Marcella Franklin, em conversa com L’Officiel fala sobre a Haight
Marcella Franklin em entrevista para L’Officiel fala sobre sua marca Haight, que está prestes a completar dez anos de praia e de moda
Nascida quase sem querer, a Haight está prestes a completar dez anos de praia — e de moda. Criada por Marcella Franklin como um projeto piloto para matar vontades estéticas próprias, o beachwear mezzo minimalista mezzo vintage da marca veio atravessando bolhas ao longo dessa década. Das modernas cariocas que estavam lá quando a Haight ainda nem tinha nome, passando pelas insiders e chegando às mulheres interessadas em criações contemporâneas para usar sob o sol, do Brasil e de fora – foi de lá que veio a última evolução da casa: uma collab feita a quatro mãos com a modelo francesa Tina Kunakey, que era consumidora e se tornou amiga. Mais do que uma garota-propaganda bonita, a parceria rendeu democratização maior das criações da Haight; atendendo mulheres cujos corpos não se bastam nos tamanhos padrões de mercado. Um movimento esperto (e necessário) da estilista discreta, que prefere louvar o trabalho coletivo (e feminino) da sua equipe a guardar os louros todos nos elásticos da própria hotpant. L’OFFICIEL conversou com Marcella, diretamente do Joá, no Rio de Janeiro, sobre os caminhos de ontem e de hoje.
L’OFFICIEL Como foi esse match da Haight com Tina Kunakey?
MARCELLA FRANKLIN Tina conheceu a marca assim que abrimos a primeira loja, no Leblon. Entrou sem querer, porque se interessou pelo projeto de arquitetura, e acabou comprando. Na época, era casada com Vincent Cassel que fez uma foto dela na loja que viralizou — e gerou uma divulgação ótima. Ela se tornou entusiasta da Haight, mesmo sem termos contato — consumidora real, dizia que a qualidade e a estética eram muito diferentes do que via por aí; e é uma pessoa que tem contato com marcas do mundo todo. Sempre elogiava, fazia posts, superfofa. Até que, numa vinda dela ao Rio, em 2021, mandou uma mensagem falando que a coleção estava linda, mas muitos tops não funcionavam pois ela tem o busto muito grande. Tina tem um tamanho de busto GG mas, se medir a circunferência das costas, ela é PP. Na época, não tínhamos produtos reguláveis nas costas — então as peças GG, que sustentavam seus seios, ficavam largas atrás.
L’O A ideia de collab veio de que lado?
MF Ela já chegou sugerindo: vamos fazer uma colaboração porque eu quero poder vestir toda a coleção. Achamos incrível receber essa mensagem de forma tão espontânea, ainda mais pelo fato de ela já ter essa conexão com a Haight que não era nova. Foi uma ótima coincidência pois, em paralelo, estávamos desenvolvendo um projeto com a intenção de atender a perfis de mulheres que ainda não conseguíamos. Ao longo dos últimos dois anos, fizemos uma graduação de tamanhos própria, diferente da que o mercado oferece. A graduação padrão aumenta dois centímetros, de frente e de costas, entre um tamanho e outro — e não necessariamente isso é algo que funciona na prática. Revisamos todo o nosso processo para adaptar os produtos para que, de fato, as mulheres se sentissem confortáveis. Não é só aumentar as medidas, é preciso entender se aquele modelo realmente está sustentando, se está seguro. E o mercado opera, quase que unanimemente, em torno do tamanho menor — as modelos de prova e de showroom, os cabides, é tudo P. Então acaba que o desenvolvimento acontece num corpo P e, não necessariamente, aquele produto vai fazer sentido num corpo maior, né? Internamente, ao longo desses dois anos, começamos a fazer provas tanto no P quanto no GG para enten - der se nossa graduação fazia sentido, para fazer alterações de modelagens que são específicas para o conforto de tamanhos maiores — seja levar uma alça mais larga, um elástico com gramatura maior para dar sustentação. Então já tínhamos esse processo interno quando a Tina chegou, foi uma combinação 100% feliz. Ela participou ativamente de toda a colaboração, veio para o Brasil três vezes e discutimos tudo juntas — da prova de roupa à cartela de cores e de como seria fotografado. Queria que ela fosse diretora criativa do projeto mesmo, não só uma garota propaganda. Acho que uma das coisas mais especiais foi entender que ela estava alinhada a muita coisa que a Haight acredita. Documentamos todos esses encontros e fizemos um minidoc para mostrar um pouco do processo. Em um trecho, ela diz que algo que chamou sua atenção foi ver que a marca está falando sobre mulheres que amam mulheres. Ficamos felizes em perceber que ela conseguiu identificar isso, esse nosso lado de valores, mesmo com uma interface tão pequena, só de consumidora da Haight. Tudo partiu de uma verdade, tanto da marca quanto dela.
L’O É importante esse envolvimento de alguém com uma questão real, não só criar para uma mulher metafórica.
MF Com certeza. E é primordial que isso aconteça. Uma coisa que converso muito com meu time é isso: ainda que a gente desenhe algo pensando em mulheres que têm 60 ou 70 anos, só vou saber se aquilo está realmente funcionando se tivermos uma mulher com esse perfil provando a peça, validando e dando sua opinião. Por isso esse projeto para trazer mulheres que têm perfis específicos para colaborar com esses feedbacks, passar sensações que nos ajudem a aprimorar.
L’O As discussões com Tina mostraram algo que você não tinha pensado ainda?
MF Algumas escolhas de modelagem até já prevíamos. Porque, como falei, não é só aumentar a graduação: você tem que entender a volumetria do busto. Então, temos que aumentar o ângulo da taça, a cobertura, o elástico. Para essa colaboração, incluímos três novos tamanhos de taça que não tínhamos antes. Um tamanho DDD, que tem uma base de tamanho G mas com uma volumetria maior de busto; um DDDD, com um aro GG e uma profundidade de taça maior, e o tamanho H, que é como se fosse um XXGG, também com uma volumetria aumentada. Esses, assim como os tamanhos originais da marca, do PP ao GG, todos têm regulagem na circunferência das costas. A intenção é permitir que mulheres que tenham medidas diferentes de taça e costas possam fazer suas combinações para que a peça se encaixe nas proporções que elas têm.
L’O Vocês também apresentaram essa parceria com Tina em Paris. Como está a Haight fora do Brasil?
MF Começamos a exportar em 2017, com um showroom em Nova York. Então já temos uma certa presença no mercado americano e em algumas das grandes multimarcas digitais, que vendem para o mundo todo. Já estamos em Portugal, outros lugares na Europa, até na Ásia, mas o grosso da exportação ainda é EUA. Por outro lado, sempre achei que nosso produto tem um fit maior com o mercado europeu do que com o americano. Estamos trabalhando isso em paralelo, agora. Este ano, fizemos duas feiras e estamos explorando esse novo território.
L’O Como é a percepção da Haight como marca brasileira nesses mercados? Pois é um produto com uma cara que, se você tirar o cenário carioca, poderia ter vindo de muitos lugares.
MF Há um estereótipo de imagem, do que se espera de uma marca de biquíni brasileira — e carioca. Mas sempre fomos por um caminho diferente desse olhar. Lembro que na primeira coleção, que não tinha estampa, de cores sóbrias, com neoprene dublado e cortado a laser, eu jurava que não ia vender nada. Não sabia se havia essa cliente que gostaria do que eu gosto, desse produto diferente para o universo da praia. E deu sold out em duas semanas. O que costumo dizer é que o que a Haight tem de mais carioca nem são as escolhas de produtos, mas justamente o trânsito entre praia e cidade. No Rio, as mulheres têm esse costume de sair da praia, almoçar em algum lugar, passar num samba no pôr do sol e, quando vê, acabou numa festa de rua. E com uma roupa que está bem para todas essas ocasiões. No início da marca, as clientes usavam nossos tops e maiôs até mais à noite do que na praia. Então, mais até do que as escolhas estéticas, há esse comportamento cultural carioca embutido. A cartela de cores sóbria, essa atemporalidade que é importante para o produto, faz com que algumas pessoas achem que a marca é de São Paulo. Já vi mulheres gringas que visitaram a loja, já conheciam a Haight pelo Net-a-Porter e achavam que era uma marca australiana. Não somos automaticamente associadas ao Brasil. Mas temos muito orgulho em ser uma marca brasileira. Contamos sempre essa história, de que nossa produção é 100% nacional, com matérias-primas locais. E fazemos todas as campanhas principais pelo país, exatamente com a intenção de mostrar a diversidade natural que temos — para além do Rio de Janeiro que já conhecem. Já fizemos nos Lençóis Maranhenses, no interior de Minas, no Lajedo do Pai Mateus na Paraíba… vários lugares com naturezas diferentes e brasileiras que gostamos de retratar. E tem algo na modelagem que as pessoas de fora do país conseguem identificar que há algo de Brasil ali.
L’O A Haight vai completar dez anos em 2025. Como vê esse balanço?
MF Nossa, eu não conseguiria imaginar que viveríamos tudo o que aconteceu. Às vezes, parece que faz muito mais de dez anos. Sendo muito transparente, no início eu não queria abrir uma marca de jeito nenhum. Eu tinha passado por algumas marcas pequenas e já sabia como era o rolê de empreender no Brasil. É uma escolha de vida, não de profissão — é algo que ou vira sua vida ou não tem como dar os passos necessários se você não estiver muito engajada. Já tinha visto tanta gente talentosíssima e marcas de grande potencial que acabavam morrendo na praia ou perdendo o que possuíam de mais valioso pois não tinham o lado do business muito bem organizado. Sou obviamente apaixonada pelo que faço, mas, por tudo isso, não tinha esse sonho de abrir uma marca. O que aconteceu foi que, quando saí da Ausländer, recebi propostas de empresas com produtos que eu não me identificava tanto. Ao mesmo tempo, tinha uma coleção de beachwear desenhada que não havia nem apresentado ainda. Então, a coloquei de pé por mim mesma, para ter no portfólio enquanto pensava nos próximos passos. Era um piloto. Daí os meninos da Void, que tinha acabado de ser inaugurada no Rio, souberam e logo quiseram vender. Eu concordei, mas deixando claro que não era uma marca, não ia ter continuidade — nem nome tinha, a tag era preta com uma linha branca. Pois vendeu tudo em duas semanas, foi uma surpresa muito positiva que eu tive. E meu sócio hoje, que já vinha de um background de mercado financeiro e era meu amigo havia 15 anos, quando viu que o produto funcionava, me convenceu que era hora de arriscar e testar. Foi assim que eu comecei, só porque sabia que teria um braço que me complementaria com o lado do business de forma redondinha, desde o dia zero.
L’O E havia uma demanda, não é?
MF Sim, que me surpreendeu muito. Começamos a vender em algumas multimarcas que surgiram na época, com curadoria voltadas a novos designers. Era uma produção pequena e por isso eu não conseguia ainda fazer atacado, entrar na linha de produção das fábricas com velocidade. Mas fomos ganhando quantidade, encorpando. Em 2015, a empresa inteira era eu e uma estagiária. Dois anos depois, começamos no atacado e fizemos uma primeira tentativa de mercado internacional. A partir daí começamos a crescer na exportação e no Brasil. Abrimos a primeira loja no Leblon, em 2018, e em São Paulo, em 2019 – na Melo Alves, que infelizmente tivemos que fechar agora pois o imóvel foi vendido para construir um prédio. Entre 2021 e 2022 abrimos no Rio Design Barra, no Shopping Cidade Jardim e uma pop-up na Fazenda Boa Vista. E agora estamos com uma loja provisória nos Jardins enquanto pensamos no projeto permanente de uma loja nova.
L’O Foi em 2017 que você percebeu que a Haight estava realmente acontecendo?
MF Acho que sim. Foi por ali que vi que existia esse olhar de que era um produto muito diferente do que o mercado oferecia, no Brasil e fora. Foi importante começar a exportar para entender essa força. Lembro que, quando nossa representante levou a Haight para a primeira feira em Nova York, já avisou que normalmente não teríamos pedidos de cara — pois as lojas acompanham as marcas por algumas temporadas antes de comprar realmente. Mas já fechamos pedidos grandes logo na estreia, o que foi bem legal. Gerou até um problema bom, pois não conseguíamos espaço na fábrica para produzir. Demos um jeito e vimos que havia esse potencial internacional bem forte.
L’O Criativamente falando, em que momento você percebeu que essa história de minimalista cabia num ambiente de praia?
MF Eu sempre fui apaixonada por peças vintage, então vivia em brechós. E nunca fui uma pessoa de estampas e cores e babados, enjoava muito rápido de estampas, preferia peças com cores mais sóbrias e minimalistas. Em paralelo, como estilista, sempre achei interessante juntar signos diferentes no mesmo produto — pegar um shape que é super 1970 e fazer num material tecnológico ou mesclar tricô e náilon no mesmo produto, sempre gostei de brincar com esses extremos. Antes da Haight já gostava de propor modelagens ou matérias-primas mais modernas com uma pegada vintage, sempre foi meu tipo de produto. Lembro que eu ia à praia com maiôs que comprava em brechós ou com hotpants que eu mesma fazia, numa época que as lojas de biquíni ainda não vendiam hotpants, e as minhas amigas falavam “mas que calcinha de vó é essa, Marcella?” — e eu lá, achando o máximo. É o tipo de produto que sempre gostei e não encontrava no mercado, então houve essa intenção de colocar para fora e entender se existiam outras pessoas que iriam curtir também.
"O importante, PARA MIM, É SABER QUE O TIME HOJE É 80% formado POR mulheres. ESSA MENSAGEM ACABA SENDO MUITO MAIS RELEVANTE DO QUE TER UM destaque COMO MARCA DE MODA PRAIA.”
L’O Você conquistou nesses dez anos um posto de destaque na moda praia nacional feita de modo interessante. Como se enxerga nesse cenário?
MF Se me distancio, vejo um grupo de mulheres que está muito a fim de fazer as coisas acontecerem, de falar sobre valores que são importantes para a marca. Claro que levamos muito a sério o critério de qualidade de produto, mas há esse coletivo feminino que faz tudo acontecer. Não faço isso tudo sozinha, tenho muito orgulho do time. É muito menos sobre a diretora criativa que fala sozinha sobre a Haight, não sou essa personagem — nunca gostei muito de foto, de aparecer. O importante, para mim, é saber que o time hoje é 80% formado por mulheres. Essa mensagem acaba sendo muito mais relevante do que ter um destaque como marca de moda praia. Isso aparece em todos os lados, inclusive nas lojas. Sou apaixonada por arquitetura e sempre quis que as lojas tivessem projetos que falassem sobre o universo da Haight, mas que fossem um pouco diferentes do que uma loja costuma ser, que trouxessem algumas provocações. Pensando sobre isso, e juntando com o que queríamos fazer, os pequenos movimentos sobre o que acreditamos, definimos que cada loja seria assinada por uma arquiteta diferente. Pois o universo da arquitetura tem infinitas mulheres talentosíssimas, mas ainda é muito dominado por homens. É superlegal conseguir realizar esses sonhos, trazer mulheres que admiramos para colaborar. Um dos maiores prazeres, enquanto marca, é conseguir estar em contato com elas e ter essas trocas. Realizar projetos que tenham uma jornada prazerosa, não só o objetivo final.
L’O Ao mesmo tempo, por ser uma marca de moda praia, vocês lidam com questões delicadas de insegurança e autoimagem das consumidoras.
MF Sabemos que o mercado impõe um padrão específico como a única possibilidade de beleza. Mas há uma pluralidade infinita de mulheres, cada uma com sua singularidade. Então tentamos, de alguma maneira, fazer com que o produto ajude-as a se sentirem bem com os próprios corpos. Ainda temos desafios, sabemos que há perfis que a Haight ainda não atende bem, mas estamos no caminho. Para nós, o que há de mais incrível é receber mensagens de mulheres falando que se sentiram bem na praia pela primeira vez na vida. Isso é muito valioso, sabe? Muito especial. O time de vendas tem um treinamento no sentido de encorajar as clientes a provarem produtos que elas não vestiriam espontaneamente, exatamente por essas inseguranças que o próprio mercado gera — esse imaginário de que algumas peças são apenas para mulheres supermagras. Então, para várias clientes, dar esse primeiro passo para provar uma peça com cava mais alta, por exemplo, não é fácil. E muitas vezes elas se surpreendem e percebem que fica até melhor do que o biquíni que estavam acostumadas; isso acontece com frequência. Assim como, em outros momentos, não curtem mesmo — e tudo certo. A partir daí, a loja tenta entender com ela o que de fato está incomodando. Esse feedback volta para o time de criação, temos uma reunião mensal entre estilo e vendas, para aprimorar os produtos e tentar atender melhor essas mulheres que os testaram, mas não deram certo. Essa questão da sustentação dos seios, por exemplo: vendíamos superbem no online e na exportação, mas não tínhamos a informação de que mulheres com bustos maiores, como a própria Tina, não conseguiam vestir bem nossos tops. Foi preciso abrir a primeira loja física para termos um contato real com a cliente e percebermos que havia essa demanda a suprir.
L’O Há novamente uma discussão sobre a pouca presença de mulheres à frente de marcas de moda. Como lê esse cenário?
MF Fazemos muita questão de valorizar todas as mulheres, tanto as que estão na nossa equipe quanto da nossa rede de fornecimento e nas colaborações e parcerias. Desde as arquitetas para as lojas até, digamos, se tiver uma empresa de entrega de moto que é só de mulheres, nós vamos preferir contratar. Buscamos apoiar e potencializar mulheres no mercado de trabalho em geral, assim como nos relacionarmos e cocriarmos com criativas que admiramos. Isso é muito especial para a Haight, estamos seguindo um caminho que acreditamos. Sabemos que no mercado, se você olhar para ele, as diretorias ainda são primordialmente masculina, branca e heterossexual. As mulheres ainda têm mais dificuldade para chegar aos cargos de liderança — mulheres pretas, então, nem se fala. Uma coisa que valorizamos é buscar potencializar, do nosso lado, e, a partir disso, encorajar outras marcas a fazer um movimento parecido. Pode parecer que o movimento que a Haight faz é muito pequeno perto de tudo que acontece no mundo, com certeza é. Mas é um movimento individual — se todo mundo fizesse um pouco, conseguiríamos mudar mais rápido.
Fotos: MATEUS RUBIM.
Produtora Executiva: ANNA GUIRRO.
Assistente de Fotografia: CAIO BACKER.
Tratamento de Imagem: NANDA CARNEVALI.
Beauty Artist: LAIS LARCHER.
Modelo: SUZANA MASSENA (FORD).
Modelo: KAREN TONIETTO, (FORD).