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Simone Botte em entrevista exclusiva para a L'Officiel Brasil

Ordem no caos! Baseada em Milão, a italiana Simon Cracker exercita um upcycling autêntico, revendo os códigos DIY do punk para o novo milênio. Confira uma entrevista exclusiva com Simone Botte, diretor criativo da casa

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AltaRoma (Foto: Divulgação)

Simone Botte é uma dessas figuras que insistem em fazer moda com gosto e discussão, caminhando para além da técnica e da mera beleza. Nascido na cidade italiana de Cesena e trabalhando em Milão, o criador toca há dez anos a sua marca/ateliê/laboratório Simon Cracker e foi um dos destaques da passarela de inverno da Altaroma, em fevereiro.

O “crack” do nome da marca não é gratuito. Sonoro como uma onomatopeia de história em quadrinhos pulp, representa bem o pensamento deste jovem designer: destruir para gerar, refletir sobre o passado de modo a reinventar novidades. Naturalmente, essa maneira de reflexão criativa levou o italiano para o caminho do upcycling, tão em voga na moda de hoje — mas que exercita de maneira bem particular, com um mix de rigor e fluidez.

Muito do seu mundo remete diretamente ao DIY dos punks dos anos 1970 — que, com suas roupas customizadas em casa ou feitas por conta própria, poderiam ser creditados como os upcyclers primordiais. Simone não apenas trabalha com materiais de descarte e roupas antigas, mas também com técnicas de alfaiataria e a estética do pixo. O resultado é um streetwear de impacto, ainda que sensível e bem construído.

A sua última coleção, apresentada em Roma, quis refletir sobre símbolos de feminilidade a partir de vestidos de noiva antigos — retalhados e reconstruídos em detalhes e volumes na alfaiataria, em looks de gênero fluido. Depois do desfile, Simone conversou com L’OFFICIEL para desmistificar um pouco do seu mundo e seu conceito de “gentileza punk”.

Fotos: GIADA PASINI

O upcycling já se tornou uma grande commodity na moda, mas você exercita esse assunto com um respeito bem próprio. Em que momento percebeu que era seu campo?
O processo de upcycling sempre fez parte da minha linguagem. Aprendi com meu avô a nunca jogar nada fora, sempre tentar consertar antes. Quando a pandemia começou, com todas as dificuldades que tivemos, decidi fazer uma coleção usando apenas roupas recicladas; e sigo nesse trabalho.

Você acredita que a cultura do reúso é a solução final para a indústria?
A moda precisa levar em consideração que é uma das atividades mais poluentes do mundo; já existem tantas roupas que geram um lixo infinito. É claro que há a questão do “trending topic”: todo mundo está falando sobre uma abordagem mais sustentável para os seus negócios. Mas, aparentemente, não estamos prontos para uma mudança drástica de abordagem. É o sistema inteiro que precisa ser repensado de maneira 360o.

Pelo seu histórico, vejo que a Simon Cracker funciona em um universo muito individual, distante do sistema convencional, tanto de produção quanto de estética, puxando muito do fazer das artes plásticas e visuais. Você se vê apenas como um estilista?
Eu me considero uma pessoa que tem histórias para contar e o meu meio são as roupas, mas tenho um conjunto de valores diferentes que me levam a uma direção diferente do estereótipo mainstream de um designer de moda. Para mim, a moda não deve ser sobre as “tendências da última temporada”, mas mais relacionada com a valorização de identidades. Eu chamo o meu público alvo de Cracker Crew e quero que seja usado por pessoas que pensam como eu, que compartilham os mesmos valores, independentemente da idade, da renda, do status e coisas assim.

Fotos: GIADA PASINI

Você fala muito em destruir para criar e penso que isso está muito conectado, de forma abrangente, com o que passamos neste século 21. Sente-se mais confortável trabalhando sobre ruínas?
SB “Acredite em ruínas” é um slogan que vem direto do Situacionismo, um dos principais alicerces do punk. Estou realmente em sintonia com esse ethos e essa estética: o processo DIY, a beleza da imperfeição, a celebração dos erros. A nostalgia hoje é um tema que aparentemente não pode ser evitado. De certa forma, a nostalgia é sobre, em última análise, trabalhar com ruínas. O caos dificilmente pode ser ordenado, mas pode ser abraçado.

Por falar em lemas, fiquei fascinado com um dos que você adotou, o punkindness. Qual a história por trás desse termo?
Eu cheguei ao punkindness depois de trocar muitos pensamentos com Filippo, meu coordenador de marca, alter ego e “enciclopédia” de moda: descobrimos que compartilhávamos a mesma ideia do que o punk pode ser no século XXI. No mundo de hoje é mais punk dizer “obrigado” do que “foda-se”. Quando quem grita mais alto ganha a discussão, o que pode ser verdadeiramente disruptivo é autenticidade e consciência: tias, abraços e laços de fita que embrulham coisas deliciosamente chatas. As raízes do punk, da destruição e do faça-você-mesmo estão vivas, mas de forma mais consciente e gentil — até referenciando o mundo terno do Kawaii ou grafites fofos.

Sei que você “começou” a sua carreira na moda ainda criança, em visitas a um ateliê de noivas — um assunto que voltou nesta coleção apresentada em Roma. Existe uma conexão aí ou foi coincidência? Houve alguma nostalgia no processo?
Nada nunca é realmente uma coincidência: as minhas primeiras lembranças relacionadas a roupas são sobre essas visitas a um pequeno ateliê de noivas da vizinhança. Esta coleção começou como uma reflexão sobre a feminilidade, a partir do vestido de noiva. É a peça mais importante na vida de uma mulher, cheia de significados e detentora de uma história — que pode ter um final bom ou ruim, mas com um valor inegável. A nostalgia está sempre presente no meu trabalho, mas nunca de forma melancólica.

 

Fotos: GIADA PASINI

Você está prestes a produzir uma cápsula a partir de peças de arquivo, certo? Pode contar mais?
Este é um dos projetos que estamos desenvolvendo. Filippo é colecionador de roupas de grife dos anos 1980 e 1990. Parte do seu acervo foi danificada por questões de conservação, então decidimos criar uma coleção cápsula de peças únicas, construídas a partir dos pedaços que sobraram dessas roupas. Será um desafio, pois, mesmo que eu sempre parta de peças preexistentes, agora terei que construir uma roupa inteira a partir de uma manga ou de uma lapela. Esses tipos de desafios são os mais eletrizantes para mim, ainda mais porque mais pessoas estão envolvidas no processo — e eu adoro essas misturas criativas!

Além da complexidade de trabalhar com pequenos pedaços, há espaço para alguma espécie de reverência sobre a criação alheia, já que estará se debruçando sobre peças assinadas?
A partir do momento em que passo a usar itens dos quais as pessoas já se desfizeram como matéria-prima, não sinto nenhuma responsabilidade em relação a essas roupas. Para mim, o mais importante é a qualidade dos materiais, que não é garantida apenas por uma marca na etiqueta.

Fotos: GIADA PASINI
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AltaRoma (Fotos: Divulgação)

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