Memórias de armário: o sentimento e as roupas
A moda gosta muito de discutir tendências e novas formas de vestir, mas com frequência perde de vista o essencial: o ser humano que usa aquelas roupas. Nosso armário, aqui na vida real, funciona em uma velocidade muito diferente da dos desfiles. E, com o tempo, construímos em nossa história uma relação afetiva com o que há dentro dele.
Foi a partir de um pensamento assim que Emily Spivack montou seu trabalho como articulista e artista plástica. Nos últimos anos, ela assinou uma coluna na T Magazine, revista do The New York Times, sobre a afeição de pessoas por objetos que consideravam especiais, e fez uma série de residências artísticas – como no MoMA, em que pedia aos visitantes que descrevessem em detalhes o que vestiam, uma espécie de registro antropológico da moda do cotidiano. Sua visão de trabalho agora dá assunto à série documental Histórias para Vestir, disponível a partir deste mês na Netflix. Com oito episódios, a produção é baseada na pesquisa que Emily fez para o livro Worn Stories, best-seller de 2014 que teve uma segunda publicação, Worn in New York, três anos depois.
Livros e programa seguem o mesmo caminho: são uma reunião de memórias a partir de algum item de vestuário com significado particular. Aparentemente trivial, a sequência de entrevistas parte da premissa de que todos temos uma história interessante, absurda ou afetuosa sobre alguma peça – seja uma recordação da infância, seja aquele casaco dos sonhos encontrado em uma liquidação.
Mas Emily mergulha na investigação e mostra quanto as roupas podem ser definidoras em nossa existência, além do apego bobo e consumista. Com um ótimo trabalho de busca de personagens, ela reúne depoimentos como o do ex-saxofonista de Tina Turner, nos anos 1980, que usa até hoje nos palcos um presente da cantora. Ou da senhora Park, uma coreana que se agarra a um suéter amarelo de poliéster, recebido de um monge budista, como fonte de energia de vida.
Temático, cada episódio mostra como se constroem essas relações com o ato de se cobrir, como uniformes ou símbolos de sobrevivência (ou até mesmo o “não cobrir” de uma comunidade nudista).
Histórias para Vestir vai muito além da moda exatamente por se propor a tratar as roupas como ícones culturais importantes da humanidade. Não só como marcadores de status ou de pura expressão, mas também no viés de posicionamento perante a sociedade – desde discutir a não binaridade de gênero dentro da comunidade judaica até mostrar quão essencial é, para uma pessoa recém-liberta do sistema carcerário, envergar pela primeira vez algo que simbolize essa nova fase. Em um momento em que a indústria começa a se apegar à ressignificação de peças antigas, a série ajuda a mostrar que o fio da história pode ser muito mais interessante do que o papo de passarela.