Marcelo Rubens Paiva fala sobre seu livro - agora filme do momento
Retratos de família! Marcelo Rubens Paiva revela o que sentiu ao ver o seu livro "Ainda Estou Aqui" se transformar no filme do momento.
Encontro Marcelo Rubens Paiva em um hotel no Lido, onde é realizado o Festival de Veneza. “Ainda Estou Aqui”, dirigido por um amigo do escritor – o cineasta Walter Salles (“Central do Brasil”) – e baseado em seu livro homônimo, teve estreia mundial no evento italiano. Ele está surpreso com a recepção calorosa que o longa recebeu: aplausos por dez minutos, de uma plateia que lotou a Sala Grande. “Surpreendente. Um festival de prestígio, com muitos filmes importantes e cineastas que a gente admira... A minha família é italiana, e Veneza é realmente incrível! E é bom estar aqui com os meus amigos, contar a minha história, mas eu admito que fiquei impressionado de ver aquilo [os aplausos na sessão oficial]. E teve repercussão internacional gigante!”
“Ainda Estou Aqui” foi apresentado na Mostra Competitiva do festival de cinema mais antigo do mundo, posição em que o Brasil não aparecia desde 2001, quando o próprio Walter concorreu com “Abril Despedaçado”. O filme narra a vida da família Paiva, no Rio de Janeiro, de 1970, durante a ditadura militar brasileira. Tudo muda inesperadamente a partir do desaparecimento do pai de Marcelo, o ex-deputado Rubens Paiva. “Às vezes fico me perguntando ‘será que vale a pena contar essa história?’ , mas os produtores sempre me falaram que temos sim que expor porque tem uma geração que não sabe, que não viu [filmes do diretor grego] Costa-Gavras, por exemplo, que não viu filmes que contam como foi a ditadura na Argentina, no Chile... E o Walter fez algo do jeito mais universal possível, que você possa se identificar com aquela família, em qualquer país, que está sofrendo de violência e perseguição, nesse momento em que a democracia está ameaçada, em que as pessoas não sabem o valor da democracia porque simplesmente esqueceram”, diz.
Marcelo ressalta que o filme aborda questões importantes e relembra as manifestações políticas recentes no Brasil. “As pessoas foram para as ruas com bandeiras sobre o AI-5. Tem gente que nem sabe o que foi o AI-5. A minha geração sabe muito bem. Então, talvez, as histórias tenham que ser recontadas sempre, e eu acho que esse é o papel do filme. O mundo está vivendo um período individualista, de rancor e ódio. Estamos revivendo coisas que achávamos que já tinham sido enterradas. Uma epidemia de desinformação atacou a sociedade.”
Eunice, a protagonista
O desaparecimento de Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello) é o que impulsiona a narrativa, mas no centro de tudo está a mãe de Marcelo, Eunice (vivida por Fernanda Torres). Ela precisou se reinventar: mudou com os filhos para São Paulo, estudou Direito e tornou-se ativista, sendo defensora das causas indígenas. “A minha mãe teve a brilhante capacidade de identificar o nosso problema como um tanto global. Ela sempre falou ‘não é pessoal, não é contra a nossa família, é contra o mundo’. Tanto que ela foi advogada dos direitos civis. Ela via o contexto universal.”
A ideia de transformar o livro “Ainda Estou Aqui” em filme foi de Walter Salles, e começou em 2015. Ele era amigo de Ana Lúcia, uma das irmãs de Marcelo, na época em que os Paiva moravam no Rio. “Walter é o maior cineasta que conheço, um diretor clássico. Ele conhecia a minha família, era amigo da minha irmã e frequentava a casa. O meu pai me levou com o Walter para ver um show do Simonal, no Maracanã”, relembra Marcelo.
“Ainda Estou Aqui” impressiona pela fidelidade na reconstituição dos anos 1970, com detalhes da residência em que a família Paiva ocupava. Detalhes que comoveram o próprio Marcelo.
“Acompanhei o processo do roteiro, mas não só eu, as minhas irmãs também. Fui ao set, estava com um pouco de receio, não sabia qual emoção iria experimentar ao ver uma casa igual a minha. Acharam uma locação bastante parecida, mobiliaram de acordo com o que minhas irmãs falaram. Quando entrei, foi como voltar no tempo. Senti o cheiro do café que a minha mãe fazia, que estava congelado na minha mente há 50 anos. Foi um choque.”
Nesse momento, Ana Lúcia, uma das irmãs de Marcelo, chega e participa da entrevista. Ela fez o croqui da habitação em que moraram para ser usado pela direção de arte. Marcelo segue falando de algumas sentimentalidades. “Quando o Selton começou a se transformar em Rubens, a gente tomou um baque. Ele é meu amigo há tempos e passou a entender o meu pai através da minha perspectiva. A Nanda é uma camaleoa. É um fenômeno, não tenho nem o que falar. Ela pesquisou e viu a minha mãe dando entrevistas que nem eu conhecia.”
A performance de Fernanda é um dos pontos altos da película. Indicada ao Oscar 2025, a atriz faz de Eunice uma personagem inesquecível – e divide o papel com a mãe, Fernanda Montenegro, que a interpreta nos últimos anos de vida. Pergunto a Marcelo como foi conviver com essa mulher forte, mas, ao mesmo tempo, extremamente contida. “A minha mãe nunca teve essa conversa com a gente: ‘papai morreu’. A gente nunca a viu chorando. Isso que você falou é fantástico porque ela mantinha tudo no lugar. Ela queria mostrar para os amigos que estava tudo igual, que ela continuava digna.” Ana Lúcia emenda: “Quando éramos crianças nunca falávamos que papai tinha desaparecido. Foi só quando o Waltinho começou a trabalhar no projeto, que a gente descobriu que cada um dizia uma coisa – que ele tinha sofrido acidente de carro ou que ele tinha enfartado... A gente nunca conversou sobre isso”. Marcelo complementa, revelando como os filhos viviam uma situação peculiar. “As pessoas se afastavam. As crianças não, mas os pais falavam ‘não se envolvam com eles – são todos comunistas’. A minha mãe mudou o círculo de amizades dela e passou a ter convívio com mulheres desquitadas, viúvas, lésbicas e estrangeiras.” Foi nessa levada, que passa a quilômetros de distância da tradicional família brasileira, que Eunice criou os filhos, protegeu a memória do marido e não permitiu que o futuro abreviasse a sua luta.