Cultura

Cartier: Ana Elena Mallet fala sobre exposição no México

Brilho e essência! Cartier abre exposição essencial na Cidade do México, mesclando ícones da sua trajetória com a cultura da América Latina.

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A diva do cinema mexicano, María Félix, com seu colar de serpente.

Com quase 200 anos de existência, a Cartier atravessou um mundo em intensa transformação enquanto construía o poderoso legado imagético das suas joias. Parte dessa história foi reunida na exposição El diseño de Cartier: un legado vivo, inaugurada em março no Museo Jumex, na Cidade do México.

Com curadoria de Ana Elena Mallet, a mostra reúne 160 peças emprestadas de acervos particulares e, principalmente, pinçadas dos cofres da Cartier Collection — um esforço dos últimos 50 anos da joalheria francesa em resgatar, para sua coleção privada, joias e ornamentos produzidos desde a sua fundação a fim de preservar o legado que começou com Louis-François Cartier em 1847.


É a segunda vez que uma exposição da Cartier — a 38a montada pela maison ao redor do mundo — acontece na capital mexicana. “A ideia é retornar às origens da criação”, definiu a curadora em visita privada que
L’OFFICIEL acompanhou no Jumex. A expografia, assinada pela premiada arquiteta Frida Escobedo, reúne centenas de painéis feitos à mão que remetem à pirâmide de Tenayuca, monumento asteca, através dos registros do artista alemão Josef Albers na década de 1930.

Jeanne Toussaint, que dirigiu a Cartier entre 1933 e 1970.
Preciosidades dos arquivos da Cartier Collection em exposição na Cidade do México, incluindo a serpente e o par de petites crocodilos de María Félix.

Essa intensa troca de valores culturais ecoa por toda a preciosa mostra pensada por Mallet. Para além de contar a história das criações da Cartier, a mexicana tira o foco das pedras e diamantes, assim como das celebridades que passearam com as peças, para que o público preste atenção na construção do estilo da casa. Para isso, coloca lado a lado joias que foram feitas na última década ou há 50 anos, provando que sempre houve um patrimônio visual em evolução.

Conta também detalhes que influenciam essas criações, seja da tradição japonesa, da arte islâmica ou — como era de esperar — dos moods latino-americanos. O gosto especial para os mexicanos é a presença de um núcleo voltado especialmente à atriz María Félix. Diva única do cinema local e ícone de elegante extravagância mundial entre os anos 1940 e 1960, La Doña (como era chamada) teve uma história íntima com a Cartier. Além de compradora, fez as suas encomendas bem particulares: como o colar de serpente em ouro branco e amarelo, coberto de diamantes, de quase 60 centímetros. Ou os dois crocodilos, também transformados em colar cravejados de esmeraldas, que fazem parte da história mítica da casa: diz-se que María levou à tiracolo os dois animais à butique da Cartier, para inspiração, pedindo que os copiassem.

É a primeira vez que as duas peças são mostradas juntas, devoção de honra da casa francesa à capital mexicana. Além de outras preciosidades, como um dos primeiros relógios Santos, da linha criada pela Cartier para o brasileiro Santos Dumont, no começo do século 20, e um broche em formato de flamingo encomendado em 1939 para Wallis Simpson, então Duquesa de Windsor, quando Eduardo VIII foi simpaticamente exilado como governador das Bahamas pela família real britânica — o pássaro é símbolo daquele país.

Na Cidade do México, L’OFFICIEL conversou com Ana Elena Mallet sobre suas visões a respeito do legado da Cartier e as conexões com o México.

Ana Elena Mallet

L’OFFICIEL A primeira coisa que me chamou a atenção na exposição é que as legendas não falam sobre os tipos de ouro, os diamantes ou quais pedras foram usadas nas joias, levando o olhar para as peças como objeto. Era essa a ideia?
ANA ELENA MALLET Sim, a nossa vontade é falar sobre a forma e função das joias. Sabemos que a função é adornar o corpo, claro, mas queremos que o público veja primariamente as formas e as mudanças no estilo das peças ao longo do tempo. Tivemos uma grande discussão precisamente sobre as formas de apresentação. O cenário e a iluminação foram pensados especialmente para esse foco, para que as pessoas vejam as peças e o que elas representam. Para quem quiser saber mais, há QR codes e um livreto em que contamos quem usou, como usou, todos os detalhes sobre as matérias-primas.

 

L’O Você já atuou antes com moda, como curadora. Como vê que a joalheria pode ressoar no seu trabalho nas artes?
AEM Joalheria é algo que realmente me interessa. Em 2012, cocurei uma grande exposição sobre prata mexicana. Temos aqui uma imensa tradição em trabalhos com prataria, essa mostra ia de 1890 a 2012, um século inteiro de joalheria e objetos de prata. Tive que aprender muito sobre as diversas técnicas, como isso se aproximava da joalheria em diferentes períodos e estilos. Em boa parte das exposições que faço, tento integrar joias. É um assunto muito importante no México. Se você visitar o Museo Nacional de Antropología, na Cidade do México, verá um acervo cheio de joias. Hoje, chamamos de antiguidades, vemos com um olhar arqueológico. Mas a cultura mexicana tem esse affair histórico com adornos, que ecoa até na nossa arquitetura.


L’O Você é uma mulher mexicana olhando para o acervo de uma marca francesa que tem comunicações com a cultura do seu país e da América Latina. Aprendeu alguma coisa inesperada nesse diálogo?
AEM A primeira coisa que fiz, no processo desta exposição, foi tentar entender a relação da Cartier com o México, para além de María Félix. Fazer as perguntas certas, ver quando e por que abriram a primeira butique por aqui, saber quem eram essas clientes. Então percebi que o México sempre foi cosmopolita. Não só pelas pessoas daqui que consumiam as joias, mas por quem vinha de fora usando peças Cartier. Aprendi que a joia é um assunto universal, é algo que lhe acompanha no avião, na sua bagagem, em momentos especiais. Como Barbara Hutton, que viajava pelas suas casas ao redor do mundo e levava consigo todos os seus objetos Cartier. Não importa se você faz parte deste ou daquele país, é algo que pode te seguir em qualquer lugar. Acho isso muito interessante.

Vistas da exposição, que inclui o icônico broche do pássaro engaiolado feito por Toussaint (ao lado)

L’O Como fazer uma exposição como esta, dedicada a um legado que é quase bicentenário, sem perder a conexão com o hoje ou cair na nostalgia?
AEM Isso era algo que me preocupava muito. Na abertura, alguém me perguntou porque não identificávamos a quem as peças pertenceram. Isso foi proposital, não queríamos um show dedicado às celebridades que usavam Cartier mas, sim, ao estilo da casa. Não queria que o público visitasse uma exposição de pessoas usando joias, mas se concentrasse nos objetos per se. Evitamos a nostalgia olhando para as peças com um viés contemporâneo e entendendo que mesmo uma peça dos anos 1930 pode ser usada hoje. Por isso decidimos não mostrar imagens de celebridades ou pessoas da família real. Claro que amo ver Wallis Simpson usando as joias, mas não precisamos mostrá-la. Cartier é sobre a forma, sobre o estilo. É uma exposição contemporânea com um take contemporâneo, daí as vitrines, que misturam peças novas com criações antigas — e, se você não olhar as legendas, não consegue identificar a diferença de quando foram produzidas. O repertório está ali.



L’O
O que é um legado vivo para você?
AEM Eu sou uma historiadora da arte. Quando sou contratada como curadora para trabalhar com indústrias ou marcas que querem fazer algo sobre a sua história, percebo que muitas não têm um arquivo nem se importam com esse esforço. É algo que me preocupa muito. Como podem preservar o seu heritage e dizer para a nova geração que são excelentes se não têm um passado para projetar no futuro? Quando a Cartier me convidou, o que me deixava mais curiosa era entender como eles reconstruíram esse legado através da Collection. É algo muito importante, especialmente nesta era digital, em que tudo está fadado a desaparecer. É preciso entender como preservar esse legado que te ajuda a entender quem é e como existirá pelos próximos 100 anos.


L’O Além das joias, a mostra dá um foco especial, por motivos óbvios, em María Félix e Jeanne Toussaint, designer da Cartier entre os anos 1930 e 1970, deixando os homens da história da casa fora do holofote. Isso foi proposital?
AEM Eu nada sabia sobre Toussaint, antes de mergulhar nos ar- quivos da Cartier. Só em descobri-la, ver os seus looks, seus modos de vida, percebi que tínhamos que contar a história dessas mulheres no México. Jeanne tinha uma personalidade tão poderosa quanto María. O que ela fez na Cartier é maravilhoso: sua visão de futuro, ligando a marca com a moda e não só à alta joalheria. Sempre pensamos nos irmãos Cartier, em Louis Cartier, mas as mulheres ligadas à maison também foram muito importantes. Esta é uma exposição extremamente feminina. No arquivo da Cartier, são quase todas mulheres, as nossas reuniões semanais eram mais de 20 juntas. Na exposição, temos a Frida Escobedo fazendo a expografia. Considero uma escolha óbvia para os tempos que vivemos, especialmente em um país como o México, com tudo o que está acontecendo com as mulheres aqui. Temos que deixar óbvio que as mulheres têm uma presença não só no mundo do luxo, mas também no profissional.


L’O Qual a sua visão sobre María Félix? Ela era um ícone do cinema, uma diva. Mas, em relação à Cartier, além de ser alguém que usava, assumia certo papel de cocriadora com as suas encomendas nada triviais.
AEM Sabe o que é mais interessante? Achava que a minha geração era a última a lembrar de María Félix aqui no México. Os meus pais sempre falavam sobre ela, La Doña e seus maridos, seus filmes, seus cavalos e as viagens a Paris, tantas lendas e histórias. Mas, quando comecei a trabalhar com essa exposição, os jovens para quem dou aula ficaram eufóricos com o assunto. Percebi que a nova geração tem um fervor por saber mais sobre María, sobre o personagem que ela inventou e reinventou em diferentes períodos. Foi uma grande surpresa! Acho maravilhoso que uma mulher como aquela poderia ter existido em um país tão machista como o México e, ainda hoje, ser relevante e admirada. María construiu o seu próprio legado e ele ainda está vivo. Sinto que podemos trazer um novo olhar sobre quem foi ela. Não só um ícone, mas também uma mulher extremamente feminista, ainda antes dos movimentos feministas.


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Ainda sobre María, tenho que perguntar: a história de que ela levou filhotes de crocodilo para serem copiados em formato de joias é real ou lenda urbana?
AEM Fiz essa mesma pergunta para a Cartier! É o primeiro assunto que todo mundo questiona, se María realmente levou os crocodilos, se estavam vivos ou empalhados. Ela manteve essa história até o fim da vida, dizia: “eu os levei até a loja e disse ‘façam rápido antes que cresçam’”. A questão é que María sempre contava mil histórias, tantas que obviamente não eram verdadeiras — mas era tão eloquente, e viveu tanto e fez tanto na vida, que você não tinha como duvidar.


L’O Você é capaz de apontar a peça mais importante da exposição, sua favorita?
AEM É curioso, pois, obviamente, esta mostra reúne peças belíssimas e exuberantes. Mas, para mim, o que mais brilha é o broche que Jeanne Toussaint fez nos anos 1940. Quando Paris foi tomada pelos nazistas, ela desenhou esse broche com um pássaro preso numa gaiola. Jeanne foi interrogada, quase detida, naquela época. Então, quando Paris foi libertada, fez o mesmo pássaro fora da gaiola, simbolizando que a cidade, e ela mesma, sentiam-se livres. É uma peça pequena, longe de ser superluxuosa, que mostra que a joalheria pode ter muitas histórias, muitas camadas, nessa ligação com momentos importantes. Ela representa muito do que é esta exposição. Não é sobre o material usado, é sobre o símbolo. Tanto que o broche está isolado em uma vitrine própria, com os desenhos de criação, para que se possa entender toda a história de Jeanne sendo uma pessoa contestadora, revolucionária de certa forma — e expressando isso através de uma joia. É arte, mas é história e também ativismo.

A expografia handmade imaginada por Frida Escobedo.

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