Gloria Coelho: além de sua superfície
Em 47 anos de carreira, Gloria Coelho criou um universo criativo particular recheado de itens atemporais. Para a nova coleção, ela reforça a preocupação com o meio ambiente com uma dose de atitude punk
A tarde de sexta-feira estava apenas começando quando cheguei ao QG de Gloria Coelho, no início de outubro. Logo na entrada, fui informada sobre os protocolos de segurança sanitária e que a estilista estava a minha espera em sua sala de criação, no segundo andar do prédio com estética industrial, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Para chegar até lá, é preciso passar pelo showroom e pelo ateliê, com modelistas e costureiros em ação no que ela considera ser um verdadeiro laboratório. Naquele dia, um manequim portando um vestido longo do acervo estava sobre uma grande mesa, já dando uma pista sobre o tom da conversa entusiasmada que rolaria nas próximas duas horas. Encontro com Gloria finalizando uma reunião com seu assistente sobre detalhes dos looks para a São Paulo Fashion Week.
A coleção olha para o passado da marca e utiliza basicamente materiais que já estavam no estoque, refletindo a preocupação com o meio ambiente que há tempos já estava presente no trabalho da estilista e que, agora, sustenta um dos pilares que ela quer fortalecer cada vez mais. Suas antenas estão sempre apontadas para o futuro, e o que elas captam acabam, impreterivelmente, virando shapes, detalhes e trabalhos manuais que resultam em peças atemporais. Agora, estão em seu radar alertas ambientais que não podem mais ser ignorados. “Ainda há tempo para salvarmos nosso planeta; porém, cada um precisa fazer sua parte”, explica, citando o documentário Rompendo Barreiras: A Ciência do Nosso Planeta, com o renomado cientista sueco Johan Rockström e o naturalista britânico David Attenborough.
É um dos vários que integram a extensa lista de filmes que anda devorando. Outro é Cruella, mistura de atitude punk e upcycling a que ela assistiu várias vezes. Ambos integram o rol de inspirações para a nova coleção. Quem acompanha a estilista sabe que seus processos criativos sempre são o resultado de uma combinação bastante eclética de referências que, no fim, fazem todo o sentido. Também estão em seu radar elementos vindos dos esportes e das ruas, uma atmosfera de anos que vai de 1970 a 1990, alfaiataria e metais, grunge e onça-pintada, felino que já habitou a faixa entre o México e a Argentina e que, no ano passado, foi duramente afetado pelo incêndio no Pantanal. “Misturando tudo, estamos criando um novo ano de 2022”, diz Gloria, que resume esse conjunto em torno de Coexistir, o nome que escolheu para batizar seu próximo inverno.
“O planeta está precisando de respeito e reflexão. Precisamos respeitar todas as criaturas e aprender a usar nossos recursos de maneira diferente, sem agressão, de uma maneira verdadeiramente sustentável para deixarmos para as futuras gerações um mundo agradável e gentil. Eu estou aprendendo”, diz ela, mostrando em um imenso mood board os looks resultantes de seu processo de introspecção e processamento das informações que foi captando nos últimos meses. Há, ainda, 14 peças desenvolvidas em parceria com a jornalista e amiga Lilian Pacce, que também estarão no filme que Gloria prepara para a semana de moda paulista.
Outro aprendizado vindo da pandemia modificou seu dia a dia. Apesar de não abrir mão das idas diárias à fábrica, conta que descobriu serem dispensáveis as longas jornadas. “Tudo funciona a distância, com a ajuda da tecnologia”, diz ela, que se vale das videoconferências para se reunir virtualmente com o filho, Pedro, que, atualmente, mora em Londres, e o ex-marido, Reinaldo Lourenço. “Nesses encontros, a gente fala de tudo, menos dos trabalhos que cada um de nós está desenvolvendo”, confessa, reforçando a “tática” que virou regra na família em que os três integrantes são estilistas. Metodologias, aliás, são algo que Gloria aprendeu a incorporar ao longo de 47 anos de carreira, iniciada quando ela e a irmã, Graça Amazonas, abriram uma pequena confecção com a ajuda dos pais, batizada de G. O foco eram peças essenciais feitas de ótimos tecidos e acabamentos, corte e modelagem impecáveis.
“O PLANETA ESTÁ PRECISANDO DE respeito e reflexão. PRECISAMOS RESPEITAR TODAS AS CRIATURAS E aprender A USAR NOSSOS RECURSOS DE MANEIRA DIFERENTE, SEM AGRESSÃO, DE UMA MANEIRA verdadeiramente SUSTENTÁVEL PARA DEIXARMOS PARA AS FUTURAS GERAÇÕES UM mundo agradável e gentil. EU ESTOU APRENDENDO.” GLÓRIA COELHO
Naqueles anos 1970, a Rhodia estava empenhada em promover a moda brasileira, o processo criativo e a formação de estilistas, o que resultou em uma série de cursos com Marie Rucki, fundadora do Studio Berçot. Gloria não deixou a chance passar e incorporou os conselhos para mapear um desejo abstrato, por meio de imagens e objetos: “Uma verdadeira coleta de dados instintiva, emotiva e desordenada, de onde saem cores, matérias e formas que vão dar origem a uma nova coleção”, como descreve Carlos Mauro no livro dedicado à estilista na coleção Moda Brasileira, editado pela extinta Cosac Naify. “Ela queria, acima de tudo, desenvolver seu processo de criação para encontrar uma identidade própria”, relata Mauro, que viu tudo de perto como professor selecionado para acompanhar a francesa. Com as aulas, vieram metodologia, capacidade de organizar vivências e contar as próprias histórias através das roupas.
Deu certo. Na década seguinte, Gloria havia conseguido estruturar e fortalecer sua marca em território nacional, integrou o Grupo Paulista de Moda e transformou a G em Gloria Coelho. O amadurecimento desse processo foi o minimalismo futurista que virou assinatura da marca. Da consciência têxtil veio o desenvolvimento de tecidos exclusivos, como o TK, uma espécie de neoprene antibacteriano que está entre seus best-sellers, e várias intervenções realizadas no ateliê. Sapatos e bolsas também sempre estiveram em seu radar e, muito antes do termo collab virar modismo, ganharam vida através de parcerias com marcas especializadas. Em 1994, ela criou sua segunda marca, Carlota Joaquina, assinada por Carla Fincato – já desativada –; em 2013, assinou a decoração e os uniformes dos funcionários do hotel Best Western Plus Arpoador, no Rio de Janeiro.
Apesar do marco de fundação, pode-se dizer que Gloria sempre carregou a vocação para a moda. Uma de suas lembranças mais felizes da infância foi quando ganhou da mãe uma caixinha de costura. Tinha 6 anos e era aluna interna no austero colégio Nossa Senhora da Piedade, em Ilhéus, na Bahia. Aos 13, vestia suas amigas de escola e, nos anos 1960, já em São Paulo, criava seus primeiros tubinhos. Aos 19 anos, ela e duas amigas embarcaram na onda hippie e fizeram uma camiseta-fralda que acabou fazendo um imenso sucesso na avançada Rua Augusta, tanto que depois de três meses cada uma tinha dinheiro suficiente para comprar um carro com o lucro obtido. Gloria preferiu embarcar para a Europa. Na volta, trouxe uma mala recheada de tecidos e continuou faturando com peças que eram a cara da juventude “paz e amor”: bordadas com luas e estrelas cintilantes. Talvez elas sejam a ponte com o presente, parte de um caminho mágico que Gloria nunca deixou de acreditar. Desde então, a astrologia virou seu porto seguro e ingrediente indispensável de seu mundo imaginário que, no fim, se materializa em uma moda impecável.
TALENTO EM DOBRO
Amigas de longa data, é a primeira vez que as duas se unem em um processo criativo. De um lado, a mente fervilhante de Gloria Coelho; do outro, a postura pé no chão de Lilian Pacce. Dessa mistura de olhares e personalidades surgiu a coleção-cápsula feita a quatro mãos que gira em torno do universo criativo da estilista, mas segue a filosofia de vida, prática e atenta às questões sustentáveis da jornalista, que também atua como curadora e consultora. Engajada em causas ambientais, sustentáveis e sociais – ela é pioneira na campanha em favor da troca das sacolas plásticas pelas ecobags –, Lilian conta que a principal motivação para aceitar o convite foi estruturar o trabalho dentro de uma abordagem positiva, com reaproveitamento de tecidos e peças disponíveis no estoque da marca ou uso de materiais de baixo impacto ambiental. “A ideia foi criar uma cápsula para uma viagem, de trabalho ou turismo, com itens coordenáveis”, explica ela. A proposta é ser concisa e fazer render, visão que vem aperfeiçoando desde junho de 2017, quando realizou a primeira edição do projeto #1LookPorUmaSemana. “Foi uma grande mudança na minha vida porque ele transformou inclusive a percepção de conservação da roupa, pois a dinâmica ‘usou/lavou’ estraga mais rápido a peça e há maior consumo de luz e água”, avalia. Consciente de que não é possível mudar radicalmente de uma vez, aconselha a alterar pequenos hábitos que, juntos, podem fazer a diferença. “Sinto que, cada vez mais, preciso de menos itens e melhores.” É essa percepção que conecta a collab. Lilian olhou para seu closet, selecionou peças criadas há décadas por Gloria e que continua usando até hoje; a estilista, por sua vez, fez sugestões. Juntas, amarraram o processo criativo. São 14 modelos que incluem peças como trench coat, calça, camiseta e tricô com gola avulsa. “Tem uma blusa cropped, também, que fiz pensando na minha filha”, diz a jornalista, acrescentando que sua fascinação pelo talento da amiga vem de longe. “Ela fez meu vestido de casamento em 1985”, recorda, bem-humorada, e destaca: “Quero peças que durem mais 20 anos”. O planeta agradece! (SH)