Moda

Olhando para fora do eixo: a moda baiana é o foco

Os olhares se movem para uma criação afirmativa preta e baiana, que não precisa mais estar no Sudeste para brilhar
moda baiana
moda baiana

A Bahia está passando por um processo de redescoberta – pelo menos sob a ótica das semanas de moda paulistanas. Entre SPFW e Casa de Criadores que apresentaram novas coleções neste meio de ano, três novos nomes de Salvador estrearam nas escalações das marcas participantes. Reflexo de um movimento que mescla uma vontade de olhar para fora do eixo com a urgência de uma reparação histórica perante a potência criativa do movimento afro-brasileiro.

“A força dessa nova leva vem muito por esse espaço ocupado pela cultura afro, que hoje tem sido bastante discutida”, analisa Isaac Silva, que migrou da Bahia para São Paulo há dez anos e serve como ponto de referência para os conterrâneos. “Nós trocamos muito, são todos muito inspiradores para mim. Diferentemente da minha geração, eles não precisam sair de lá para acontecer. São bem unidos e querem fortalecer aquele cenário.”

moda baiana
Fotos: Bruno Ribeiro

Apesar do buzz, não caia na armadilha de pensar que essa tal moda baiana é um fenômeno recente. Mônica Anjos, convidada para o line-up da CdC, tem uma carreira de 25 anos de marca e pontua certeira: “Quem abriu os olhos foram vocês do Sudeste. Nós somos um processo de resistência coletiva que foi conquistando esse território”. Nascida no Rio Vermelho, em frente à Praia da Paciência, Mônica tem um trabalho poderoso em cima da identidade da mulher preta. “A estética da soteropolitana tem perspectivas muito diferentes da das pretas sulistas. Temos referências que são grandes, não só do movimento negro, mas da música, dos blocos afro, como o Ilê Aiyê, que tem retomado toda essa nossa autoestima. É uma identidade muito própria.”

Nada que impeça, porém, que as “exportações” para São Paulo superem as vendas locais. “Eu visto mulheres que buscam sua identidade, independentemente da cor da pele. Mas deixando bem claro que somos de religião de matriz africana e que a nossa pauta é esse resgate identitário, é sobre como amaciar tantas dores que sofremos e continuamos sofrendo ao longo da história”, explica a criadora, enquanto finaliza a coleção que falará sobre Mercedes Baptista, a coreógrafa que criou o balé afro-brasileiro e foi a primeira bailarina negra a integrar o corpo de dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na década de 1940. A estamparia carrega o trabalho de Alberto Pitta, fundador do Cortejo Afro e artista plástico essencial do circuito local.

moda baiana
Fotos: Bruno Ribeiro

Naturalmente, falar dessa cena de moda baiana é falar do vigor da criação negra – já que Salvador é a cidade com a maior população que carrega essa ancestralidade fora do continente africano. Há seis anos, sempre no 21 de novembro, acontece por lá o Afro Fashion Day, evento dedicado a revelar o capital humano local, que reuniu, em 2020, 37 marcas da cidade. “Queremos dar visibilidade a tanta gente bacana que tem por aqui. Muito antes de as pessoas adotarem o ‘black lives matter’, nós já fazíamos isso há tempos”, pontua Fagner Bispo, curador da iniciativa.

Veterana do AFD, a Meninos Rei entra agora no SPFW via seleção feita pelo projeto Sankofa – uma ação de inserção de oito criadores racializados na semana de moda, com suporte e mentoria de nomes já consagrados. Tocada pelos irmãos Céu e Júnior Rocha, a marca começou na camisaria e desenvolveu a partir daí sua moda masculina, sempre calcada na estamparia ultracolorida característica dos tecidos africanos que é repensada em shapes contemporâneos – abrindo espaço para as mulheres e chegando a vestir a cantora Margareth Menezes.

A terceira estreia, também graças ao Sankofa, foi do Ateliê Mão de Mãe. Idealizada por Vinicius Santana, a etiqueta é a mais nova do grupo e tem especialização no handmade, especialmente do crochê. Com visão nata de empreendedor, ao lado do namorado e sócio Patrick Fortuna, o rapaz de 24 anos começou a história do ateliê em meio aos perrengues da pandemia. Na necessidade de fazer a vida girar durante os lockdowns, juntou a mão de obra criativa da mãe, Luciene, de vivência forte no trabalho ma- nual, com a febre do Instagram que foi o shortinho de praia crochetado. Vendendo para amigas, a linha aumentou para biquínis e outras peças veranis até receber a atriz Fernanda Paes Leme na loja – visita-surpresa que lançou o nome da marca ao vento e multiplicou a demanda.

Em menos de um ano, eles já têm mais duas artesãs pro- duzindo as peças únicas, em um esforço de modernizar o crochê clássico – seja nas modelagens, seja na combinação de cores e pontos – e vestir todos os corpos. “É também um projeto de empoderamento dessas mulheres. Queremos treinar mão de obra para que elas se tornem independentes”, conta Vinicius, que enxerga claramente a infusão de interesse externo na produção local. “É uma nova geração que está se impondo. Não queremos mais aceitar a submissão de um pensamento único.” Patrick complementa: “Estamos desconstruindo um movimento que estava enraizado, em que as pessoas vinham para cá apenas para buscar referências”.

moda baiana
Fotos: Bruno Ribeiro

“Para a gente, só faz sentido se for todo mundo junto”, concorda Hisan Silva, que toca a Dendezeiro desde 2019 ao lado de Pedro Batalha. A dupla, que viralizou e monopolizou as atenções da moda jovem brasileira nos últimos meses, dá pesos iguais à estética de raízes urbano-soteropolitanas e à discussão de pautas político-identitárias. Por meio de mil colaborações (a última, junto à banda Afrocidade), ajudam a reforçar esse momento coletivo que permeia a capital baiana, dividindo naturalmente os holofotes que ganham – atitude que vai refletir na próxima apresentação da marca, também dentro da Casa de Criadores. “O que tentamos fazer é que o mercado perceba, de uma vez por todas, que nossa criatividade também é inesgotável”, diz Pedro. “Aconteceu de várias pessoas estarem na mesma sintonia. É uma cena unificada de moda, música, artes plásticas, design, tudo ao mesmo tempo”, define Hisan. “Salvador é um vulcão que entrou em erupção.”

Tags

Posts recomendados