionárias que a acompanham há décadas. Para celebrar essa trajetória, a diretora criativa voltou a atenção para onde tudo começou daí o nome da coleção: Origem. “O lugar mesmo e coleções anteriores, resgatando alguns códigos, memórias, expertise”, explica. Nas peças para o outono-inverno, ela refaz a trajetória que lhe deu o posto de precursora em inovação em tricô no país, unindo tecnologia e feito à mão.

L’OfficieL, conta que, da cidade onde nasceu, trouxe referências a flores e pés de café que aparecem na estampa Livia, homenagem à irmã. Mergulhar no acervo da marca foi outra aventura. “Resgatamos e reeditamos bordados, modelagens e técnicas de jacquard”, acrescenta Liliane. Um selo de origem desenvolvido pela agência Hardy funciona como assinatura para a primeira de uma série de atividades que vão marcar este ano.

Liliane Rebehy

L’OFFICIEL: Como você vai conduzir a celebração pelos 30 anos da Coven?

LILIANE REBEHY: A gente ainda está se planejando. Neste primeiro semestre vamos revisitar a nossa história a partir de acervos de coleções e campanhas. Quero trabalhar um pouco a nossa história. E desfile estamos pensando em programar para o segundo semestre. Acho que 30 anos é uma data de reflexão e de tentar olhar para o que a gente construiu ao longo desse tempo, valorizar essas referências. A moda exige sempre algo novo, mas a gente precisa preservar. É um trabalho que a marca precisa fazer: ter seus clássicos e fazer com que eles existam de forma contínua. Nosso trabalho nunca foi somente comercial, sempre teve muita pesquisa, experimento e descoberta.

L’O: Você voltou a Patrocínio?

LR: Volto sempre. Meu pai ainda mora lá.

L’O: Foi diferente voltar com o olhar em busca da origem?

LR: Acho que foi diferente, sim, porque às vezes a vida é muito automática. Em alguns momentos, a gente para e reflete sobre as coisas; datas fazem a gente olhar diferente.

L’O O que você descobriu?

LR: Primeiro foi reviver aquele momento, minha primeira brincadeirinha, na minha cabeça talvez fosse mais um pequeno empreendimento; eu sempre tinha algum na minha adolescência, e como isso viria a ser minha história profissional. Segundo, como eu me dediquei e ainda me dedico à marca até hoje; como foi descobrir uma profissão vinda de uma paixão que é o que, acho, faz a marca estar viva com 30 anos no Brasil, o que não é nada fácil. Ao mesmo tempo tenho a serenidade de pensar que nesses 30 anos o que me guiou sempre foi paixão, muita seriedade e empregar pessoas, gostar de ter essas pessoas por perto. Ainda não consegui mudar a minha forma de trabalho. Necessito ter pessoas perto de mim. Não sei fazer à distância. É um laboratório. O trabalho é estar junto, porque vai e volta. E tenho uma equipe maravilhosa. Há pessoas que estão comigo há 25 anos. Elas conseguem entender qualquer coisa que eu quero, o que eu estou pensando. É um conjunto que faz essa marca.

L’O: Foi no final dos anos 1980 que você começou a ter os primeiros contatos com linhas e fios. Era a época do Grupo Mineiro de Moda, com gente como Sônia Pinto, Terezinha Santos, Liana Fernandes e Renato Loureiro. Pensando em estilismo, eles influenciaram você?

LR: Talvez inconscientemente, porque eram marcas sensacionais. Eu admirava o trabalho do Renato Loureiro, a Patachou [criada por Terezinha Santos] estava em um momento [ótimo]. Todos os dois tinham um trabalho primoroso em tricô. E as outras marcas, a Sônia [Pinto], que é uma pessoa que eu admiro muito até hoje. Liana [Fernandes]... Todas são pessoas [que admiro]. Tenho um relacionamento próximo com algumas. Eu não planejava ter uma marca, mas a referência deles de moda estava em mim. Eu consumia a moda deles.

L’O: O Grupo Mineiro de Moda era composto por dez marcas e pode ser considerado um exemplo de empreendedorismo de sucesso no setor privado. De alguma maneira elas mostravam que empreender na moda poderia dar certo?

LR: Eu estava no curso de Arquitetura. Racionalmente, eu seria uma arquiteta. Tudo aconteceu de maneira muito orgânica. Do mesmo jeito que eu já tinha feito bijuteria e sanduíche natural, era mais outro projeto para fazer [um dinheiro extra]. Um dia acordei e decidi que queria fazer [tricô].

L’O: Em 1993, quando a Coven foi criada, o tricô era muito usado em roupas básicas de inverno. Entretanto, desde o início você queria fazer algo diferente. Havia Sonia Rykiel e mesmo os japonistas descontruindo o tricô em Paris...

LR: Nesse primeiro momento talvez nem noção de mercado eu tivesse. Depois, com o tempo, fui amadurecendo, comecei a viajar... Acho que descobri em mim a capacidade de misturar cores, de elaborar texturas passava pela construção têxtil.

L’O: Quando veio a virada, de perceber que as pessoas estavam gostando do que você estava propondo?

LR: Foi muito rápido. Já entre a primeira e a segunda coleção. Foi um crescimento tão grande que fiquei apenas nela durante um ano e quatro meses na primeira casa que aluguei e trabalhando com cerca de 15 pessoas. Quando mudei para a segunda casa, já era uma equipe com cerca de 40 pessoas. Era outra época, muito mais fácil, com menos concorrência. De fato, existia uma resistência ao tricô porque só havia o tradicional, o cardigã, o pull, que não eram valorizados. A partir do momento que fui tirando o produto desse lugar, tratado quase como um tecido plano, as pessoas se surpreenderam. E aí fui entendendo em que mercado eu estava entrando. Logo depois houve a abertura para importação e me vi, de repente, com teares supermodernos, com uma condição de fazer algo muito além do que eu tinha feito até então e aí foi outra arrancada muito grande para a marca.

L’O Profissionalmente, com o que você sonhava?

LR: Até hoje não sou a pessoa do planejar, mas tinha o desejo de ter minha loja própria, que era o lugar que eu acreditava ser o espaço onde o produto poderia expressar a força da marca, desfilar. E quando o desfile chegou, houve um desajuste dentro da marca enquanto negócio porque descobri um potencial criativo grande, mas que não era compatível com o desempenho do produto comercialmente. Então, durante um tempo, eu fiquei sem chão. O desfile era um sucesso absoluto e a marca comercialmente dava sinais de que não era mais a mesma. E foi pouco tempo para haver o ajuste. Tipo “não quero mais criar um produto básico”, entre aspas, mas também não quero fazer um que não seja real. Queria fazer um produto extremamente desejável, falasse com a passarela e ao mesmo tempo as pessoas consumissem esse produto. E aí eu acho que a marca se ajustou para esse lugar que está até hoje e que, eu acho, a gente vem evoluindo.

L’O Você já me contou que Coven é um termo relacionado a convenção de bruxas, que por sua vez está totalmente ligado à presença feminina, assim como o ato de tricotar. Como esses dois pontos se juntavam na sua cabeça, naquela época, e hoje?

LR: No sentimento de comunidade, que eu acho que é uma das coisas fortes que a empresa tem. O que falei antes sobre a equipe. As pessoas se sentem pertencentes a esse clã, a esse coven. Acho que isso é a grande magia da marca. Isso faz muito sentido para mim.

L’O Você se vê como uma feminista?
LR: Eu me considero feminista no sentido de que eu sou uma mulher que preza profundamente pela minha independência. Para mim, a realização profissional é vital. E acho que eu ter consciência da força do feminino, de como nós mulheres somos capazes de viver cercadas de 80% de outras mulheres que também estão se realizando junto comigo é muito gratificante. Tem a força do fazer, de saber que a gente é capaz e forte, me nutre.

Liliane Rebehy

L’O: O que mais te emociona no tricô?

LR: O fato dele me surpreender sempre. Até os erros podem surpreender. Às vezes você está pedindo uma coisa, o tecelão erra na máquina e quando você olha para aquilo é lindo. Você não depende de um fornecedor de tecido. Mesmo que eu não compre nada novo, com o estoque de matéria-prima que tenho posso fazer misturas, testar pontos e depois introduzir um trabalho manual sobreposto ao que a máquina fez. Tenho condição de me surpreender. E são surpresas frequentes. Por exemplo: na coleção sobre os povos originários havia um jacquard que a gente chamava de ambiente indígena. A primeira amostra era muito simples, mas trocamos o fio por um mais grosso, acrescentamos um ponto toalha e, de repente, chegou um pano que parecia uma tapeçaria.

L’O: Desde o início, a proposta era radical: cores contrastantes, grafismos em uma coleção feita 100% em tricô. Você sempre quis sair do quadrado?

LR: Sim. O engraçado é que sou de uma família que não tem nada a ver com isso [a família se dedica à cafeicultura]. Me encantei desde o início de uma maneira intensa que perdura até hoje, mesmo com todas as dificuldades.

L’O: Ter estudado arquitetura foi importante nesse processo?

LR: Muito. Acho que a arquitetura dá um aprimoramento de proporção, de estética, de cartela de cor, de história da arte. São questões que considero fortes no meu trabalho. E, também, a percepção minuciosa do que está incomodando meu olhar e o que precisa ser feito.

L’O: Há, também, uma proximidade forte com a arte nos temas e na decoração das lojas...

LR: Sempre veio de maneira orgânica. Meu primeiro desfile no SPFW se chamava “A Sala” e [a cenografia] era uma sala modernista. Todas as referências vinham desse universo. Havia um jacquard que lembrava um jacarandá. Tinha uma referência vinda de Le Corbusier. Sempre são universos de apreciação pessoal. Não sou colecionadora de arte, gosto de me ver como uma curadora de objetos que me encantam. Gosto de arte contemporânea, mas estou em um momento da tapeçaria, que vejo uma relação forte com o meu trabalho.

L’O: Voltando aos desfiles, em 2003 a Coven começou a desfilar no Fashion Rio. Depois veio o SPFW. Houve mudança de repercussão para a marca em trocar o Rio por São Paulo?

LR: Deixei de desfilar no Rio quando tive meus dois filhos. Entre 2015 e 2016, estreamos no SPFW. Nessa época já não me sentia na obrigação de desfilar duas vezes por ano. Diferente do início que, inclusive, tinha uma crítica jornalística de desfile que era instigante, tinha o tom de aprovação ou desaprovação. Enaltecia ou destruía. Sinto falta. Vejo que a imprensa tinha um papel muito mais relevante no passado e que isso se diluiu; o desfile também está em outro lugar, tem um papel de posicionamento ideológico, mais do que a moda em si. E não sei onde a marca se encaixa porque eu ainda valorizo muito a construção do fazer. A ideologia é importante para mim, mas acho que é preciso também ter produto, e produto de qualidade.

L’O: A passarela então foi um incentivo para incrementar as pesquisas de fios e técnicas?

LR: Muito. Era um exercício criativo no limite do limite. Tanto de pesquisa quanto do fazer e do experimento, do bordado e rebordado. A gente varava madrugada com equipes gigantes de bordadeiras, de moulage. Não chegaríamos a esse ponto se não fosse o desfile.

L’O: Qual coleção exigiu o impensável?

LR: Várias. Olho peças no acervo e parece que eu era louca (risos). A gente fazia coisas que, acho, nem cabem mais hoje em dia.

L’O: Quanto a pesquisa ainda ocupa de tempo no desenvolvimento de uma nova coleção?

LR: Gasto um bom tempo me dedicando à pesquisa, mas eu ainda gasto mais tempo no processo depois da pesquisa. Vamos falar que gasto 30% do tempo na pesquisa e muito mais no desenvolvimento e lapidando porque uma peça, às vezes, vai e volta cinco vezes para todos os ajustes. Acho que o nível de detalhamento e de primor que a gente exige é o que me toma 70% do tempo. A pesquisa é orgânica, acontece à noite, em casa, no fim de semana.

L’O: Nesse processo de alinhar o que está na arara com o desejo da consumidora surgiu a COA, que acaba de fazer um ano. Como é a sua relação com ela?

LR: Ela é uma linha dentro da Coven. O pensamento sobre a COA começou durante a pandemia, quando comecei a refletir sobre o nosso grande estoque de matéria-prima de excelente qualidade. E, ao mesmo tempo, ter um produto diferente para a mesma mulher Coven, mas em um outro momento. É uma roupa mais minimalista, mais casual, com um custo um pouco mais baixo. Isso também é importante em um mix, com entradas de produtos novos. A COA vem com esse objetivo e, também, vestindo homens e mulheres, apesar de não ser totalmente sem gênero.

L’O Minha percepção é que a COA vem crescendo. Estou correta?

LR: Está. Cometeu alguns erros na primeira coleção e fomos acertando. A última cápsula se mostrou extremamente eficiente. A ideia é que Coven e COA se misturem.

L’O: Não sei se as pessoas têm a clara percepção de que, por trás do trabalho do tricô e da pesquisa de técnicas e fios, de tecnologia, há um trabalho precioso do fazer artesanal...

LR: Você tocou num ponto muito importante. Esse é, talvez, o maior saber da marca. A sobreposição: visualizar que sobre a tela de tricô de máquina eu posso fazer um tressê, por exemplo. Já fiz isso com tirinhas de couro, com rolotê de tricô, que vira uma espécie de tapeçaria, em outro momento posso deixar aquilo solto e vai virar uma franja. O manual é guiado pelo pensamento da sobreposição. Não gosto do bordado gratuito sobre o tricô.

L’O Qual a peça mais complexa da coleção Origem?

LR: A peça inteira de macramê. Que é uma reedição, mas com uma cara diferente em função do fio, da franja solta. É um processo manual bastante complexo.

L’O: Você se imagina se dedicando a outra atividade além da moda?

LR: Engraçado, se eu quisesse desacelerar, eu gostaria de ter um ateliê onde pudesse fazer o tricô como design. Onde eu pudesse fazer muitos experimentos e construções têxteis que não fossem moda.

L’O: Na sua opinião, o que é moda?

LR: É uma forma de expressão do que você é. Por mais que a roupa tenha pouco significado, a gente mostra muito do que é por meio da roupa.

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