Moda

Marina Dalgalarrondo fala de moda e arte em entrevista a L’Officiel

Em entrevista exclusiva a L’Officiel, Marina Dalgalarrondo, criadora da Ão, fala sobre sobre arte e moda, e sobre sua carreira na marca

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Marina Dalgalarrondo: “Sou muito CDF com o meu trabalho” - Foto: Igor Kalinouski.

É arte ou é moda? Esse fracionamento tem alguma relevância em 2024? Para Marina Dalgalarrondo, criadora da Ão, nem tanto. Em sete anos de trajetória quase relâmpago, a estilista (ou artista?) tem confundido ainda mais as barreiras entre os assuntos. Marina já desfilou no SPFW, em Viena, e acaba de voltar de uma apresentação na Rússia — onde fez aparição especial na Moscow Fashion Week com ponte via BRIFW, que tem articulado showcases de novos talentos brasileiros em países fora do circuito fashion tradicional. Em paralelo, participou de exposição na galeria Mendes Wood, assinou curadoria na Jaqueline Martins e ajudou a criar os visuais da performance de Pagã, exposição de Regina Parra na Estação Pinacoteca, um dos grandes momentos da arte contemporânea brasileira em 2023. Agora, com as sócias da multimarcas Pinga, passa a ocupar com uma loja o térreo do Pivô, associação cultural sem fins lucrativos que fica no Copan e é plataforma essencial de experimentações artísticas em São Paulo. Tudo isso enquanto exercita um olhar de moda debochado que se dispõe a incomodar conceitos, rever formatos e propor silhuetas, causando estranhezas no próprio cenário em que habita.

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Marina Dalgalarrondo (à direita) e os novos estudos sobre formas da coleção de inverno 2024 da sua Ão, Bodybold - Foto: Igor Kalinouski.

L’OFFICIEL Você é uma figura tão incógnita que acho que vale uma apresentação. De onde veio Marina? 

MARINA DALGALARRONDO Nasci em Campinas e cresci em Bragança Paulista, cidade da minha mãe. Aos 20 anos fui para o Rio de Janeiro estudar indumentária na UFRJ. Então sou figurinista de formação. Comecei a carreira trabalhando em companhias independentes de teatro e fazendo figurinos para performances, mas sempre numa cena fechada, dos amigos da faculdade. Nesse período, comecei a estudar na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Entrei para fazer uma formação de base em arte e, por ser extremamente aplicada, fui ganhando cursos e fiquei dois anos estudando lá dentro. Foi quando começou a crescer esse meu interesse por artes visuais. Eu me questionava muito se queria ser figurinista, se queria ser artista. Fui entendendo aos poucos que a arte era meu caminho, mas queria trazer o universo do vestuário junto, trabalhar e falar da roupa como objeto artístico ou como consequência de um trabalho artístico. Fiz cinco ou seis figurinos de teatro enquanto desenvolvia trabalhos de arte pensando no vestuário como esse vetor, numa relação íntima com a linguagem dentro da moda. Olhava as revistas para entender como se descreviam as roupas, qual a semiótica naquilo — por que, por exemplo, era tão importante dizer que tal roupa era para o verão, qual era essa relação. Um dos meus primeiros trabalhos eram várias peças em algodão cru de modelagem base de vestido que usava como telas em branco. Daí pegava descrições de roupas que via na rua — um vestido florido com decote em V, zíper na lateral, altura mídi, acinturado, por exemplo — e aplicava esses textos nas bases de algodão; como se a descrição desse conta do visual daquele objeto. Era minha principal pesquisa, aos vinte e poucos anos.

 

L’O A Ão nasceu a partir daí? 

MD Ela veio depois que me mudei para São Paulo, em 2016. Acabei entrando no mundo de figurinos para publicidade, para fazer dinheiro, enquanto tentava capturar alguns pequenos projetos com artistas e no teatro. Mas nunca estava satisfeita, sentia que não era agente do meu próprio trabalho. Pois, quando você faz um figurino, há uma demanda — você tem uma dramaturgia para dissecar, entender esse personagem e, a partir dessas características, dar uma roupagem a ele, literalmente. Minha intenção, ao vir para São Paulo, era criar essa dramaturgia própria, construir esse personagem do zero. Precisava criar o environment, pensar na luz, na cena, no ambiente em que ele vive. Foi esse desejo que me impulsionou a fazer a Ão. Estava num movimento de querer levar a moda para a arte, mas pensei: se sei fazer roupa, o caminho pode ser outro. Meu aprendizado de estilista foi absolutamente intuitivo. Da faculdade, eu sabia as construções de figurino, a estrutura do corset, de uma crinolina, essas coisas que são próprias de figurinos de época — mas não sabia fazer uma t-shirt. Então comecei a pegar roupas de brechó, peças minhas e da minha mãe, que desmontava para extrair a modelagem plana e entender o processo. Na base da tentativa e erro, mesmo. É muita vontade, né? Cortando tecido na cama, jogando em cima do manequim, comecei a entender qual o shape que me interessava. E não tinha recursos para modelista, costureira, nada disso. Então criei a minha primeira coleção da Ão, com oito peças, todas laranjas. Aluguei um ateliê com amigas e vendia ali, sob encomenda. Foi um projeto que começou muito pequeno, de experimentar e ver se as pessoas gostavam do que eu tinha para mostrar. Na terceira coleção, peguei a vontade de produzir imagem de moda e resolvi fazer um editorial mais ousado. Reuni uma turma de amigos próximos, emprestei uma sala de escritório no Centro e fizemos essas fotos. Os looks tinham itens meio renascentistas, drapeados, acessórios de cabeça, esse color blocking de vermelhão e o verde-limão que usei muito, contrastando com o cenário de escritório pré-fabricado sob luz branca, meio cirúrgica. Esse editorial, pelo Instagram, chamou a atenção da Olivia Merquior [diretora do BRIFW], que na época era curadora do Projeto Estufa, dentro do SPFW — ela acabou me convidando e fiz o meu primeiro desfile, em 2017, com um ano de marca.

 

L’O Isso mudou tudo? 

MD Ali começamos a ganhar um público maior, vender e ter um pouco mais de recursos para produzir, mas ainda sob encomenda. Ter desfilado naquele momento foi uma oportunidade de poder experimentar essa coisa da teatralidade ao mostrar uma coleção. Queria muito poder pensar no acting, trabalhar com os visuais, os sonoros, todos os elementos. Fizemos três desfiles nos quais as modelos desfilavam com um sorriso congelado na cara; ali já entrava um pouco da performance no meu trabalho. Era uma espécie de deboche com a indústria, com a beleza, com o comportamento que se espera de uma modelo. A Ão tem essa comunicação meio debochada, meio cômica, que faz parte da minha personalidade. Queria cutucar o que se esperava de uma marca na cena, era uma plataforma para comunicar estética de um tempo, mas de forma contorcida, para provocar incômodo, fazer pensar. E há essa coisa do corpo que falo muito, né? Em todas as coleções, batemos na distorção da silhueta, o quanto a roupa pode ser um invólucro que pode mudar a maneira que você se comunica com o mundo. Sempre tentei criar esse link com artes visuais, dança, arte conceitual, até objetos, é meu norte desde o começo. Arte é uma coisa que me toca de verdade, eu sou a pessoa que chora vendo obras. Porque o tempo que um artista gastou para expressar algo, seja uma pintura, seja um vídeo, o que for… ver aquilo num espaço, galeria, instituição, e aquilo conseguir te comunicar alguma coisa, acho isso tão rico, tão forte. A moda é um lugar que encontrei para expressar a minha arte, o que penso sobre o que vivemos. Sinceramente, às vezes não me sinto tão pertencente ao meio da moda, nem ao meio das artes. Fico bem nesse meio lugar e acho isso bonito, é uma sensação de que não estou categorizada como estilista, artista, performer. Gosto de poder não ser uma ou outra coisa.

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Foto: Igor Kalinouski.

L’O Lembro da sensação desses primeiros desfiles no Estufa, você realmente criou um ruído intenso ali no SPFW. 

MD No meu primeiro desfile, algumas pessoas falaram que aquilo não era moda, era figurino. Acho muito engraçado, pois eu sou figurinista e é isso mesmo! Se quer enxergar como figurino, eu entendo como elogio. É uma construção de personagem e um convite também: quer ser esse personagem, um pouco contemporâneo, um pouco renascentista, que tem uma silhueta não tão reconhecível?

 

L’O Acha que choraria se visse as roupas da Ão, não fossem suas? 

MD Se não tivesse feito, acho que sim. Difícil me deslocar, pois tenho tanta relação com elas. Tudo o que é Ão, o que sai do ateliê, o que você encontra na arara de loja, passou pela minha mão. A modelagem principalmente. Tenho costureiras que trabalham para a marca, naturalmente. Mas crio tudo aqui, então, nesse processo de vai e volta, de finalizar a peça piloto… no final, já criei tanta intimidade que não sei me distanciar.

 

L’O Acompanhando a história da Ão, me parece que você sempre construiu um universo próprio, resvalando tanto na arte quanto na moda, mas sem ser abraçada pela moda de fato. Sente isso? 

MD Digo que a Ão teve dois turning points. O primeiro foi o convite para participar do SPFW, o segundo foi quando fiz a sociedade com a Pinga, em 2020. Nesse momento, a marca deixou de ser apenas de ateliê, com produção sob encomenda, para ser uma estrutura que tem pronta entrega e produção — ainda que em pequenas quantidades. Quando você se vê num momento em que precisa estruturar a marca, entende que é preciso ter um equilíbrio maior entre o que é o conceito que gostamos e o comercial. E olha que acho que o comercial da Ão ainda consegue dar uma flertada com algo um pouco diferente. Mas encontramos, nessa sociedade, exatamente esse equilíbrio. E eu bato muito o pé na identidade da marca, em como apresentamos as coleções. Nossa comunicação, especialmente no Instagram, é muito cuidada e até um pouco velada. Preciso que a Ão seja fiel a esse conceito que acredito necessário para estar no mundo. É uma marca que busca comunicar essa relação arte/moda/performance, causar um estranhamento. Então mantemos essa comunicação de uma marca que pode não ser assim tão convidativa, até um pouco complicada. Mesmo assim, angariamos uma base interessante de clientes que nem pensava em atingir. Talvez por se apresentar no mundo assim, ela não conquiste esse espaço no mainstream. É uma escolha, um trabalho mais lento, pois requer um certo aprendizado do público. E isso talvez tenha a ver com o fato de ela não ter sido tão acolhida pela moda. Não é apenas sobre o cliente aceitar. É sobre as estruturas que fazem a coisa funcionar — a indústria, o cenário, os veículos. Sinceramente, não sei se a Ão ainda está sendo colocada num lugar de marca underground, porque já não é: está desfilando, vendendo em multimarcas, saindo em revistas, vai abrir um espaço novo na rua. Mas sinto uma certa resistência, uma aceitação um pouco tardia. Não sei se é talvez um não entendimento, sabe?

 

L’O Acha que é uma resistência por não entender o que você faz ou por não se aceitar que seja um trabalho que não é só moda, mas tem um pensamento artístico? 

MD Acho que tem muito de não entender, mas não sei dizer. Falando por mim, tenho uma relação de atração com o que me é estranho, com aquilo que não entendo, que não é natural. Fico atraída mesmo, quero decodificar. E nem todo mundo tem essa relação com estética. As pessoas em geral preferem ver o que elas se reconhecem. Então uma marca que seja mais decodificada, talvez seja mais fácil, não só para o público, mas para as instituições. É mais fácil você querer estar perto daquilo que já entende como parte do seu universo. Então acho que há sim um tipo de repulsa por aquilo que você não se relaciona de imediato.

 

L’O O que é curioso, já que a moda é o cenário que deveria ter maior vontade de abraçar algo diferente. 

MD A moda é a cena mais avant-garde de estética que temos, ou deveria ser assim. É o lugar onde estamos sempre buscando o novo, revisitando algo de outra forma, repaginando e recapitulando. Há essa busca pelo que vem depois, pelo que vem de novo. A moda funciona dessa maneira mais do que a arquitetura, pelo tempo dos projetos, e até mais do que a arte, que está sempre lidando com outras questões além dessa demanda de urgência. A arte contemporânea tem essa intenção de quebra, num viés mais profundo, não é algo estético que você consegue assimilar como a moda. Mas sinto que a arte tem acolhido melhor essa novidade da Ão. Estou fazendo coleções e vendendo roupas, mas, no paralelo, sou chamada para participar de mostras, assinar curadorias para galerias, fazer colaborações com artistas. E não acho que seja só porque eu esteja próxima de pessoas do meio da arte, sinto mesmo que esse cenário tem um acolhimento que acontece mais facilmente. Eu nunca fui atrás disso, nunca bati na porta de uma galeria, nunca abri o meu ateliê para visita de curadores. Mas me chamam pelo que acompanham pelo Instagram.

 

L’O Que é parte da sua obra. 

MD Exato. Eles olham aquilo e percebem, acham que tem um quê de novo, que vale me chamar para fazer parte de uma exposição por conta daquele trabalho. Esses convites acontecem muito mais via arte do que via moda. E eu nem sou artista, sou estilista.

 

L’O Acha que, no contexto da moda, você é alguém à frente do seu tempo? 

MD Gostaria de pensar que sim. Mas também tenho clareza de que não estou inventando a roda, sabe? Tenho, sim, as minhas inspirações, tenho os estilistas que estão num lugar de admiração, que chegaram em lugares que almejo, não só esteticamente. Como a Clô Orozco, por exemplo, que foi alguém que chegou muito perto de algo que me interessa, de ter essa produção superautoral, profunda, que entrou e manteve-se no mercado. Ao mesmo tempo, essa construção de relação entre arte e moda já foi, e é, feita fora do Brasil, seja o Margiela, seja a própria Rei Kawakubo, que é a maior referência. O JW Anderson, um cara que faz curadoria para galerias e está na direção da Loewe, criando coisas superpróximas do universo das artes, mas com uma gestão de uma label poderosa. Isso já acontece, mas não aqui. Por isso digo que não estou inventando a roda. O que acho é que no Brasil ainda falta uma visão de moda nesse sentido. Acredito muito no potencial da moda de ocupar espaços artísticos, pois, além de ser uma expressão artística, ela só pode crescer com essa associação. O mercado de arte é um mercado de luxo, assim como o da moda. Chega a ser inteligente economicamente, estrategicamente, fazer essa associação, essa troca de público. E é falar sobre a cultura de um país, quando você faz uma exposição sobre a trajetória de um estilista. A moda tem que sair desse meio que é só a loja, o shopping, o desfile, e ocupar esses outros espaços. Nossa criação… os estilistas que fazem essas coisas bordadas absurdas, isso é uma obra de arte para mim. Pode estar no museu, por que não? O que falta é esse cenário no Brasil.

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Foto: Igor Kalinouski.

L’O É curioso você afirmar com veemência que não é artista. Como funciona essa definição? 

MD Não, eu sou artista também. Porém, essa definição tem muito mais a ver com o ofício — e, hoje em dia, meu ofício é ser estilista. Estou aqui todos os dias, desenvolvo as coleções, faço as modelagens. Em paralelo, de forma salpicada, sou chamada para fazer parte de uma exposição e aí produzo algo que seja direcionado para aquele projeto. Eu não estou no meu dia a dia de ateliê fazendo arte, não é minha função — mesmo achando que, às vezes, algumas peças que produzo são, sim, obras de arte. Mas acabo me colocando como estilista, apesar de eventualmente ser artista. Acho bom poder oscilar, as coisas podem ir se misturando. 

 

L’O Mas quando você está no ateliê, mesmo que fazendo uma modelagem, isso não pode ser encarado como um fazer artístico? 

MD Sim, mas acho bom pensar na comparação também. Sempre que alguém me diz que eu não sou estilista, mas artista, é invariavelmente um comentário que nivela a moda por baixo em relação à arte. Como se o trabalho artístico necessariamente tivesse mais potência — e, para mim, ambos estão no mesmo patamar. O que me importa é que eu esteja fazendo um bom trabalho, sendo uma boa artista ou uma boa estilista. A categorização não me interessa tanto. 

L’O Uma coisa não tem um peso maior que a outra? 

MD Talvez tenha, mas prefiro olhar pelo viés de que não precisa haver tanta diferenciação assim.

 

L’O Acha que a questão do produto, tão ligado à moda, é o que direciona o pensamento das pessoas em achar o artista mais válido que o estilista? 

MD Sim, talvez o fato da obra de arte ser um objeto mais único do que uma roupa, o que agrega mais valor. E o fato da moda ser seriada, replicada mais do que a arte. Eu também dou um peso maior para algumas peças únicas que produzo, que dão mais trabalho, em relação às que fazemos com mais quantidade. Isso é natural. Mas acho que o mais importante é olhar para o corpo da obra, sabe? Vejo a Ão como um projeto. Não sei se é um projeto de arte ou de moda, e acho que isso nem importa. O que espero é poder ter um potencial de crescimento para realizar coisas em campos variados. Sempre digo que o meu desejo ao construir a Ão não era apenas fazer coleções e vender em loja, mas também fazer filmes, fazer som, exposições, desfiles, poder fazer imagem de moda. É a ânsia de uma grande desculpa para que eu possa exercer todas essas funções que me interessam.

 

L’O Já que tocou no corpo da obra: você tem, desde o começo, desenhado uma história que repensa e remexe os mesmos temas, nesse sentido de trabalhar a estranheza da silhueta, dessa esquisitice que tanto gosta. De onde veio isso? 

MD Talvez tenha a ver com essa atração que falei, pelo diferente. Mas essa atração mesmo é algo que nem sei explicar — por um corpo amorfo, por essa ideia de volumes que saltam do corpo de maneira não controlada. Acho que essa silhueta talvez me interesse pelo simples fato de ser estranha. A Comme des Garçons é uma marca que faz muito isso, que distorce a silhueta, é algo que sempre me atraiu muito nela, esse corpo não reconhecível. Também tem a ver com a ideia da pesquisa em vestuário histórico, algo que me interessa — sou fascinada pela ideia da crinolina, essa estrutura quase arquitetônica que você constrói para criar várias formas possíveis, sempre indo além da silhueta. Agora, porque isso me interessa… é uma incógnita até para mim. Talvez por ser diferente, por tirar o seu olhar do que é reconhecível. De repente você está vendo algo extraordinário que te faz sentir, mesmo que de maneira sutil, uma alegria mixada com estranheza.

 

L’O Essa história do corpo amorfo é, talvez, uma vontade de marcar presença no mundo? Pois a sua roupa, mesmo a mais básica, não é convencional. Sempre há uma excentricidade pairando, você trabalha um senso de existência. 

MD Acho que é justamente essa busca por algo novo, que cause impacto. Se você vai para algum rolê com uma roupa diferente, isso já traz uma conversa, né? Quando cheguei a São Paulo, vinda do Rio, fiquei impressionada com aquela cidade cinza e todo mundo de preto. Por isso fiz uma coleção inteira laranja, era um sentimento de “nossa, seria bom uma corzona aí nessa monotonia”. Há essa ideia de destaque na multidão, que talvez tenha a ver com essa busca por algo que não é do cotidiano, não é esperado. Por isso a nossa comunicação não é estridente, a roupa já fala bastante por si. Já é um objeto. E há o corpo da obra, estamos contando a mesma história desde o início, falando sobre alteração da silhueta, sobre volume extracorporal, sobre a relação com o vestuário histórico. É a mesma narrativa que vai sendo atravessada pelas questões do agora, e daí chegamos nas coleções. Essa narrativa contínua tem muito a ver com o corpo da obra de um artista. Se você analisar as carreiras, vai ver que muitos deles persistem num assunto, numa ideia, e investigam aquilo o tempo todo. É possível extrair tanta coisa de um mesmo assunto, enriquecendo e se aprofundando nele. Isso me interessa na criação, poder olhar sempre para o mesmo assunto e achar vieses novos. Não estou interessada em saltitar de tema em tema, isso não é a moda da Ão. Ela é um centro de pesquisa de volume, de silhueta, da distorção das coisas e misturas estéticas — daí vem o drapeado, a alfaiataria, o sportswear, entender como junto tudo isso. Esse tema central ajuda a me aterrar, ou talvez eu me perderia na criação.

 

L’O Sempre achei que você tinha um lado de criação mais cerebral, mas por essa conversa também senti muito sobre instinto. Como é esse equilíbrio, qual o lado real? 

MD É um equilíbrio dos dois lados mesmo, você captou bem. Sou muito CDF com o meu trabalho. Não tem como tocar uma marca com esta estrutura, sem uma equipe imensa, fazer quatro lançamentos anuais, vender, planejar o comercial e o conceitual, se você não é muito organizado. Eu tenho uma agenda toda planejadinha, o que preciso fazer, ir atrás, pesquisar. A minha base é muito organizada. Por isso consigo também ter o momento de piração. Não adianta ser a pessoa mais criativa se não é metódica o suficiente para dissecar a sua ideia e botar no mundo. Acho que tenho muita sorte por ter os dois lados.

 

L’O E agora você vai preencher esse espaço físico. Como vai funcionar? 

MD Abrimos agora em abril esse espaço que é uma loja da Pinga dentro do Pivô, no térreo do prédio, com produtos e curadoria minha, com 70% Ão e 30% de marcas circulando ali dentro, que tenham a ver com esse nosso universo. Estou muito feliz, porque o ambiente do Pivô é incrível. É um lugar que sempre frequentei, enquanto espectadora. Eles têm várias ações que são muito legais, o leilão, as residências e exposições. Nunca pensei que pudesse fazer parte dessa maneira, ocupando realmente. Será um local que pensará a estética do que é a Ão e com quem nos identificamos no cenário brasileiro. Vamos fazer collabs com outras marcas — a primeira com a Jalaconda, já na abertura. E queremos criar colaborações com artistas, desenvolver projetos em conjunto, seja de produtos ou realizar exposições que criem conexões com o vestuário. É para ser um espaço muito frutífero para esse tipo de cena acontecer, essa relação entre arte e moda que é uma relação de troca de conhecimentos. E que se encaixa perfeitamente no desejo de tratar a Ão como uma plataforma, não ser apenas uma marca de roupas que tem uma loja. Não há como ignorar o fato de que estamos entrando numa instituição artística, temos que fazer jus à história dessa locação que é o Pivô, trazer a arte para ainda mais perto. Mas também não queremos que seja apenas uma loja conceitual, daquelas que você entra e acha que é uma grande exposição inatingível. Estará lá o look conceitualzão que é quase uma obra, mas também teremos a ecobag, o chaveirinho, o sabonete. É para ser um espaço acessível, poder ter esse equilíbrio.

 

L’O Seu lado artista não sofre contra o lado comercial? 

MD Sofre. Mas tive que aprender, né? Com o tempo fui entendendo que faz parte do trabalho e é imaturo negar ou ficar incomodada de ter que pensar na linha comercial. Ao passo que compreendi que essa parte é o que sustenta o lado experimental da Ão, passei a olhar com mais carinho. É utópico achar que se consegue trabalhar uma marca megaconceitual com produtos únicos, que naturalmente têm um preço mais elevado e um público menor, ainda mais no Brasil. É naïf pensar assim. Então quando vejo o comercial da Ão funcionando bem, percebo ser um sinal de maturidade, minha e da marca. Sofro eventualmente, pois é um gasto de energia e de tempo, mas acho normal. O plano ideal é que, no futuro breve, eu possa delegar essa parte para poder criar linhas separadas dentro da Ão. E então poder me dedicar ao lado lúdico, da criação, da imagem, que é o que as pessoas conhecem.

FOTOS: IGOR KALINOUSKI. 

MODELOS: DANIELE (ATTO), FABI ANDRIOLI (ATTO).

PRODUTORA EXECUTIVA: ANNA GUIRRO.

ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA: VICTORIA CAVALCANTI.

ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA: RODRIGO GONÇALVES.

RETOUCH: IGOR KALINOUSKI.

BEAUTY ARTIST: DANI QUESSADA.

AGRADECIMENTOS: PIVÔ ARTE E PESQUISA.

POR: EDUARDO VIVEIROS.

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