Neriage: poder feminino constrói novo capítulo da marca
Rafaella Caniello e Laura Cerqueira Leite constroem, juntas, o novo capítulo da história de sucesso da Neriage, tendo nas araras da primeira loja de roupas que são o reflexo do nosso tempo
Em 2020, a Neriage estava em seu melhor momento. Mas a pandemia veio como um balde de água fria, segundo a diretora criativa da marca, Rafaella Caniello. "Eu era muito sozinha e fiquei, praticamente, um ano fazendo tudo eu mesma", recorda. Nesse faz tudo, esteve perto de fechar a marca. Mas o universo conspirou a seu favor e também das fãs. A estilista conta que pegou empréstimo, contratou vendedora e encontrou uma sócia, Laura Cerqueira Leite, hoje diretora de comunicação. Juntas, abriram, em outubro do ano passado, a primeira loja na charmosa rua Mateus Grou, em Pinheiros, São Paulo. Em cinco meses, a Neriage voltou a desfilar e fez, novamente, um dos melhores shows do SPFW, as vendas aumentaram e elas já estão formatando um espaço extra para abrigar as costureiras e modelistas. A coleção Argos - em referência ao livro Argonautas, de Maggie Nelson, inspirada no poeta Manoel de Barros - traduz desconstrução e construção. "Você pega tudo aquilo que viveu e adapta para o presente e para o futuro. Aprendemos uma nova forma de viver", diz a estilista. São looks que trazem uma proposta diferente. "Acho que é uma mulher que agora está mais certa do que quer, sabe para onde está indo", explica. Qualquer semelhança com a vida real, não é mera coincidência.
L'Officiel: Como vocês enfrentaram a pandemia?
Rafaella Caniello: Estávamos crescendo. Havíamos feito dois desfiles presenciais no SPFW, sendo que o último deles tinha sido considerado o melhor pelas mídias; tínhamos patrocínio da Tiffany, e achávamos que 2020 seria o nosso ano. Na pandemia o mundo parou. A moda sofreu. Eu era muito sozinha e fiquei, praticamente, um ano fazendo tudo eu mesma. Mas teve uma hora que eu disse ''não dá''. O problema das pequenas marcas é caixa e estoque. Se você não tem dinheiro para investir, não tem retorno. Com a pandemia as pessoas pararam de comprar e tudo triplicou de preço. Foi então que a gente contratou uma vendedora, fiz um empréstimo e, no final do ano, eu reencontrei a Laura que tinha ido morar em Paris e voltou. Com essa parceria, tudo mudou. E aí foi que a gente decidiu investir na loja.
Laura Cerqueira Leite: Acho que esse baque eu senti de outro jeito. Eu estava fazendo meu mestrado fora, e aí, do nada, estava vindo para o Brasil sem saber o que fazer da vida. No fim de 2020 eu fui conversar com a Rafa sobre a possibilidade de nos tornarmos sócias. Teve esse baque todo, mas também foi um turning point. Acho que nada acontece por acaso.
Rafaella Caniello: Se não fosse a pandemia, a Laura não teria voltado e eu teria talvez permanecido sozinha durante um tempo. Não é só a questão do investimento, mas de você tem uma pessoa para dividir a responsabilidade. Não é fácil segurar uma empresa com funcionários que dependem de você. Cada coleção errada, cada compra errada de tecido acarreta um problema gigante lá na frente.
Você sabia que a marca tinha potencial e em meio à pandemia quase encerrou o business, realmente não deve ter sido fácil.
Rafaella Caniello: Pensei em fechar a marca duas semanas antes de entrevistar a Laura. Foi muito difícil. Para enfrentar a pandemia, eu, o André [Lucian, da ESC] e o Airon [Martin, da Misci], criamos o Fora, um projeto de comunicação entre as marcas para a gente se dar apoio: trocar informações sobre fornecedores, por exemplo, e isso me deu força enquanto estava sozinha. A Neriage é o sonho da minha vida. Ela surgiu com o meu TCC, mas chegou uma hora que entendi que precisava pagar minhas contas e dividir esse sonho. Foi aí que a Laura chegou. Agora, a gente tem realmente uma chance de crescer de novo. É um desafio constante, mas também acho que as pessoas estão valorizando mais as coisas daqui, no Brasil, o que é muito importante.
O projeto Fora ainda está rolando?
Rafaella Caniello: Temos um grupo no Whatsapp, onde a gente sugere fornecedores e troca ideias. Antes fazíamos muitas lives com pessoas influentes do mercado dando dicas de como sobreviver àquele momento. Agora, como a vida meio que voltou e está tudo corrido, o Instagram está um pouco parado, mas o projeto em si é uma ideia eterna que tem a ver também com como a gente abriu nossa loja na rua Mateus Grou. Estudando muito sobre qual endereço representaria esse novo movimento de pessoas. O Airon ajudou a projetar a loja, o Isaac Silva abriu aqui do lado, tem a Reptília, alguns cafés. Chamamos de circuito Mateus Grou, que é um convite para visitar a rua. É uma posição de, em vez de rivalizar com o concorrente, se unir mesmo.
A pandemia mudou em vocês a percepção do mundo?
Laura Cerqueira Leite: Teve aquele momento inicial em que começamos a sentir a importãncia das atitudes gentis com o nosso planeta. Acho que isso passou logo, mas acho que foi importante para mostrar o impacto que a gente causa.
Rafaella Caniello: Acho que ninguém sai o mesmo de uma experiência como essa, de medo constante. Muita gente perdeu a família inteira. Principalmente para as gerações mais novas é uma mudança de cabeça e de percepção que vai ficar para o resto da vida. Daqui a alguns anos a gente vai entender de fato o que aconteceu nesta pandemia, mesmo na questão política absurda. Neste momento, a gente só quer sobreviver e tentar fazer o que pode para ser feliz no dia a dia. Neste ponto eu tive uma crise com a moda no começo da pandemia. Entendi que mais do que nunca as pessoas precisavam de moda, de beleza, de cultura. Acho que a moda também é importante para a cura das pessoas. Essa coisa da roupa, da pessoa querer se vestir para sair, se amar de novo. A nossa autoestima mudou, a nossa visão de mundo mudou.
Isso se reflete na coleção deste inverno?
Rafaella Caniello: Sempre penso que cada coleção é o capítulo de um livro. Tem muito a ver com o que eu estou vivendo, com o que a gente está vivendo. A coleção de verão era mais clara e fluida. Tinha muitas coisas vintage. Veio em uma época que eu ficava trancada e mesmo o vídeo tinha aquela sensação de liberdade. A Neriage sempre teve uma roupa mais arrumada, apesar de a gente ter investido em uma linha casual que fez bastante sucesso na pandemia porque era o que as pessoas estavam usando. Argos chega em março na loja e dialóga com a obra de Manoel de Barros, que eu gosto muito. Acho que depois da nostalgia vem o reaprender, o reinventar. Você pega tudo aquilo que viveu e adapta para o presente e para o futuro de uma forma nova. É por isso que eu fiquei muito apegada ao poema do Manoel que fala da didática da invenção. Ele questiona por que o rio que corre atrás da casa dele é um rio e não uma cobra de vidro. Ele devaneia nas palavras e no sentido das coisas. Ele fala que você tem que desaprender oito horas por dia para ser uma pessoa inteligente. Eu fico aqui pensando muito nisso. E fui falar com a filha dele, a Martha de Barros, porque havia algumas frases que eu queria usar. Ela é artista plástica, eu não sabia, e os quadros viravam capas dos livros do Manoel. São pinturas quase infantis, sem sentido nenhum, traços. E aí a gente fez uma parceria e ela cedeu duas obras que transformamos em estampa. Isso foi muito importante para o que a gente quis imprimir em termos filosóficos, essa coisa de você olhar com outros olhos. E tem um livro chamado Argonautas que fala como gênero é uma coisa livre porque uma palavra não pode ter gênero. Foi assim que a gente tentou ter formas mais impactantes, mais estruturais e fortes, a ideia da coisa que se desfaz com o tempo. Então entram os casacos mais trabalhados, bordados, que você pode usar dos dois lados. Tem estampa, tem cores misturadas. É uma coleção bem diferente das que a gente fez. Acho que é uma mulher que agora está mais certa do que quer, sabe para onde está indo.
Qual é o posicionamento de vocês e da marca em relação às causas sociais?
Rafaella Caniello: A Neriage sempre teve um trabalho, desde o início, de parcerias com artistas ou com projetos sociais. Dois muito legais foram com a Associação das Mulheres Indígenas da Amazônia e outro com as indígenas de Warao da Venezuela refugiadas em Roraima. São projetos muito delicados. Passei dois meses na Amazônia fazendo as bolsas da coleção Trilha com elas. Acredito em parcerias que geram troca com culturas e gerações. Com as venezuelanas, fizemos o chapéu gigante que foi um sucesso, as pessoas pedem até hoje e foi bom financeiramente para elas, que também entenderam que podem fazer coisas muito além do que já fazem. Estamos agora pensando em parcerias futuras. Em termos ambientais e sustentáveis, a nossa produção é 100% ética. Não considero a Neriage uma marca sustentável. Acho que você tem que ter uma sustentabilidade econômica, cultural e uma sustentabilidade produtiva. Saber quem está fazendo desde o algodão até quem está colocando a etiqueta, e se todas as pessoas estão recebendo por isso.
Vocês conseguiram mapear a cadeira produtiva e de fornecimento de matérias-primas?
RC e LCL: Sim, porque a gente trabalha com as mesmas tecelagens e sabe de onde elas compra o fio, como é feito. A gente tem parte da produção feita internamente, com costureiras e modelistas próprias. E trabalhamos com mais duas ou três facções que são top de linha, com trabalho correto, a gente visita as fábricas. Complicado é que isso encarece o produto. Por isso, uma das etapas da comunicação este ano é falar mais do produto. A gente agora tem tags contando sobre o processo e alguns itens têm código de rastreio, então o cliente consegue, por exemplo, acessar o site da marca que está fornecendo o fio para a tecelagem de quem a gente comprou o tecido.
São ações que vão ao encontro do desejo de vocês pela transparência?
Rafaella Caniello: Sim. A gente quer fazer um projeto para falar de todas as pessoas que trabalham aqui, mostrar mais o nosso processo. Nossa roupa é costurada à mão, tem botãozinho vintage, tem todo esse cuidado e preocupação com transparência. O único tecido sintético que usamos é o do plissado, mas a gente tem o total controle da produção dele. Tudo que sobra a gente transforma em faixas ou doa para associações que trabalham com patchwork.
Vocês são duas mulheres jovens à frente de uma marca que tem uma personalidade muito marcante, por isso, gostaria de saber como as questões femininas atuais aparecem no processo criativo e na condução da marca.
Rafaella Caniello: Acho o mercado da moda ainda muito machista. Quase todos os maiores diretores criativos das marcas internacionais são homens. Não acho que isso seja um problema, mas vejo que está faltando representatividade feminina em cargos de liderança e criação. Mesmo os estilistas mais respeitados na história eram homens fazendo roupas para mulheres. Historicamente o corpo feminino foi ditado por homens, o que satisfaz ao homem. Como marca a gente bate numa tecla contrária. é Um movimento de manga, de como a peça vai se movimentar no seu corpo. Mas eu sinto que o mercado vem mudando e tem mais interesse por marcas como a Neriage, que não é extremamente sexy. Ao mesmo tempo acredito que a mulher pode se encontrar sexy em outro lugar.
Laura Cerqueira Leite: Recentemente, a gente fez uma pesquisa com mulheres que convivem com a Neriage: influenciadoras, do mundo da moda e clientes. Uma coisa que saiu nas respostas é que as mulheres se sente sexy usando Neriage, por mais que não seja uma peça descaradamente sexy. Elas se sentem fortes e seguras. Essas foram duas palavras que a gente recebeu muito nessa pesquisa. Acho que a questão do feminino na criação traz resultado porque somos mulheres criando para mulheres.
Como vocês enxergam o movimento feminista contemporâneo e como vocês trazem isso para a empresa?
Rafaella Caniello: Dentro da empresa, somos gestoras. Acho que isso já é um grande passo; duas mulheres de 26 e 27 anos. A gente, praticamente, só trabalha com mulheres, só tem um homem na empresa. A gente sente aquela coisa do sagrado feminino aqui. Talvez seja um dos nossos pontos mais fortes.
Laura Cerqueira Leite: A gente se identifica muito com as causas feministas. Talvez não fale muito, mas acho que está mais do que claro na forma como a gente se comunica.
Créditos
Fotos: Mariza Fonseca
Assistente de Fotografia: Igor Almeida
Styling: Alexandra Von Bismarck
Produção de Moda: Cinthia Arnoni
Modelo: Alexia Dutra (Joy)
Produção executiva: Anna Guirro
Beauty: Raque Pfutzenreuter
Retoutch: Raquel Tâmara