Prêt-à-porter: coleções lembram a linha tênue entre moda e arte
Referências vindas de expressões artísticas e roupas esculturais apareceram em várias coleções do prêt-à-porter outono/inverno 2024-25
Referências vindas de expressões artísticas e roupas esculturais apareceram em várias coleções do prêt-à-porter outono/inverno 2024-25, lembrando a linha tênue entre moda e arte. Confira!
A conexão entre moda e arte já rendeu muito pano para mangas. Charles Frederick Worth, o pai da alta-costura, se considerava um artista e criou a etiqueta para que pudesse assinar seus vestidos como acontecia com quadros e esculturas. Não foi o único. Paul Poiret, por exemplo, declarou categoricamente em 1913: “Sou um artista, não um costureiro”. Outros não chegaram a verbalizar, mas se sentiam como tal. Houve as roupas conceituais dos anos 1980, as estratégias associadas às artes contemporâneas na década seguinte. Mesmo assim, Martin Margiela, cujo trabalho poderia ser considerado arte, sempre insistiu que moda é apenas um ofício, seguindo a separação ocorrida ainda no século 18.
O filósofo norueguês Lars Svendsen lembra que criações mais conceituais não são feitas apenas para serem roupas-como -arte, mas também para funcionar como um investimento na marca, de modo a gerar renda. “Dissociar-se do mercado sempre foi uma estratégia importante para aumentar o capital cultural, mas o objetivo de aumentar o capital cultural da moda é em geral usá-lo depois para aumentar o capital financeiro”, explica. Por outro lado, é inegável que em alguns momentos a moda esteve ombro a ombro com a arte – e, também, com a arquitetura – como nos anos 1920.
Gabrielle Chanel era amiga de Picasso e Stravinsky, Elsa Schiaparelli colaborou com Salvador Dalí. Gustav Klimt, Henri Matisse, Alexander Rodchenko e Sonia Delaunay cruzaram a fronteira aproximando suas criações da moda. No cenário contemporâneo, temos nomes como Cindy Sherman e Nan Goldin. Grandes espetáculos como os de Alexander McQueen geraram reflexões sobre a objetificação na moda, como aconteceu em 2001 com o cenário formado por uma caixa de espelhos. Hoje em dia, as abordagens podem até serem mais modestas, porém a arte continua alimentando o processo criativo de vários designers, enquanto outros não deixam de levar para a passarela peças esculturais promovendo questionamentos sobre a sociedade da qual fazem parte e espelham, como vimos na temporada prêt-à-porter outono/inverno 2024-25 internacional.
A inspiração vinda da obra do fotógrafo Robert Mapplethorpe e o apoio da fundação que leva seu nome conduziu o estilista francês Ludovic de Saint Sernin à semana de moda de Nova York. Mapplethorpe começou em 1975 a registrar adeptos do S&M (sadismo e masoquismo) underground, composições estilizadas de nus masculinos e femininos, flores delicadas e naturezas mortas. Toda essa atmosfera influenciou a coleção com looks masculinos e femininos. Já os designers Piotrek Panszczyk e Beckett Fogg da Area levaram para as roupas olhos googly conectando surrealismo e pop art, 1920 e 1960, Man Ray e Andy Warhol. “A beleza não está apenas nos olhos de quem vê, mas também na experiência compartilhada entre o artista e o público”, dizem os estilistas, que estão comemorando dez anos de marca.
Em Milão, a Max Mara investiu em Sidonie-Gabrielle Colette, ícone feminista da belle époque, escritora e intelectual francesa que também ficou conhecida por suas apresentações mímicas, trabalho nos palcos e no jornalismo. A silhueta suavemente arredondada da década de 1910 inspirou casacos com novas construções intrigantes. Os clássicos masculinos adorados por ela foram reinterpretados em casacos, cabãs e jaquetas poderosos. A Giorgio Armani, que abriga na galeria Armani/Silos a exposição Aldo Fallai for Giorgio Armani, 1977-2021, até 11 de agosto, estendeu o assunto e o levou para a sala de desfile, com a modelo Gina di Bernardo, rosto de várias de suas campanhas com o fotógrafo, abrindo o show.
O calendário parisiense foi ainda mais rico em ações aproximando moda e arte. Depois de passar pela Jean Paul Gaultier alta-costura e pela Chanel, Alphonse Maitrepierre lançou a Maitrepierre em 2018 com o objetivo de sempre trazer parcerias com artistas. Para a coleção outono/inverno 2024-25, ele explorou códigos emprestados de videogames e convidou a artista visual nova-iorquina Gracelee Lawrence para criar designs originais usando resíduos de milho geneticamente modificados. A Loewe celebrou outro artista norte-americano: Albert York, considerado “o artista desconhecido mais admirado da América”. É celebrado pelas suas pequenas pinturas de temas modestos – árvores, paisagens e flores, vacas e cães – inspiradas em mestres como Manet, Cézanne e, principalmente, Albert Pinkham Ryder. Suas obras foram colecionadas, por exemplo, por Jacqueline Kennedy. O diretor criativo Jonathan Anderson mergulhou nesse universo. Fã do surrealismo e expert em virar de cabeça para baixo itens básicos do guarda-roupa, trouxe camisas, calças e saias decorados com flores chamativas e vegetais kitsch – em formato de estampa ou mosaico de contas de caviar – em roupas, botas biker e nas bolsas Squeeze.
E por falar em surrealismo, o movimento de vanguarda iniciado no começo do século 20 e caracterizado por imagens oníricas está no DNA da Schiaparelli. Chamada de Spirit of Schiap, a coleção leva para o campo do dia a dia o mesmo espírito artístico que o diretor criativo Daniel Roseberry emprega na alta-costura. “É um guarda-roupa cheio de variações de blazer, calças e separates elegantes e roupas de noite dramáticas – com as iconografias amadas por nossa fundadora (a anatomia, a fita métrica, o buraco da fechadura) e meus amados americanismos (franjas, fivelas e jeans) fazendo participações especiais”, explica Roseberry. No mesmo caminho de roupas que fogem do senso comum, Andreas Kronthaler dá sequência ao legado de Vivienne Westwood revisitando para o outono/inverno algumas das peças mais icônicas que eles criaram juntos, como a jaqueta da coleção Exhibition do outono de 2005. Ele explica que também olhou para o traje do final da Renascença depois de visitar a exposição de Giovanni Battista Moroni em Milão. “O que me lembrou muito do início do meu trabalho com Vivienne”, comenta. O resultado passa pelo punk, subverte códigos de vestimenta e de identidade de gênero.
SEJAM A abordagem SOMBRIA, A conexão COM A PINTURA, ESCULTURA, LITERATURA E O CINEMA OU ROUPAS-ESCULTURAS, SÃO muitos OS CAMINHOS QUE APROXIMAM moda E arte, PRINCIPALMENTE NA PASSARELA, QUANDO MÚSICA, CENÁRIO E styling ENTRAM EM AÇÃO.
O cinema também foi referência importante. O último filme do cineasta alemão Wim Wenders, Dias perfeitos, de 2023, sobre um funcionário que limpa banheiros no Japão e que encontra beleza e poesia em sua vida cotidiana, foi o ponto de partida do estilista japonês Jun Takahashi para a coleção Watching a Working Woman de sua Undercover. Com o show montado num refeitório escolar, ele substituiu a música por um relato lido pelo próprio Wenders, contando um dia na vida de uma mãe solo: sua rotina de trabalho, o almoço solitário no restaurante grego local, compras e o tempo com a família. Um dia sem emoção, não fossem as roupas esbanjando criatividade. Em sua estreia na Alexander McQueen, Seán McGirr, que é fã de diretores como David Lynch e Quentin Tarantino e de filmes de terror, buscou suporte interno na coleção de McQueen de 1995, inspirada no filme Os pássaros, de Hitchcock.
O estilista Antonin Tron, da Atlein, por sua vez, escolheu heroínas de filmes de ficção para estruturar sua coleção. Principalmente Sigourney Weaver em Alien: o oitavo passageiro (1979), Natalie Portman em Aniquilação (2018) e Scarlett Johansson em Sob a pele (2014). Mais os estudos de Donna Haraway sobre ciborgues. Na passarela, suas mulheres não eram radicais nem robóticas. Porém, alguns elementos fizeram essa ponte, como os casacos em estilo aviador em cracknyl, tecido colado hidrorrepelente inventado por Cristóbal Balenciaga, em 1949, com superfície semelhante a um meteorito. Na Cha - nel, um curta-metragem em preto e branco exibido antes do desfile reuniu os atores Brad Pitt e Penélope Cruz em cenas inspiradas no clássico francês Un homme et une femme (Um homem, uma mulher) de Claude Lelouch.
Entre os estilistas japoneses, roupas flertaram com wearable art. Com paleta praticamente monocromática centrada na cor preta, Junya Watanabe disse que queria expressar a beleza do contraste entre roupas e esculturas. Sobre bases urbanas usáveis vieram, para cada look, uma construção moldada, recortada, inflada, vazada, trançada ou estruturada feito armadura. Kei Ninomiya adotou para a Noir pensamento semelhante, mas com pegada lúdica e divertida. “Para esta temporada, optei por criar algo usando diferentes cores e texturas, e brincar com o reflexo da luz”, explicou ele. Para a coleção Object, Kunihiko Morinaga, da Anrealage, criou um cenário com formas tridimensionais em movimento imaginando o mundo daqui a 100 anos e ao invés de um desfile tradicional optou pelo formato performance.
“Esta coleção é sobre meu estado de espírito atual. Tenho raiva de tudo no mundo, especialmente de mim mesma”, declarou Rei Kawakubo, explicando os 17 looks em preto com volumes desconcertantes e imponentes e apenas um, o último, em branco da Comme des Garçons. Algumas das superfícies eram impressas com arame farpado ou motivos de correntes, mas outras estavam estampadas com flores. Com acting performático, modelos desfilaram emburradas e confrontando os convidados.
Outra visão pessimista deu tom teatral à passarela em Nova York. Thom Browne criou um cenário fantástico com neve falsa e árvore “viva” inspirado em Edgar Allan Poe. O poema O corvo foi lido durante o desfile pela atriz Carrie Coon, estrela de A idade dourada. A palavra “Nevermore” do poema estava estampada nas costas de alguns blazers e foi dita em voz dramática por Coon no final da apresentação, como um chamado meio sinistro. Foi um show para pensar nas mazelas atuais e abraçar a ideia de “Nunca Mais”. “O afastamento do glamour em direção a efeitos de choque é uma tendência antiga na arte moderna”, explica Svendsen.
Sejam a abordagem sombria, a conexão com a pintura, escultura, literatura e o cinema ou roupas-esculturas, são muitos os caminhos que aproximam moda e arte, principalmente na passarela, quando música, cenário e styling entram em ação. “A arte, como todas as outras coisas, está sujeita à moda, e precisamente por isso a moda contém essa ‘consciência inconsciente’ das condições reais da arte”, diz o filósofo. Moda pode não ser arte, mas não há dúvida de que elas se alimentam.