Moda

Alexandre Herchcovitch: 30 anos além da moda

Memória além! Alexandre Herchcovitch marca 30 anos de carreira com exposição que foge da mera retrospectiva pelas mãos do curador-amigo Maurício Ianês.

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Foto: arquivo Alexandre Herchcovitch

Como resgatar a trajetória de um criador ainda vivo e atuante — e com uma obra que não se foca apenas na moda, mas que se perdeu em parte no tempo e na memória, especialmente para as gerações mais novas? É o grande desafio de 30 anos além da moda, mostra que comemora as três décadas de carreira de Alexandre Herchcovitch, inaugurada em abril no Museu Judaico, em São Paulo. Além de coletar os registros de todos os desfiles que Herchcovitch produziu, dos clássicos aos mais recentes, a exibição tem as suas preciosidades — roupas feitas para a mãe, Regina, peça essencial nessa trajetória; criações dos anos 1990, quando Alexandre veio do underground para ajudar a construir a moda brasileira contemporânea, e imagens raras e pouco vistas, junto de peças vindas de acervos particulares. São pelo menos 40 looks em exposição. Tudo foi amarrado com a curadoria de Maurício Ianês: hoje radicado em Viena, o multiartista estava ao lado de Alexandre desde os primeiros moldes, ajudando a pensar e criar a estética tão própria do criador e assinando os stylings dos seus desfiles. Agora, mergulhando novamente no universo do amigo, teve a oportunidade de repensar toda a obra que conhece bem.

Foto: arquivo Alexandre Herchcovitch

L’OFFICIEL Como foi esse processo de curadoria?
MAURICIO IANÊS Quando fui convidado para fazer a exposição, ficamos pensando em como resolvê-la. Quis fugir um pouco do tipo clássico de retrospectiva histórica para mostrar os vários universos do Alê e juntar os pontos por meio deles. São assuntos e temáticas importantes, as pesquisas de modelagens, estampas, enfim — por isso preferi focar em algo não linear. Claro que há uma parte que é retrospectiva: são campanhas, editoriais, todos os desfiles espalhados por monitores. Mas há momentos especiais que muita gente não conhece mais ou nunca viu. Resgatamos duas peças mais de arte, que vieram desse momento no fim dos anos 1990 em que o Alexandre participou de uma exposição na galeria Thomas Cohn; justamente a convite do Adriano Pedrosa, que fez a curadoria. Foi difícil de achar mas, por sorte, o Charles Cosac tem a peça que eu mais queria: um escarpim de salto altíssimo, com mais de um metro, que fica apoiado na parede. Outra peça foi feita para uma exposição no shopping Iguatemi. Era uma instalação grande, um labirinto em caracol, que tinha esse vídeo que estará na mostra. Foi da época em que ele criou a coleção dos vestidos que se enrolavam no corpo, construídos a partir de fragmentos de outras peças que se sobrepunham e, no final, parecia que eram várias roupas, mas era só uma peça. O vestido não conseguimos achar, mas há esse vídeo. E há os registros dos desfiles que Alê desenhava para lançamentos de tecidos, de fibra, como com a Rhodia — nos quais havia uma liberdade de fazer o que ele queria, pois não havia compromisso comercial de moda, eram mais experimentais. Foi bem interessante rever isso tudo.

L’O Conseguiram rever toda a trajetória que queriam?
MI Foi árduo, mas fiquei feliz com o resultado que alcançamos. Mostraremos roupas que o Alê fez para a mãe, aos 14 anos; assim como peças que vieram do acervo do Johnny Luxo de 1992. Tem muito de coleções privadas, além de itens do acervo do próprio Alexandre. Ele tem muita coisa guardada, mas até menos do que gostaríamos. As peças de látex, por exemplo, que apareciam pelo menos uma vez em cada desfile. O látex apodreceu, então muita coisa teve que ser jogada fora. Mas conseguimos um vestido da coleção da Isabela Prata, dos anos 1990. Assim como outras três peças que estão justamente em decomposição, mas resolvemos mostrar exatamente para que as pessoas possam ver o que acontece. Como peça de arte, é uma coisa linda — mas está morrendo.

L’O Foi uma caça intensa, então?
MI Foi, intensa, rápida e difícil; uma pesquisa de campo que fizemos em pouco tempo, mas com sucesso. Temos sorte de ter pessoas que gostam muito das roupas do Alê e colecionam, preservam. Então, pedimos peças para clientes — alguns até nos procuraram para oferecer. É o tipo de pesquisa que não acabaria nunca, até a semana passada tinha coisa surgindo. Em algum momento, precisei fechar essa lista de obras. No fim das contas, temos uma boa seleção. Os vídeos também são muito importantes, apesar da qualidade dos registros dos anos 1990 que não é tão boa. Ao mesmo tempo, eles geram histórias ótimas. Há uma gravação de um desfile que Alexandre fez nos anos 1990 para lançar um perfume, algo que muita gente nem sabe. E a pessoa que filmava deve ter achado o desfile tão louco que resolveu fazer loucuras com a câmera também. Daí a gente lembra como eram os anos 1990.

L’O Não havia um senso de importância do que estava acontecendo.
MI Total, apenas estávamos fazendo, com os recursos possíveis. Nesse exemplo, nem dirigimos esse câmera — ele deve ter resolvido fazer uma loucura da cabeça dele, pois achou que cabia ali, não era um vídeo de documentação.

Foto: arquivo Alexandre Herchcovitch

L’O Essa é sempre uma questão muito problemática na moda brasileira — não há acervo, memória ou registro de muita coisa. Você sentiu isso na prática.
MI Pois é, essa questão da memória, principalmente na moda, é fraca porque tem esse passo acelerado. As pessoas querem sempre o novo e esquecem o que aconteceu três anos atrás. O que é uma pena, pois isso tira também o senso de importância de quem está fazendo. No Brasil especialmente, essa memória não é mantida por questões sociais e também financeiras. Não temos um museu dedicado à moda, as marcas não têm acervo, enfim. Alê é um pouco exceção nesse sentido, pois sempre teve uma certa preocupação em guardar parte das criações. Mesmo assim, ainda mais no começo, quando não havia dinheiro para tal, esse “guardar” não funcionava exatamente como deveria; era roupa empilhada, guardada como dava. É uma luta que ele tem tido de preservar a memória, mas também de falar sobre ela. Várias vezes, vemos algo que é feito hoje e — sem querer ser recalcado nem nada disso — o Alê fez em 1993 ou 1994 e ninguém sabe. Nem se pode falar que é uma cópia, pois esses registros mal existem. Muita coisa foi fotografada em cromo, muito se perdeu; os fotógrafos não acharam ou já estava destruído.

L’O Como lidar com uma exposição assim sem descambar para a nostalgia, fazer com que seja relevante para hoje?
MI Justamente, estamos procurando preservar um pouco a coisa meio punk que ele tinha e, de certa forma, ainda tem. Esse equilíbrio, digamos, entre uma violência contra a própria moda e a elegância. Em toda a expografia e na escolha das peças, há esse jogo que atualiza um pouco a história e um tratamento das coisas que não é nostálgico. É um tratamento contemporâneo sobre a obra. Há itens históricos, o Alê encontrou o desenho que fez aos 15 anos da caveira que se tornaria a marca. Em paralelo, a maioria das peças está em cabides, não em manequins — isso já tira um pouco do preciosismo em relação ao passado. As imagens foram ampliadas para cobrir todas as paredes da exposição. É quase uma grande instalação feita a partir de hoje, nem tão preciosista. E, com certeza, não é algo que pretende colocar o pedestal de grande criador ou esse tipo de coisa. Temos desde uma jaqueta com modelagem mais comercial até peças mais preciosas. A moda realmente precisa dessas mostras mais históricas, que elevam os criadores, não há dúvidas. Mas não é isso que quisemos fazer, pois acho que o trabalho do Alexandre justamente foi para outro lugar.

L’O Você estava ao lado do Alexandre desde o começo, cortando tecido na sala de casa, acompanhando até pouco tempo atrás — como amigo, como stylist, como consultor criativo. Como fazer esse distanciamento e assumir esse papel de curador? Essa relação é uma vantagem ou desvantagem?
MI Em algum momento cheguei a pensar ”será que sou mesmo a pessoa certa para fazer essa curadoria?”, justamente por ter estado lá dentro o tempo todo. O que quis aproveitar foi, por um lado, esse conhecimento das coisas internamente, para facilitar o caminho da pesquisa. Mas tentei me distanciar um pouco para construir esse olhar estrangeiro, entender como esse observador verá essa mostra. Estou tentando ter um olhar que respeite esse observador novo, para falar de hoje, dar informação sem preciosismo, sem criar uma torre de marfim. Ao mesmo tempo, especialmente no catálogo, trago histórias que só eu ou o Alê saberíamos dizer — acontecimentos, situações que vivenciamos juntos. No fim, há essa mistura.

Foto: arquivo Alexandre Herchcovitch

L’O De certo modo, você está curando uma obra que ajudou a criar dentro desses 30 anos.
MI E justamente não estou sendo nostálgico comigo mesmo, tentando privilegiar o que é Alexandre, a identidade dele. Estava ali o tempo todo, sim – mas estávamos construindo juntos algo que era Alexandre Herchcovitch.

L’O Trinta anos de carreira, claro que há a efeméride óbvia. Mas com o distanciamento histórico mais esse seu mergulho novo sobre a história, falando como curador, qual você diria ser a importância que justifica uma mostra sobre a obra dele?
MI Várias coisas, por isso falamos que a exposição vai além da moda, como está no título. Alê construiu parcerias e momentos muito importantes que vão além da roupa. Por exemplo, estamos tentando resgatar as fitas DAT das trilhas de desfile que o Suba [Mitar Subotić, produtor sérvio radicado no Brasil na década de 1990 e falecido em 1999] fazia. Queria muito conseguir fazer essa homenagem, pois o Mitar construiu uma imagem junto com a gente. As trilhas eram, em geral, odiadas — pois eram muito difíceis, mas essenciais. Além da moda implica tanta coisa. Mesmo sen- do moda, havia essa característica que apontava para outros lugares não exclusivos desse universo, havia outras características. Há a questão da memória, mas há a importância de mostrar e atualizar a produção do Alê. Desde o último desfile que fizemos na Prefeitura de São Paulo, em 2016, antes de ele sair da direção criativa da Herchcovitch; Alexandre — depois, a marca foi interrompida, ficou essa lacuna, mas a personalidade continuou atuante. Então não é apenas uma trajetória de marca e, justamente por isso, não é nostálgica, nem histórica. É para atualizar esse universo.

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