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João Gordo dá à sua história todas as letras para fazer um clássico

João Gordo dá à sua história todas as letras para se fazer um clássico, entre altos e baixos, efervescência, fúria e intensidade

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João Gordo - Foto: Julia Mataruna.

Sem desafinar, o cantor, compositor e apresentador João Gordo dá à sua história todas as letras para se fazer um clássico, entre altos e baixos, efervescência, fúria e intensidade. Confira!

Em 1981, época do lançamento da MTV nos Estados Unidos, os primórdios da banda Ratos de Porão eram definidos na cidade de São Paulo. Influenciados pelo movimento punk rock, cujo início deu-se anos antes entre a juventude que vivia nos subúrbios ingleses de Browley, East End e West End, além dos estados norte-americanos de Michigan e de Nova York, quatro garotos da capital juntaram-se para fazer a música que ouviam nos discos “Teenage Depression”, do Eddie and The Hot Rods; “Never Mind The Bollocks”, dos Sex Pistols; “Pure Mania”, dos The Vibrators, entre Ramones, The Clash e tantos outros títulos comercializados na Punk Rock Discos, aberta por Fabio Zvonar. O lançamento do álbum “Gritos Suburbanos”, gravado pelos grupos Olho Seco – também fundado por Fabio –, Cólera e Inocentes, apressou a decisão de Betinho (bateria), Jão (guitarra), Jabá (baixo) e Chiquinho (voz), esse último substituído por Mingau pouquíssimo tempo depois, de escrever as primeiras letras e apresentar o Ratos de Porão nos shows que aconteciam em salões espalhados pela metrópole.

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João Gordo - Foto: Julia Mataruna.

Pensado para ser um compacto de seis músicas do Cólera, como contou um dos seus integrantes no documentário “Guidable – A verdadeira História do Ratos de Porão”, dirigido por Fernando Rick e Marcelo Appezzato, o projeto foi convertido na coletânea SUB (1982) e reuniu três outros grupos – Psykóze, Fogo Cruzado e Ratos, que comemorou a estreia nos vinis. Enquanto preparavam novas composições alguns admiradores apareceriam para assisti-los, a contar o backing vocal do Extermínio, um jovem de voz potente chamado João. “Eu era fã dos caras, tinha uma fita demo e frequentava o ensaio deles na Vila Piauí [zona Oeste paulistana]. Chegava lá e ficava gritando, ficava cantando as músicas no microfone e eles viram que eu era interessante.”

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João Gordo - Foto: Julia Mataruna.

João Francisco Benedan, o João Gordo, como ficou conhecido, nasceu em março de 1964, e passou a infância no bairro do Tucuruvi. Seu interesse por música o levou no início da adolescência, aos 13 anos, para a Wop Bop Discos, uma das lojas mais visitadas da Galeria do Rock. “Eu era roqueiro, gostava de Kiss, Led Zeppelin e Queen, e quando apareceu o punk foi meio que devastador o negócio, uma puta moda doida”, diz. Retratado de forma equivocada por alguns veículos de imprensa no País, o movimento foi sendo esmiuçado pelos jovens, que logo compreenderam seu repertório e adotaram seus códigos, das roupas aos acessórios e penteados. “Um dia fui ao dentista e vi uma matéria sobre os punks, o Sex Pistols e o Malcolm McLaren, [empresário da banda inglesa], e isso me influenciou totalmente a deixar de gostar de rock pauleira, como a gente dizia nos anos 1970, que era o hard rock, jogar os discos fora e começar a ouvir só o punk.” Os conflitos com o pai, Milton Benedan, ex-policial militar, tornaram-se frequentes e a família acabou indo morar em Angatuba, na região Sudoeste do Estado. “O meu pai tentou salvar a minha adolescência me levando para o interior e só me fodeu. Lá eu aprendi tudo o que não prestava, a fumar maconha, a beber, um monte de coisa errada.” Expulso de casa, ele foi morar com a avó e voltou a frequentar a estação São Bento do metrô, no centro, onde os punks se concentravam e as gangues rivais desafiavam-se, sobretudo, as de São Paulo e do ABC (sigla para as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul), sob os olhares da PM, que agia com truculência naqueles anos de repressão chancelada pelos órgãos da ditadura militar (1964-1985). Foi ali que aconteceu o encontro entre João, Jabá e Mingau, selando a sua entrada para o grupo. “Na época tinha o convite pra ser vocal do Psykóze e baixista do Cólera. Ainda bem que entrei pro Ratos.” Já sem Betinho, que voltaria mais tarde para uma turnê e depois se afastaria novamente, eles produziram, em parceria com Fabio Zvonar, o long-play “Crucificados pelo Sistema”, de 1983, “o primeiro álbum completo de uma banda de punk/hardcore a ser lançado na América Latina”.

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João Gordo - Foto: Julia Mataruna.

Ainda que a Pauliceia tivesse recebido o festival brasileiro de punk rock, “O Começo do Fim do Mundo”, organizado pelo SESC, que durou dois dias e contou com a participação de 20 bandas, entre Ratos, Cólera, Inocentes, Ulster, M-19 e Negligentes, para selar a paz entre os grupos de SP e do ABC, houve um arrefecimento daquela cena de modo geral, muito em razão da opinião pública que passou a considerá-los violentos. Porém, como disse Clemente, baixista das pioneiras Restos de Nada e Inocentes, para o documentário “Botinada – A Origem do Punk no Brasil”, assinado pelo ex-VJ Gastão Moreira, “enquanto tiver um moleque na rua a fim de fazer um som e tal, o ideal punk nunca vai morrer”. No caso do Ratos de Porão esse hiato não durou muito e eles se reagruparam para gravar a sequência composta por Cólera e Ratos de Porão “Ao Vivo” – Gravado no Teatro Lira Paulistana (1985); “Ataque Sonoro” (1986); “Descanse em Paz” (1986) e “Vivendo Cada Dia Mais Sujo” e “Agressivo” (1987), em que se percebe a contribuição de João para esses LP’s – “Eu gostava de outro tipo de música, do punk europeu, ouvia as bandas da Inglaterra, como Discharge, Varukers, Disorder, Chaos UK; grupos da Suécia, o Anti-Cimex e o Headcleaners–Huvudtvätt; e da Finlândia, o Kaaos, o Riistetyt e o Terveet Kädet. E eu trouxe esse estilo, que é uma coisa mais do Discharge, de conjunto inglês. Cantei as músicas que o Jão tinha feito e trouxe mais esse lado europeu”.

Foi um pouco depois que João aproximou-se dos músicos do Sepultura – os irmãos Max e Igor, Paulo Jr. e Andreas Kisser –, estabelecendo uma parceria de vários anos em que compartilharam influências e dividiram os palcos de festivais e de programas de TV. “Brasil”, de 1989, e “Anarkophobia”, de 1991, foram produzidos na Alemanha e representaram a expansão do nome do grupo no exterior. Na volta da segunda turnê pela Europa, Spaguetti deixou o conjunto e Boka entrou para ser o novo baterista. O álbum “RDP Ao Vivo” (1992), terceiro produzido pelo selo Eldorado, também foi marcado pela troca de baixistas – no lugar de Jabá chegou o Walter e em seguida o Pica-Pau. Vieram “Just Another Crime... In Massacreland” (1994), “Ratos de Porão – Feijoada Acidente? – International” (1995), uma homenagem às bandas que mais curtiam, e “Carniceria Tropical” (1997), mixado em São Francisco, nos Estados Unidos. Na virada do milênio, eles desenvolveram de forma independente o EP “Guerra Civil Canibal” pela gravadora Peculio Discos, criada pelo Boka.

Eu ERA ROQUEIRO, GOSTAVA de KISS, Led ZEPPELIN e QUEEN, e QUANDO APARECEU o PUNK foi MEIO que DEVASTADOR o negócio, UMA puta MODA DOIDA”

Marcado pelo excesso – de trabalho, do uso de drogas e com pouco mais de 200 quilos – João foi internado duas vezes na unidade de terapia intensiva; a primeira por um acidente que culminou em derrame pleural, que é quando há o acúmulo de líquido entre as membranas em torno dos pulmões e da parede interna da caixa torácica; e a segunda por overdose. Para comemorar as duas décadas da banda, além de uma revista com edição especial, eles fizeram “Sistemados pelo Crucifa”, uma espécie de viagem de volta aos tempos de “Crucificados pelo Sistema”. Sem tempo de piscar os olhos, os fãs puderam ouvir ainda “Ratos de Porão – Ao Vivo no CBGB”, gravado no bar CBGB – OMFUG, o berço do punk nova-iorquino onde tocaram os Ramones e Patti Smith, e “Onisciente Coletivo”, de 2002. Quando Juninho foi chamado para ser o baixista uma onda saudável invadiu o RDP, com muitos deles assumindo a dieta vegana. “Homem Inimigo do Homem” (2006) levou a uma longa turnê pela Europa, antes da pausa agendada para a cirurgia bariátrica a que João se submeteu.

Com “Século Sinistro”, de 2014, eles voltaram para o estúdio em um material apontado pela revista Rolling Stone Brasil, como um dos melhores títulos daquele ano. Vale mencionar o “Especial Ratos de Porão – 40 Anos”, apresentado pela marca de moda jovem Vans. Seguindo o formato de live, o recurso mais usado na quarentena da pandemia da Covid-19, que garantia a realização de reuniões sem aglomeração, o episódio mediado por Marco Bezzi, do canal Galãs Feios, teve música ao vivo com a participação de Rappin’Hood, e depoimentos de amigos de longa data, a exemplo de MV Bill, Mano Brown, Andreas Kisser e de Dr. Mao, dos Garotos Podres. “Necropolítica”, uma crítica à realidade trazida pelas últimas eleições e pelo governo de Jair Bolsonaro, marcou o repertório escolhido para 2022.

CONTROLE REMOTO

Se João grafou o seu nome como vocalista e compositor de uma das maiores bandas de punk rock, hardcore, metal, crossover thrash do planeta, sucesso semelhante deu-se na carreira como apresentador. Ao lado da ex-VJ Sabrina Parlatore estreou no “Suor MTV”, um programa praiano pensado para o verão de 1997. O temperamento divertido e escrachado do cantor, somado à postura contestadora, pareceu a escolha certeira para um canal jovem, que pretendia romper padrões. Isso sem falar que era interessante ter um ídolo da música destacando o conteúdo produzido ali. Assim, meses depois de fazer bonito nas areias, ele assumiu o game interativo “Garganta e Torcicolo no Paraíso das Ovelhinhas”, criado pela MTV Brasil e pela Herbert Richers Entertainment e desenvolvido pela empresa dinamarquesa ITE. E não parou mais, engatando uma atração na outra, passando por “Gordo Pop Show” (1998), “Gordo on Ice” (2000) e “Gordo à Bolonhesa” (2004). Com o talk-show “Gordo a Go-Go” (2000- 2005) foi premiado como melhor apresentador pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). “Cara, trabalhei 12 anos na MTV. Foram programas sensacionais e programas ‘escrotérrimos’. O ‘Gordo Visita’ era sensacional, fui na casa de cada pessoa doida, na casa do Jair Rodrigues, na casa do Erasmo Carlos, sei lá, muita gente que me deixou emocionado. Tinha um programa lá, o ‘Gordo Freak Show’, que era completamente fora da caixinha, hoje em dia jamais passaria pelo Ministério Público, era ultrajante o bagulho. Outro era o ‘Fundão MTV’, com um professor meio fascistão que ficava chamando os moleques de ‘burro’, falando altas groselhas.” Um pouco antes de sair, recorda, uma mudança na programação passou a dar destaque para os artistas do stand-up comedy, deixando alguns nomes de lado. “Foi quando o [Marcos] Mion me convidou para ir para o ‘Legendários’, na Record. Falei, ‘caralho, cara, eu tenho até música contra a Igreja Universal, não vai dar ‘pra mim, não’. Daí ele falou, ‘o programa vai ser mais foda do que o CQC, vai ser mais foda que o Pânico, não sei o que...’. Por A mais B ele me convenceu que valia a pena, que ia ser do caralho, sem contar que eu ia ganhar o dobro do meu salário. Aí eu peguei e fui”, conta.

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João Gordo - Foto: Julia Mataruna.

Ainda que a estrutura fosse interessante, ele deixou o “Legendários”. “Confesso que tinha vergonha de fazer aquilo.” Algumas ideias vieram, pilotos foram gravados, mas as propostas não caminharam. “Com esse perfil meio radical, as pessoas sempre tiveram medo de me contratar. ‘Ah, como ele fala palavrão’, sabe aquela coisa assim? Tem também o meu perfil político que é meio enérgico e o pessoal já me tesoura de testa.” Tal como fazem jornalistas, artistas e comunicadores, ele abriu o próprio canal na internet. “Virei youtuber e montei o ‘Panelaço’, né, que já tem dez anos. Esse programa é foda, já foi Mano Brown, a Costanza Pascolato e muita gente boa.” Enquanto prepara receitas veganas, às vezes com a participação de um chef, João conversa com seus convidados – o comediante Rafinha Bastos provou escondidinho de mandioca, o rapper Criolo foi de gaspacho e o cantor e ativista Eduardo Taddeo comeu lasanha de abobrinha.

A receita quase passou do ponto quando o canal GNT lançou um outro “Panelaço”, também sobre culinária, no final do ano passado. “Entrei com um processo contra a Globo porque eles plagiaram o meu programa, roubaram o nome na caradura, como se eu não existisse.” O podcast “Superplá” se soma às atividades de uma agenda que se abre para diversos compromissos, caso do lançamento da sequência do disco “Brutal Brega”, composto de hits da música popular em ritmo hardcore, em parceria com o guitarrista Val Santos, idealizador do conceito, e a gravadora Wikimetal. Agora, em “Brutal Brega – MPB Mode”, os ouvintes podem curtir canções de Sá & Guarabyra, de Moraes Moreira, de Caetano Veloso e de Tim Maia. Tendo a tecnologia a favor – “a gente não precisa mais de estúdio pra gravar nada, grava tudo em casa” –, João se desdobra em muitos. “Tenho vários projetos, cara, tenho um de psychobilly black metal com Asteroides Trio; outro de dubstep metal com o Paulo Cyrino, o Babylons P; e um de ragga metal com o pessoal do raggamuffin ou dancehall, que é o Arcanjo Ras e a Sistah Chilli. Fiz uma música com letra antifascista, uma mistureba de ragga, reggae e metal e ficou uma coisa muito interessante.”

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João Gordo - Foto: Julia Mataruna.

Falando nisso, há conversas sobre a edição de um livro com as mais de 200 letras compostas por ele desde 1979. “Tem esse material pra ser lançado, talvez pela Darkside, a mesma que lançou o ‘Viva la Vida Tosca’ [sua biografia escrita com André Barcinski, jornalista e diretor do programa “Eletrogordo” (2016-2019), apresentado no Canal Brasil].” Entre as turnês com o Ratos de Porão – uma das mais recentes foi na Europa, onde fizeram 16 shows em 25 dias –, e as demais atividades, João e sua esposa, Vivi Torrico, tocam o “Solidariedade Vegan”, criado no começo da pandemia. Juntos de colaboradores e daqueles que apoiam a causa, eles preparam e distribuem refeições para a população em situação de rua no centro de São Paulo. “São 180, 200 ou até 300 marmitas por dia. Abrimos uma cozinha solidária, que se paga com delivery e com as doações das pessoas. Do início até agora já entregamos 300 mil marmitas. A gente está sempre ali, fazendo esse trabalho na Cracolândia, não dá pra deixar os caras assim, sem ajuda. A Vivi que idealizou essa parada, é ela quem vai atrás de tudo, faz rifas, mobiliza os outros e mostra muito o coração dela, que é gigante.” Pai de Victoria e de Pietro, o cantor confessa que está correndo atrás do prejuízo: “Fui muito louco até os 60 anos e agora me deu um tilt, comecei a fazer dieta e parei com um monte de coisas que me ferravam. Ainda quero ver meus netos”, pontua.

Fotografia: Julia Mataruna. 

Edição de moda: Will Pissinini.

Texto: Adriana Brito. 

Tratamento de imagem: Retouch Concept

Agradecimentos: Avesani Comunicação e Mula Preta.

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