Moda

Desfiles internacionais: moda, economia e a dança dos criativos

Roda da fortuna! Um olho na passarela, o outro no noticiário econômico. A temporada de desfiles internacionais dividiu a atenção dos especialistas entre os lançamentos e as tendências de moda, mas também o giro incessante dos diretores criativos de cada marca e o balanço econômico dos grandes grupos.

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Dior (Foto: Divulgação)

Após anos de crescimento recorde desde 2020, a indústria de luxo enfrenta uma desaceleração global no consumo de moda, acendendo o alerta vermelho nas companhias. O principal motivo é o cenário de incerteza econômica no mundo todo, com inflação e taxas de juros altas, causando queda de receita principalmente nos mercados asiáticos no terceiro trimestre de 2024 (por conta do contexto desafiador da China, que passa por uma crise de preços de moradia e alta taxa de desemprego entre jovens) e estagnação do mercado nos Estados Unidos.

Os dois principais conglomerados de luxo do mundo, os franceses LVMH e Kering, reportaram números aquém do esperado em 2024. O grupo Kering, que detém as marcas Gucci e Saint Laurent Paris, teve uma queda geral de receita de 15% no terceiro trimestre deste ano, sendo a maior queda da Gucci, de 25%. Somente na região da Ásia-Pacífico, a queda geral foi de 30%. O faturamento total nesse período foi de 3,78 bilhões de euros, segundo relatório do grupo para investidores, bem abaixo dos 4,46 bilhões de euros do mesmo período no ano anterior.

Considerado o maior grupo de luxo do globo, com grifes no portfólio como Louis Vuitton e Dior, o LVMH registrou uma queda geral de 3% no terceiro trimestre do ano, de acordo com o relatório financeiro do grupo. O faturamento total para esse período foi de 19,07 bilhões de euros, abaixo da previsão de 20,01 bilhões de euros. Se considerar apenas o mercado asiático, essa queda foi de 16%, com exceção do Japão, que teve um crescimento menor que o esperado, ape- sar dos números positivos.

Mesmo os gráficos confirmando a tendência (econômica, no caso) que já vinha sendo anunciada, especialistas veem esse momento como um detox do tsunami de consumo de luxo que teve desde a pandemia e dizem que essa onda não deve desestabilizar as grandes embarcações. “As marcas de luxo centenárias já enfrentaram vários ciclos de subidas e descidas e têm uma capacidade de resiliência surpreendente. Muitas delas passaram por duas guerras mundiais. Então a queda recente é apenas uma das informações nesse longo histórico”, afirma Carlos Ferreirinha, especialista no segmento de luxo há 30 anos no mercado (sendo sete anos na LVMH e 23 na sua consultoria MCF.)

“O caso da China atualmente não é diferente do Japão nos anos 1990, que passou por uma recessão econômica quando era o segundo mercado de luxo do mundo, ao lado dos EUA. O que acontece normalmente é que os mercados acabam se compensando. A própria China, quando estava em crescimento, ocupou o espaço dos EUA, que passavam pela crise financeira das hipotecas em 2008. Quando a Europa passava pela Segunda Guerra, os EUA entravam como mercado principal. Hoje vemos a Índia crescer 10% neste ano e pode facilmente ocupar esse espaço”, avalia o consultor, que é autor do livro O Paladar Não Retrocede.

Vale observar que essa desaceleração é notada com mais força na divisão de roupas e acessórios de couro. “Aumentou a venda de aviões, os resorts e cruzeiros estão ocupados até 2025, Porsche e Ferrari vivem o melhor momento da sua história...”, sintetiza Carlos Ferreirinha. Os motivos dessas variações, portanto, estão muito além dos números.

“Essa é uma questão multifatorial e com vários sintomas. É muito difícil você rastrear a correlação entre os comportamentos de consumo além das análises financeiras e de lucro. Mesmo que essas companhias sejam de capital aberto, só contamos com dados agregados, então não temos acesso a uma análise profunda”, explica a consultora de negócios Marília Carvalhinha, coordenadora da pós-graduação em Fashion Business na Faap e que atua em gestão de negócios de moda no segmento de luxo. “O mais provável é que haja uma movimentação entre as várias camadas sociais que consomem luxo, e isso fica pouco visível quando vemos apenas os dados de uma marca que perdeu faturamento”, explica a consultora e autora do livro Unboxing: Negócios de Moda.

Valentino (Foto: Divulgação)

Existem muitas questões subjetivas em torno desse assunto que podem alterar a percepção do valor das marcas de luxo do ponto de vista dos novos consumidores. “É preciso levar em conta o aumento de preço excessivo no período pós-pandemia, um crescimento de peças vintage e o surgimento do movimento das bolsas superfake, que traz uma dificuldade enorme de autenticação de peças de luxo e pode interferir na relação das pessoas com esses produtos”, pondera Fernanda Leite, que dá aula na pós-graduação no Senac (Gestão de Negócios da Moda), no IED (Gestão de Produtos e Servi- ços) e na Faap (Planejamento de Compras).

“O movimento dos itens de segunda mão cresce muito rapidamente. Ele não substitui a compra de um item novo em uma marca de luxo, mas cria um ruído nesse mercado. Antigamente era uma opção mais restrita, mas, como muitas pessoas têm acesso hoje, pode mudar a noção de quanto vale a pena pagar pelo luxo”, acrescenta Marília Carvalhinha. “Tem ainda os produtos falsificados. A geração Z usa como piada, não como se fosse verdadeiro. É uma sátira contra a ostentação e quem gasta muito dinheiro com itens de luxo, um questionamento sobre o valor desses produtos.”

Tais aspectos forçaram as marcas a repensar suas gestões e a experimentar muito mais do que no passado, mesmo que essa mudança não seja parte de seu histórico e que aconteça no centro de sua estratégia de negócios, que é a liderança criativa. Isso acabou mudando o próprio escopo do papel de um diretor criativo. No mundo em que os consumidores são educados pela obsolescência programada e que aceitam mudanças em uma velocidade muito maior, os estilistas são recrutados não apenas pela habilidade em fazer moda, mas por sua capacidade de viralizar suas criações (e até a própria imagem) para garantir a atenção ao produto. Vide o rapper Pharrell Williams à frente da coleção masculina da Louis Vuitton.

A causa da oscilação da Gucci é apontada como a mudança para o diretor criativo Sabato de Sarno, que assumiu o lugar de Alessandro Michele e não conseguiu gerar o mesmo barulho na mídia que o antecessor. Atualmente na Valentino, Michele levou com ele uma legião de seguidores, enquanto De Sarno pode ser substituído em breve caso não consiga reverter as previsões numéricas. Essa troca constante de estilistas é resultado da pressão de entrega nesse cenário de incerteza, pois qualquer movimento que possa ser financeiramente arriscado é substituído por apostas certeiras. Na moda, “aposta certeira” virou sinônimo de estilista superstar.

Mudanças podem estimular a criatividade, porém uma quebra constante de paradigma não é benéfica para a criação. Essas mudanças necessitam de tempo para maturar e precisam estar amparadas por toda a administração. Caso contrário, o que acontece é a falta de identificação do público com a marca e, consequentemente, queda nas vendas. Prova disso foram os bons resultados de marcas de luxo tradicional e inquestionável, em que os estilistas não são maiores que as próprias marcas, como Hermès (que cresceu 11,3% no terceiro trimestre, faturando 3,7 bilhões de euros) e Brunello Cuccinelli (crescimento de 9,2% e faturamento de 300 milhões de euros). São empresas que têm um padrão elevado de exclusividade, são muito mais de nicho e falam com esse público que está além da flutuação econômica.

Outras marcas mais jovens e modernas, mas igualmente consistentes na sua criação, como Prada e Miu Miu, também tiveram crescimento significativo. O grupo Prada cresceu 18% no terceiro trimestre de 2024, puxado por um crescimento de 105% da Miu Miu. Portanto, apesar do recorte mais próximo ser desanimador, o retrato maior do mercado de luxo revela que ele tem estabilidade para aguentar esses solavancos. “A geração de dinheiro só cresce no mundo, não há um problema de falta de dinheiro. O número de novos milionários nos últimos cinco anos é maior do que foi no último século. O problema que existe é o de distribuição de riqueza”, finaliza Ferreirinha.

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Louis Vuitton e Saint Laurent (Fotos: Divulgação)

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