Maria Grazia Chiuri e Karishma Swali falam sobre moda artesanal
Maria Grazia Chiuri, diretora criativa da Christian Dior e Karishma Swali, diretora dos ateliês Chanakya e da Chanakya School of Craft, falam sobre o rico universo dos trabalhos artesanais, savoir-faire, empoderamento feminino e moda
Para Maria Grazia Chiuri, diretora criativa da Christian Dior, o desfile outono 2023 realizado no fim de março em Mumbai, na Índia, teve gostinho especial. Primeiro porque reflete anos de diálogo criativo entre os ateliês de bordado indiano Chanakya e o savoir-faire parisiense; e, também, porque foi o resultado de um enorme trabalho colaborativo entre essas equipes. Nesta entrevista à L’OFFICIEL, a estilista e Karishma Swali, diretora dos ateliês Chanakya e da Chanakya School of Craft – uma escola que ensina técnicas artesanais para mulheres, uma vez que tradicionalmente no país apenas homens se dedicam aos bordados –, falam sobre essa experiência, o trabalho dos artesãos e empoderamento feminino. Juntas, elas compartilham o mesmo gosto pela excelência, pelo desejo de preservar o artesanato e a paixão pela moda.
A diretora criativa conta que descobriu os bordados indianos nos anos 1990 e imediatamente ficou maravilhada com a riqueza das técnicas e sua continuidade, além dos materiais utilizados. E, acima de tudo, pelo fato de que não eram trabalhos presos ao passado, mas em constante evolução, permitindo que ela projetasse o futuro. Para a atual coleção, pontos milenares surgem em formas geométricas emoldurando paetês e cristais, há um caleidoscópio de cores na seda tecida e tingida manualmente. Revisitado, o tradicional toile de Jouy ganha ares locais.
Além do trabalho minucioso dedicado a roupas e acessórios pelos artesãos do ateliê Chanakya, as alunas da Chanakya School of Craft se debruçaram durante semanas sobre o gigantesco toran. Também conhecido como bandana de parede, tem origem hindu e funciona como um portal de boas-vindas para visitantes – costuma ser usado sobre a porta de entrada das casas. No fashion show, um painel gigantesco cobriu o Portal da Índia, monumento inserido ao cenário e que deu acesso para modelos à passarela.
Esta não foi a primeira vez que os talentos da Chanakya se mobilizaram para dar vida a um cenário para a Dior. Unindo a expertise artesanal e materiais modernos ao talento de artistas, Maria Grazia tem apresentado extraordinárias obras de arte em grande escala. A artista plástica Judy Chicago idealizou a instalação Te Female Divine para a alta-costura verão 2020; para a couture inverno 2021/22, Eva Jospin inspirou-se na Sala de Bordados do Palácio Colonna em Roma para criar uma obra de 350 m2. Outra façanha coletiva: para a alta-costura verão 2022, uma obra em grande tamanho dos artistas indianos Madhvi e Manu Parekh combinou motivos tradicionais com abstrações espirituais – os dois foram, inclusive, homenageados com uma exposição em Mumbai por ocasião do desfile. Os delicados bordados também reinterpretaram a obra de Olesia Trofymenko em sua celebração da árvore da vida na alta-costura 2022/23, da mesma forma que apareceram no cenário idealizado por Mickalene Tomas para a alta-costura do verão deste ano, misturando textura e luz.
Para Maria Grazia, a coleção prêt-à-porter outono 2023 é mais uma oportunidade de tecer novas conexões entre tradições ancestrais e inovação de ponta. Mais sobre esse intercâmbio está no diálogo com Karishma que você confere abaixo.
L’OFFICIEL Maria Grazia e Karishma, vocês trabalham juntas há cerca de 30 anos. Como essa sinergia faz fluir os projetos?
MARIA GRAZIA CHIURI Karishma e eu temos uma profunda paixão e admiração pelas artes manuais. Estamos também muito preocupadas com as suas questões contemporâneas, sobretudo em nível da transmissão, quando se trata de levar este patrimônio a uma geração mais jovem. Fiquei emocionada com o projeto de Karishma de criar a Chanakya School of Craft, e sua ideia de fazer isso para capacitar as mulheres o tornou ainda mais significativo para mim. A educação das mulheres e a salvaguarda das técnicas artesanais são possivelmente duas das mais importantes causas que desejo defender.
KARISHMA SWALI Maria Grazia e eu nos conhecemos há quase 30 anos e imediatamente estabelecemos um vínculo especial por causa da apreciação e do respeito pelos trabalhos manuais das comunidades indígenas, pelo artesanato e suas infinitas possibilidades. Ela não é apenas uma mentora de longa data, mas também uma amiga muito querida. Continuo admirada com sua capacidade de defender, promover e preservar os mestres artesãos de todo o mundo. É um privilégio e uma honra aprender com ela todos os dias. Nosso relacionamento com a Dior é íntimo; uma maravilhosa troca de ideias guiada por uma filosofia alinhada, compartilhando o apreço pelo artesanato global e a responsabilidade de preservá-lo, revivê-lo e mantê-lo sempre relevante para as gerações futuras. Vez após vez, temos a honra de trazer a visão de Maria Grazia Chiuri e da Dior por meio de narrativas artesanais únicas.
L’O Maria Grazia, esta coleção é uma oportunidade de celebrar seu relacionamento criativo de longo tempo com a Índia. Qual foi a sua primeira impressão sobre qualidade do trabalho e dedicação desses artesãos?
MGC Comecei a descobrir os bordados da Índia nos anos 1990. Fiquei maravilhada com a riqueza das técnicas e dos materiais. Mas não era um patrimônio voltado apenas para o passado. Assim que comecei a colaborar com artesãos indianos, percebi que havia encontrado parceiros que me permitiriam realmente ultrapassar os limites do artesanato, reinventá-lo constantemente para o futuro. Acho difícil definir a cultura da moda da Índia em geral, justamente por ser tão rica e vasta. Cada região tem as suas especificidades no que diz respeito ao vestuário e aos têxteis, e é isso que nos fascina. Nunca terminarei de explorar as inúmeras técnicas e histórias que eles carregam.
L’O Com a excelência dos ateliês de Paris, por que olhar o trabalho indiano?
MGC A Índia tem sido um país importante para mim ao longo da minha carreira como designer. É um lugar onde conheci colaboradores maravilhosos que me apresentaram a cultura única do artesanato indiano. É um lugar onde realmente entendi meu próprio processo criativo e o papel central que o artesanato desempenha nele.
L’O Pensando na linguagem estética, como o bordado indiano interage com outros processos artesanais feitos em Paris?
KS Essa troca de savoir-faire em cada estágio do design é representativa da relação indo-francesa. Um dos muitos artesanatos que revivemos coletivamente é o de uma trama delicada que apresenta fios enrolados trançados e interligados para formar uma trama intrincada semelhante a uma renda. Além de nossa experiência em bordados, também tivemos a oportunidade de incorporar diferentes gêneros de artesanato, como tecelagem manual e fiação manual.
A interação criativa intercultural produziu uma coleção que adapta técnicas de materiais tradicionais por meio de uma visão contemporânea.
MGC Na história da casa Dior, há um tecido francês icônico, o toile de Jouy, que foi usado notavelmente para decorar a pri meira loja Dior na década de 1940. A história deste tecido é interessante porque, na verdade era uma resposta francesa ao popular algodão estampado indiano, no século 18. Partindo dessa importante referência para a casa Dior, revisitamos essa estampa e, no lugar das flores e florestas da França, colocamos a fauna e a flora da Índia, com elementos como flores de lótus, pavões ou tigres. Achei que era uma forma significativa de refletir sobre as influências mútuas e sobre a forma como os padrões e tecidos viajam entre as culturas.
L’O Na Índia, o bordado é geralmente um trabalho mascu - lino. Qual a importância de ter mulheres nesse contexto?
KS Para mim, artesanato, cultura e a criação de uma nova autonomia para as mulheres sempre estiveram interligados. Na Índia rural, a maioria das mulheres depende economicamente de seus parceiros homens. Embora o casal possa ter papéis semelhantes no bem-estar de sua família, suas contribuições permanecem relativamente desconhecidas. Portanto, era importante proporcionar às mulheres um ambiente inclusivo com oportunidades iguais por meio do desenvolvimento de habilidades e aprendizado multidimensional focado em artes e ofícios.
MGC No meu país, na Itália, mas também na França, o bordado sempre foi considerado um trabalho doméstico feminino, algo de certa forma negligenciado. Então, ver como o legado desse ofício pode ser perpetuado pelas mulheres e como elas podem se tornar profissionais e independentes financeiramente por meio desse conhecimento é realmente inspirador para mim.
L’O Como surgiu a ideia de abrir espaços para as mulheres na Chanakya School of Craft?
KS Entendo que o artesanato representa a união de valores, comunidade, cultura, tradição e, o mais importante, um alinhamento do eu por meio da expressão criativa. A Chanakya School of Craft é a primeira desse tipo. A escola e a fundação sem fins lucrativos se dedicam a proporcionar autonomia para as mulheres por meio do artesanato e da cultura. O objetivo da escola é criar uma plataforma de aprendizado multidimensional, focada nas artes e ofícios, ao mesmo tempo que oferece oportunidades iguais a uma espinha dorsal muitas vezes ignorada de nossas comunidades: as mulheres.
L’O Karishma, pensando na cultura e na sociedade indianas, tem sido diferente ou até desafiador ensinar técnicas manuais para mulheres?
KS A escola ensina mais de 150 bordados manuais, tecelagem manual e técnicas de macramê por meio de um currículo holístico ancorado nas vozes e vidas de figuras femininas históricas. Além de oferecer um currículo multidimensional que inclui um treinamento imersivo em ofícios singulares abrangendo mais de 300 técnicas, a escola também oferece módulos de ensino sobre perspicácia nos negócios, finanças básicas e orientação para iniciar novos empreendimentos; mulheres de todas as comunidades agora podem criar sua arte com segurança, transformando não apenas suas próprias vidas, mas também a vida das pessoas ao seu redor. A escola já ensinou mais de mil mulheres até hoje, de todas as idades e origens socioeconômicas, formando uma forte comunidade de mulheres qualificadas e autônomas. Enquanto algumas optam por iniciar seu próprio negócio, outras encontram emprego nos Ateliês Chanakya e colaboram criativamente com os mestres-artesãos.
“Eu queria QUE UMA GRANDE VARIEDADE DE técnicas FOSSE REPRESENTADA NA COLEÇÃO, PARA SUGERIR A RIQUEZA DAS culturas têxteis PERTENCENTES À ÍNDIA”
MARIA GRAZIA CHIURI
L’O Como a Dior apoia a escola?
MGC Estou profundamente orgulhosa e emocionada que as muitas conversas que tive ao longo dos anos com Karishma a inspiraram a criar este projeto incrível. É uma honra e um grande orgulho poder ter acompanhado a realização de tal visão e continuar a fazê-lo em muitos projetos juntos. A Chanakya School of Craft trabalha nas cenografias dos desfiles e, nos últimos anos, tem sido uma oportunidade para as alunas colaborarem com grandes artistas mulheres, como Judy Chicago [alta-costura verão 2020] ou mais recentemente Mickalene Thomas [alta-costura verão 2023].
KS Somos sempre inspirados pela forma como a Maison Dior continua investindo em artesanato, alta-costura, cultura e empoderamento feminino. Através de um diálogo contemplativo com Dior e Maria Grazia Chiuri, artistas, criadores e artesãos, temos a oportunidade de explorar as infinitas possibilidades do artesanato e da alta-costura – de fato, um processo profundamente gratificante para nós. Esse encontro de mentes não apenas nos ajuda a elevar consistentemente nossos padrões, mas também a praticar o ofício com um ouvido no passado e um olho no futuro.
L’O Para esta coleção de outono, de onde começou o desenvolvimento da coleção, do design ou dos tecidos e artesanato?
MGC Esta coleção é o resultado de um longo processo criativo, que começou muito antes da exibição em Mumbai. Então, de certa forma, não foi tanto o resultado de alguns meses, mas certamente reflete anos de diálogo criativo. Eu queria que uma grande variedade de técnicas fosse representada na coleção, para sugerir a riqueza das culturas têxteis pertencentes à Índia: incluímos diferentes técnicas de bordado, como zardozi, appliqué e mirrorwork. Mas além do bordado, também concebemos um desenho de estamparia em bloco sobre seda e colaboramos com artesãos do Sul para produzir uma série de sedas tecidas como as que são usadas para saris. Foi uma forma humilde de mapear parte da diversidade de gestos e tradições que formam a cultura indiana.
L’O Karishma, na sua opinião, qual foi o artesanato mais complexo desta coleção produzido pelo ateliê Chanakya?
KS Com esse diálogo, as linhas entre arte e artesanato são realmente sutis. Variações contemporâneas de artesanato, como aari [bordado cujo ponto é criado por um laço na linha], appliqué [aplicação tridimensional ou em patchwork de pedaços de tecido], zardozi [bordado complexo feito com fios de metal ou mesmo fios de ouro e prata], block printing [impressão manual feita com blocos de madeira] e mirrorwork [bordado com espelhos], são usadas extensivamente em toda a coleção, capturando o espírito de renascimento e inovação de várias maneiras. Os bordados, por exemplo, também apresentam releituras de pinturas multicoloridas – que adornam móveis e veículos – distantes dos tradicionais bordados aari, que geralmente usam cores suaves e contrastantes. Há o Jardin Indien Toile de Jouy estampado com tigres, pavões e figueiras-da-índia. Espelhos e micromiçangas, ricas bordas douradas e rendas de filigrana cumprem o desejo de nossos artesãos e da Maison Dior de fazer algo novo a serviço da moda moderna e usável.
L’O Maria Grazia, o show em Mumbai trouxe uma emoção diferente dos outros desfiles que você apresentou até agora?
MGC Esta foi uma das experiências mais emocionantes para mim como diretora criativa, porque o show não era apenas uma performance criativa ou a exibição de arte visual em todas as suas formas e mídias. Foi realmente uma reunião coletiva, com o objetivo de expressar gratidão. Espero que essa energia tenha sido sentida e que tenha demonstrado ao público a beleza de trabalharmos juntos. Esse desfile foi o resultado de um trabalho colaborativo em vários níveis. E é possivelmente o que o tornou muito mais poderoso. Eu realmente senti que compartilhei seu sucesso, em primeiro lugar, com os muitos artesãos que me ajudaram a torná-lo vivo.
L’O Para esta coleção você pesquisou no arquivo de Marc Bohan [diretor criativo da Dior entre 1961 e 1989]. O que foi mais emocionante nesta pesquisa?
MGC Fiquei muito emocionada e inspirada pelas fotografias que documentam esta viagem [Marc Bohan viajou para a Índia em abril de 1962 e fez desfiles em Mumbai e Délhi, iniciando um diálogo entre França e Índia] e que hoje se encontram nos arquivos da Dior. Elas capturam o contexto colaborativo em que os dois desfiles foram produzidos com uma equipe local, e eu senti que era um precedente muito significativo para se ter em mente quando comecei a trabalhar neste projeto.
L’O O que vocês gostariam de destacar nesta coleção de outono? Quero dizer, o que mais a emociona nesta coleção? Pode ser um look ou um trabalho à mão, por exemplo…
MGC Esta é uma pergunta difícil de responder, mas devo dizer que esta coleção que desenhei de forma verdadeiramente colaborativa, desde a paleta de cores até o bordado, tem uma beleza especial porque é, precisamente, a manifestação tangível deste diálogo.
KS Para o show, as artesãs da Chanakya School of Craft criaram uma instalação de arte imersiva em grande escala na forma de um toran: uma porta ornamental tradicional que data do século 1o d.C. e é usada para receber convidados. Com o tempo, as mulheres na Índia criaram torans para suas casas, decorando tecidos locais por meio de técnicas de bordado e patchwork. Para esta instalação, as artesãs da Chanakya School of Craft criaram sua própria peça como parte de uma obra de arte maior formando um toran, para emoldurar a entrada do Portal da Índia. Este é um símbolo importante que representa o poder da comunidade, uma colaboração entre culturas para receber nossos amigos da Dior e de todo o mundo, destacando o poder do artesanato e o virtuosismo do artesanato indiano.
L’O Quando o artesanato em tecidos e a moda se tornaram uma paixão para vocês?
MGC A moda sempre foi minha escolha, minha paixão. Ela ajuda a me expressar, a me compreender. É a minha maneira de analisar as coisas. Sempre me interessou pelo fato de unir diferentes aspectos do “imaginar” e do “fazer”. E que é uma espécie de lugar onde as coisas acontecem. Como todos devem saber, trabalhei muito para chegar onde estou agora, o que significa que aprendi muito, mesmo após o término dos meus estudos. E hoje, em um cargo importante que me enche de orgulho, continuo fascinada pela moda. A moda é uma disciplina, um instrumento central para o foco na própria identidade e, acima de tudo, uma força ativa para experimentar a modernidade de forma consciente. Eu acredito na alta-costura. Acredito no artesanato: está na minha cultura e na minha herança. O savoir-faire e o artesanato são requisitos fundamentais neste processo de beleza e significado.
KS Quando criança, fui inspirada pelos valores espirituais de meus pais e pelo profundo apreço pelo artesanato; nossa casa era repleta de conversas sobre arte, cultura e o legado artesanal da Índia. Quando meu pai fundou a Chanakya [o ateliê] em 1986, sua visão era a de compartilhar o melhor artesanato da Índia com o mundo; ele o fez reunindo mestres artesãos da 13ª e 14ª gerações em Mumbai para formar um coletivo de artesanato. Consideramo-nos extremamente sortudos por trabalhar em estreita colaboração com eles, inovando através de diferentes gêneros de artesanato para criar uma oferta única a cada temporada em alta-costura, prêt-à-porter, acessórios e arte. Em minha jornada de 25 anos, tive o prazer de trabalhar com artistas, curadores e figuras públicas importantes para destacar as diversas tradições da Índia por meio da excelência do artesanato.