Construindo identidades: a moda muito além das roupas
Faces de Teodora
Tete Oshima comanda a marca de-uma-mulher-só, cheia de referências memoráveis de um universo próprio.
Certas pessoas têm uma bússola muito particular para navegar em tempos conturbados. A figura magnética de Teodora Oshima é uma delas. Em meio aos lockdowns que botaram o mercado de moda on hold durante os últimos meses, ela se encontrou ao lançar a marca que carrega, além de seu nome, muito de seus processos de reencontros internos.
Jovem criadora, Tete contou com madrinhas poderosas nesse começo de carreira: da mãe, que apoiou seu sonho da faculdade de moda, à estilista Helô Rocha, ao lado de quem trabalhou por cinco anos após formada. Quem deu o fôlego amoroso que faltava para a etiqueta existir foi a cantora Liniker, a primeira a encomendar e vestir alguns de seus looks em figurinos, no começo de 2020.
“Comecei ali e não parei mais. Logo depois, veio a pandemia e aquela sensação de zero perspectiva e muito medo geral. Mas sou da opinião de que não podemos ficar paradas, então resgatei todos os anseios que tinha, um longo processo de pesquisa que já vinha desenvolvendo, e lancei a primeira coleção em setembro”, relembra a estilista. Produzida 100% em formato remoto, as roupas refletiram muito dos desejos de guarda-roupa da criadora isolada em quarentena – que também fez as vezes de modelo de prova e das próprias fotos. Ao mesmo tempo, espelham uma forma de trazer ao mundo uma conexão com suas facetas identitárias, do processo de transição de gênero a um mergulho de conexão com a cultura japonesa, por conta das raízes familiares.
Com sua marca de-uma-mulher-só, Tete fala muito sobre trabalhar a moda da maneira em que acredita e que faça sentido para este período. Tanto que as roupas são feitas sob demanda, com ajustes possíveis para as medidas das clientes, dentro de um formato viável para os tempos de hoje. “Sou um pouco sonhadora, mas a marca nasceu em um momento que já tinha aprendido a ter os pés no chão. A primeira coleção foi um grande ‘botar para fora’ do que eu tinha vontade de fazer”, o que se traduz em um mix de formas amplas com o sexy-fashionista dos franzidos de elastex em tons neutros (com exceção do vermelho, sua cor-fetiche).
A nova fase, que ela exibe na próxima edição virtual da Casa de Criadores, já promete um amadurecimento pós-intensidade das reações pela estreia nas redes sociais – o mood será de cores mais ensolaradas, bordados e silhuetas próximas ao corpo. “É um desafio adaptar o que quero fazer, dar uma filtrada nos interesses, mas continuar inserindo minha identidade de uma forma que crie desejo nas pessoas.”
Potências deslocadas
A partir de movimentos coletivos, Vicenta Perrotta reverbera novos espaços de defesa para corpos transvestigêneres dentro da moda.
Há um impulso de mudança no ar, já reparou? Com toda a discussão por respeito e espaço aos gêneros não-binários, a indústria cultural abraçou com força (e à força) a existência de manifestações que eram deixadas à parte da sociedade. De cantoras como Urias e Linn da Quebrada às modelos, atrizes e representantes no campo político, elas ganharam evidência agindo como um grande grupo que se protege. Na indústria da moda, esse curso não é diferente.
Uma das principais potências nesse cenário, Vicenta Perrotta se mantém como canalizadora de vigores criativos que não fazem parte do que o mundo formalizou como “padrão” – e usa seu trabalho de arte têxtil para lutar contra a normatividade. “É um processo que vem se organizando há bastante tem- po. Transexuais e travestis nunca fizeram parte da força de trabalho, colocadas para fora do capitalismo. Então, a união faz deslocar nossa energia para construir esse apoio em comum e reivindicar nossos espaços”, reflete a criadora,
que mantém o Ateliê TRANSmoras, há oito anos, dentro de uma ocupação nas moradias estudantis da Universidade de Campinas.
As pesquisas de Vicenta abriram caminhos para o que ela propõe como novas oportunidades imagéticas: “Construímos uma vestimenta para esse corpo, que é transmutado porque se apropriou de tanta informação que recebe”. Sua dinâmica parte exatamente daquilo que a sociedade de consumo descarta: o excesso de roupas que, refeitas e recosturadas, inventam novas silhuetas. “Nosso corpo é visto como lixo, mas nós vemos potência política no lixo. É um movimento de ir contra a indústria, que quer deter todo o poder. Rompemos esse ciclo da moda para construir novas possibilidades, usando processos autossustentáveis com esse resíduo industrial.” Com um pensamento quase anarquista, a transmutação têxtil da artista não fica só em suas mãos. Pelo contrário: atuando com um pensamento open source de criação, ela quer realizar um impacto mais profundo dentro da comunidade, que se espalha por conta da vitrine que conseguiu construir, infiltrando-se em esferas do mercado da moda, como na Casa de Criadores. “Essa roupa traz um incômodo e produz uma onda de reações nas pessoas que estão comprando, desfilando ou assistindo. Isso faz com que elas vejam novas possibilidades. A ideia sempre foi de formar mais pessoas transvestigêneres que aumentem esse ciclo”, explica. Por consequência, seus desfiles tornaram-se grandes construções em grupo, assim como as várias oficinas de costura e criação que realiza. Resultado? Uma série de novos personagens que transmitem a ideia e formam coletivos pelo país, reafirmando essa construção livre e desapegada da sociedade cisgênera.
“Cada pessoa que faz uma peça tem uma experiência única. Isso coloca a travesti em outro ciclo, além do destino que sempre foi imposto, da prostituição, da rua e da fome. Ela começa a atuar nesse campo desalienada, faz o dinheiro circular entre a gente e revê nossa força consumidora. Deslocamos tecnologias para criar um mundo possível para viver com dignidade e defender-nos do que nos faz mal”, afirma, tratando a moda como um furor de expressão política mas também como um caminho de conhecimento e, notadamente, de combate à transfobia. “A violência sempre nos atravessou. Mas temos nossa cultura, criamos nossas celebridades, pessoas que usamos como exemplos. Nosso talento é nosso ponto de atravessamento.”