Egiptomania: moda ou estilo de vida?
Eu disse, Faraó! Uma breve história da Egiptomania, da Antiguidade à atualidade, e como ela permeia a moda, a maquiagem e nossos hábitos, até hoje.
Há exatamente 200 anos, em 1822, o filólogo, orientalista e egiptólogo francês Jean-François Champollion (1790-1832), depois de longos estudos (desde 1808), publicou sua primeira tradução para a língua francesa sobre a decifração dos hieróglifos, baseada na “Pedra da Roseta”. Nela, chega à conclusão que a tal escrita egípcia era uma analogia de sons por combinações de sinais fonéticos e códigos visuais pictográficos e ideográficos, uma preciosa descoberta para a ciência arqueológica, o que legitimou uma confirmação da egiptomania – que já vinha acontecendo desde as campanhas napoleônicas no Egito, entre 1798 e 1801.
Decorridos 100 anos, exatamente em 4 de novembro de 1922 (há 100 anos), o arqueólogo e egiptólogo britânico Howard Carter (1874-1939) finalmente descobriu, depois de anos de pesquisa, o intacto túmulo do faraó Tutancâmon, no Vale dos Reis, datado do século 14 a.C. (aproximadamente 3500 passados), pertencente à 18a dinastia do Novo Império. Tutancâmon morreu muito jovem, entre 18 e 19 anos, mas o fato da descoberta de uma tumba totalmente intacta até àquela data trouxe muita curiosidade à milenar cultura faraônica e uma consequente fama contemporânea para o faraó, a ponto de ser coloquialmente chamado de “Rei Tut”.
E temos outra egiptomania, agora, também denominada de “tutmania”, especialmente na Inglaterra, devido à nacionalidade do arqueólogo Carter. Na tumba de Tutancâmon, tudo foi encontrado exatamente como havia sido deixado ao tempo do seu sepultamento: móveis, tecidos, armas, textos sagrados, joias, flabelos e utensílios diversos lá estavam para o encantamento de todos; sem falar nos três sarcófagos, um dentro do outro, sendo o terceiro (o que continha o corpo) em ouro puro pesando 110,4 kg; além da sua máscara mortuária em ouro maciço, lápis-lazúli, cornalina, quartzo, obsidiana, turquesa e vidro (num peso total de 11 kg) e, obviamente, o intacto corpo faraônico mumificado.
Houve, assim, uma significativa influência no design de então, inclusive na moda. Motivos de identidade visual da arte egípcia em bordados e estampas com hieróglifos, divindades, escaravelhos, entre outros elementos associados ao tempo faraônico estiveram em voga. Vale até mesmo ressaltar algumas joias da Casa Cartier, elaboradas a partir de 1922, com total influência de inspiração na cultura faraônica. Não pode ser esquecido o quanto os traços geometrizados da arte egípcia ajudaram a formatar e concretizar o novo padrão estético, também geometrizado, do Art Déco, ressignificado num outro Zeitgeist.
De lá para cá, os profissionais da moda, eventualmente, se inspiram nas referências egípcias, seja em tecidos, estampas, cores, formas e padrões que nos remetem ao país que, como disse o grande historiador e geógrafo grego Heródoto, “foi a grande dádiva do Nilo”. Instigado e inspirado na identidade visual egípcia ao tempo faraônico, cito pelo menos dois grandes nomes da moda contemporânea que utilizaram tais referências em suas respectivas criações. Para o resort 2023 da Balmain, Olivier Rousteing fez leitura maximalista de referências egípcias. John Galliano, na alta-costura primavera-verão 2004, chez Christian Dior, fez uma coleção, deveras conceitual, toda inspirada na cultura faraônica, bem dentro de suas habituais intensidades fashion-cenográficas. Já numa visão mais sutil, usável e até mesmo comercial, Zuhair Murad, em sua coleção alta-costura primavera-verão 2020, também se inspirou na estética que caracterizou a identidade visual egípcia, evidenciando formas, pregueados, transparências, bordados e cores que nos transportaram ao tempo dos faraós. Pela intensidade ou pela sutileza, a identidade visual egípcia, de tempos em tempos, se faz revitalizada e atualizada à moda.
E, mesmo agora, 200 anos depois da decifração dos hieróglifos e 100 anos depois da descoberta do túmulo de Tutancâmon, ainda podemos perceber, talvez, neste momento, mais involuntariamente, uma certa analogia com posturas e identidades do Antigo Egito. Se ao tempo faraônico os corpos eram mumificados para serem preservados para a eternidade na vida além-túmulo, hoje os diversos processos de rejuvenescimento, na tentativa de negar a inexorável passagem do tempo, podem assim ser comparados. Se no Antigo Egito deificavam animais, especialmente cães e gatos, a idolatria contemporânea a esses bichanos (principalmente nas redes sociais) se faz presente. Se ao tempo faraônico todos raspavam a cabeça para evitar a proliferação dos piolhos (uma das dez pragas que Deus mandou para o povo egípcio), o raspar a cabeça, especialmente entre os homens, é uma atitude fashion já praticada há alguns anos. Se os antigos egípcios usavam perucas para ornarem-se e amenizar a intensidade do sol do deserto sobre a cabeça, hoje também temos as perucas, além dos apliques e penteados que simulam uma grande cabeleira. Se a maquiagem era necessária a todos (especialmente a do contorno dos olhos em fuligem de carvão e unguentos vegetais) não só por questões estéticas e, também, por questões de salubridade para evitar a propagação da conjuntivite e para abrirem melhor os olhos devido à intensa luz solar refletida na clara areia do deserto, a maquiagem atual é de grande prática nas passarelas e no dia a dia, inclusive entre homens. Se a nudez não era considerada vergonhosa no Egito Faraônico, especialmente para as dançarinas e também o uso de tecidos transparentes e roupas bem justas delineando as formas do corpo eram comuns, eis que temos tais referências comportamentais e visuais na moda atual. E, para finalizar, se os hieróglifos eram um tipo de comunicação escrita em forma de desenhos, os emojis vêm cumprindo o mesmo papel na co- municação rápida e simbólica das redes sociais. Da Antiguidade à atualidade, eis que a egiptomania se faz presente.