Viagem

Uyuni: o maior deserto de sal do mundo é um espetáculo garantido

O maior deserto de sal do mundo, Uyuni, tem vários encantos, de montanhas a gigantes em ruínas, lagoas coloridas e uma fauna diversa e resistente

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Salar de Uyuni - Foto: Pimpa Brauen / Diulgação.

Nem só de salar se faz Uyuni. Sim, o maior deserto de sal do mundo é um espetáculo garantido: nesse setor do altiplano boliviano há vários encantos, de montanhas a gigantes em ruínas, lagoas coloridas e uma fauna diversa e resistente. Confira!

Incrustado na porção centro-oeste da América do Sul, o Estado Plurinacional da Bolívia é vizinho do Brasil ao norte e a leste por 3.423 quilômetros de fronteira, além de ter seus limites compartilhados mais ao sul com o Paraguai e a Argentina, e nos trechos ao oeste com o Chile e o Peru. É na geografia composta por cordilheiras, vales suaves e florestas que sua economia foi se desenhando no cultivo do milho, do algodão, da coca e do café, entre as demais culturas como a cana-de-açúcar e o plátano. Somados às reservas de estanho, ouro, zinco e cobre e às jazidas de hidrocarbonetos (petróleo e gás natural), seus sistemas hidrográficos, que confluem para as bacias dos Andes, do Amazonas e do Prata, completam a riqueza natural do lugar.

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Itália Perdida - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Com uma história que atravessou a civilização Tiahuanaco, formada primeiro nas áreas de altiplano e depois expandindo os limites por outros países para compor o império pan-andino no século 9, até ser incluída como parte do Império Inca por volta do ano de 1100, a Bolívia fez parte das faixas de terra do continente que passaram a ser controladas pelos espanhóis no início do século 16. Foi a partir de 1545 que a prata extraída do cerro de Potosí fomentou a economia global, mantendo-se na imaginação de estudiosos e de artistas ainda nos dias de hoje, como se lê no poema Soy el rico Potosí, de Ivette Durán Calderón. Durante os séculos em que o metal foi retirado da montanha para a produção de moedas que circularam da Europa à Ásia, ao custo de milhares de vidas de indígenas que eram forçados a trabalhar nas escavações, uma grande cidade ganhou seus contornos para atender toda a gente que circulava ali e deu margem aos grupos sociais enriquecidos pela mineração. As décadas seguintes foram tomadas pelos conflitos populares que buscavam a independência, atingindo seu ápice em agosto de 1825, em uma guerra comandada por Simón Bolivar.

Dessa ancestralidade cultivada pelo povo, cuja geografia alcançou ares de divindade, estabeleceu-se boa parte da mítica que mantém o interesse.

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Lhamas - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Foi justamente por aí que essa viagem, organizada pela Hidalgo Tours, teve início. Saindo de São Paulo com destino a Santa Cruz, onde estão o Fuerte Samaipata e o Parque Nacional Amboró, e depois a La Paz, cheguei a Uyuni, esse simpático distrito de Potosí com cerca de 20 mil habitantes, feiras de artesanato e museus interessantes, caso do Necropolis & Museum Kawsay Wasy. Eu me hospedei no hotel Jardines de Uyuni. Mais tarde, de olho nas barracas tomadas de um colorido festivo, fui caminhar pelas ruas do centro e pelo eixo histórico onde está a Torre do Relógio, que guarda o mecanismo construído no fim do século 19 pelos suíços com seus marcadores impecavelmente forjados. Formado por locomotivas e vagões abandonados em uma grande área aberta, o Cementerio de Trenes, minha parada seguinte, trouxe na memória as tramas pós-apocalípticas e de ficção científica do cinema, de Mad Max a O livro de Eli e Star Wars, com essas estruturas gigantescas corroídas pela poeira trazida da salina vizinha.

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Almoço no Salar - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Conta-se que nas primeiras décadas do século 20, a ideia de manter um centro ferroviário entre Uyuni e Antofagasta, no Chile, para transportar prata, estanho, ouro e demais riquezas, foi perdendo força por uma série de fatores que incluíram o colapso das minas e os conflitos que aconteceram na região. Sem possibilidade de uso, o consenso foi de deixar os mais de 100 vagões importados da Grã-Bretanha ao sabor do tempo e, mais tarde, da curiosidade popular. Distante a quase 300 quilômetros de lá, na rota das lagoas, a aldeia de Villamar foi o local escolhido para descansar antes de continuar a trip. Fiquei no Mallku Cueva, que mistura a rusticidade das cavernas com os serviços de um hotel pequeno que prioriza o conforto. Incrustado em uma rocha natural enorme e contornado por um rio, o endereço faz você sentir-se literalmente parte da pequena comunidade ao acordar para o café da manhã e deparar-se com as lhamas que pastam nos arredores.

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Monunento das Bandeiras - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Algo interessante de se notar, em uma viagem de vales maravilhosos e de paisagens surreais, é que a vontade de registrar cada detalhe era constante, como se as fotos captassem a mágica preservada nesses cenários andinos tornando a distância entre um ponto e outro, que levava muitas vezes de uma a três horas, menos cansativa. Da aridez das pedras aos oásis verdejantes, a mudança repentina provocava os sentidos a continuarem atentos. Grupos de lhamas, guanacos e alpacas de todas as cores, brancas, pretas e malhadas, marcadas por anéis de identificação presos às orelhas e por colares bordados pendurados em seus pescoços, aproximavam-se curiosos de meu carro. Nessas horas era impossível não parar para esticar as pernas e chegar bem perto delas.

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Cemitério dos Trens - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Próximas, como constatam as imagens da NASA, a agência espacial norte-americana, as lagoas Capina e Colorada fazem parte de um conjunto de reservatórios naturais de água – os outros são denominados Verde, Celeste, Blanca e Hedionda – e proporcionam um show inesquecível para aqueles que observam suas características únicas, como foi o meu caso. Pigmentadas em razão dos minerais, a contar o magnésio, o arsênico e o enxofre, e de outros sedimentos, essas superfícies completam a cena ao lado dos vulcões Licancabur e Uturuncu.

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Lagoa Chalviri e Termas de Polques - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Um dos contos mais populares que cercam a Laguna Colorada, ou lagoa vermelha, é de que em vez de água o que se vê ali é o sangue dos deuses. Contudo, as várias camadas de tons de branco e de rosa, do mais claro ao mais escuro, que mais parecem pinceladas, se devem às algas que se reproduzem no ambiente e que servem de alimento para as três espécies de flamingos presentes na América do Sul – o flamingo-andino, o flamingo-chileno e o flamingo-de-james, igualmente conhecido como flamingo-da-puna. Caminhando até a beira, pude me deixar levar pelo vento gelado e relaxar, saboreando o momento, e vi milhares dessas aves dispostas em bandos, em uma concentração que pareceu ainda mais surpreendente quando elas se agitaram e se uniram em uma massa rosada sem distinção. De lá parti para a área térmica Sol de Mañana, procurada por gêiseres, fumarolas e crateras de lavas. Inserida na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa, o famoso território desértico que fica a quase 5 mil metros de altitude vive suas horas de maior movimento durante a madrugada – daí o nome... –, tão logo as águas sob o solo são aquecidas pelas rochas vulcânicas e rompem em colunas que atingem 15 metros de altura, o cheiro de enxofre é forte, mas o espetáculo das águas vale a visita. 

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Laguna Colorada - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Ainda nessa pegada escaldante, o ponto seguinte esteve nas Aguas Termales de Polques, ideais para relaxar o corpo após horas de caminhada e dos quilômetros percorridos de carro. Se a estrutura das cabines e dos vestiários pode parecer simples, as piscinas revelam um retrato luxuoso dos vulcões e de parte da reserva à minha frente, a paisagem é de tirar o fôlego. Não seria possível fechar esse segmento da expedição sem conhecer o Desierto Salvador Dalí, chamado assim pelas paisagens que lembram os quadros do pintor espanhol com suas planícies infindáveis, sua terra de cores marcianas que misturam o ocre, o bege e o vermelho e suas rochas arredondadas de várias toneladas “perdidas” aqui e ali.

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Folhas de coca para o chá - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Já era manhã do dia seguinte quando me deparei com os paredões de matizes terracota batizados de Itália Perdida, donos de uma potência visual sem comparações. Caminhar entre eles foi como brincar em um labirinto antigo, de acessos e de degraus desafiadores, me senti minúscula perto deles. Tendo um perfil geográfico totalmente oposto, os bofedales altoandinos quebram a aridez e mostram a resistência da vegetação rasteira que brota deles. Isso se dá, é claro, porque nesses ecossistemas denominados de “zonas húmidas” há a presença de lençóis freáticos que recebem água em seu subterrâneo, alimentando as raízes das plantas, e acima do solo, quando as chuvas caem e mantêm os caules e as folhas hidratados. Interessadas na oferta de alimentos, as lhamas, as alpacas e os flamingos povoam esses espaços e se refrescam sem cerimônia. Datado do século 16, nos idos da colonização espanhola, o vilarejo de San Cristóbal de Lípez precisou ser mudado de lugar – a uma distância de 20 quilômetros de sua localização original –, após a descoberta de que lá havia uma mina de prata. A igreja, que dizem ter sido transferida pedra por pedra, revela os traços da arquitetura barroca em suas muralhas, nos campanários e nos arcos internos e externos. Charmosa, ela é considerada uma das mais antigas do Altiplano Boliviano. Acompanhada de meu guia, me joguei pelas suas ruas pacatas até o mercado municipal para experimentar algumas das receitas preparadas na cidade.

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Hotel Palácio de Sal - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Mantendo a ideia de “sair às compras” em curso estive por pouco mais de uma hora no povoado de Colchani, onde está uma das cooperativas de processamento de sal mais frutíferas do entorno, para visitar as lojas e as barracas de artesanato da principal via de comércio. Casacos, ponchos, gorros e roupas supercoloridas disputam a atenção entre esculturas e itens de decoração confeccionados com lã e fibra de cacto. Instalada no suntuoso Palácio de Sal imaginado pelo empresário Don Juan Quesada Valda, pude acompanhar todo o esplendor desse complexo de 4,5 mil metros quadrados. A energia que se nota no endereço está além das sensações, é literal, é você em um hotel feito de sal. O composto, por sinal, faz parte de 80% do arcabouço que sustenta o espaço, do teto às paredes. Na suíte em que passei algumas noites, a estrutura da cama era igualmente salina e os acabamentos eram de madeira. É um banho de sal grosso, para dizer o mínimo. Certamente saí de lá muito energizada. A piscina coberta deste hotel foi um caso de amor à primeira vista. Toda de vidro passei meus fins de tarde contemplando o sol se pôr no deserto branco, só deixando as horas passarem.

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Hotel Palácio de Sal - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

No último dia de viagem, a agenda foi dedicada ao Salar de Uyuni, a começar pelo passeio entre as esculturas gigantes assinadas por Nicodemo Chambi, nascido em Colchani, e por uma série de artistas parceiros. Além do monumento em homenagem à prova de velocidade Rally Dakar, que possuía uma etapa nessa rota, contam-se a pirâmide inspirada nas construções egípcias, e a simbólica mão de Deus. Como todo viajante curioso que se preze procurei a bandeira do Brasil na Plaza de Las Banderas e seus registros que apontam a nacionalidade de quem já passou por ali, delicioso demais passar entre elas que delicadamente balançavam. Os estandartes fincados no chão, agitados pelo vento, reforçam a ideia de pertencer a uma comunidade que se dispõe a aventurar-se pelo mundo. Montado pela Hidalgo, agência que organizou carinhosamente toda a expedição, o almoço seguiu os moldes da celebração aimará Apthapi, compartilhado com outros viajantes, e tendo como alimentos o pão, o milho, a quinoa e as carnes de frango e de lhama delicadamente colocados em tigelas de cerâmica cobertas por tecidos coloridos. A experiência teve ainda música e bons drinques. Almocei sentada em almofadas coloridas em cima de tapetes vermelhos estendidos no chão, em frente, uma única mesa comunitária de madeira.

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Hotel Palácio de Sal - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Em meio ao branco árido do deserto, os tapetes cobertos por tendas brancas com pompons coloridos dançavam ao vento, criando um contraste de cores maravilhoso. Risadas e brindes se seguiram no almoço preguiçoso com meu guia e os cozinheiros compartilhando histórias e lendas da região. Depois da sobremesa aproveitei  para dar um passeio de bicicleta pelo entorno, fechando  maravilhosamente bem toda a experiência.

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Hotel Palácio de Sal - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

Mais tarde rodei alguns quilômetros pelo deserto de sal e desembarquei em uma “ínsula” de cactos superdimensionados apelidada de Isla del Pescado. Existem mais de 30 territórios como esse, com morros cercados de corais e fincados de cactáceas, a exemplo da Isla Incahuasi. Fundo de lagos pré-históricos que evaporaram, o Salar de Uyuni se estende por um tapete de 10.582 quilômetros quadrados, a 4 mil metros de altitude, em um branco cortado por pequenas rachaduras. Nos meses de chuva, de dezembro a abril, o chão molhado cria imagens espelhadas. Esse efeito singular proporciona um jogo de perspectiva e de profundidade que faz a alegria dos fotógrafos mais criativos. É o momento em que a maioria monta seus álbuns de imagens para levar para casa. Ao tomar o caminho de volta para o Palácio de Sal fui convidada para o happy hour de despedida montado no meio do nada. Estacionamos o carro onde minha vista só alcançava o branco, nesse momento fui abraçada pela força do deserto, foi impossível não se emocionar. Acompanhada de um grupo animado, contemplei o pôr do sol ao lado de uma mesa semicircular cheia de petiscos, coquetéis e drinques.

Saboroso e amistoso, o encontro deixou as melhores lembranças desse país onde a história está conectada com o sagrado.

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Hotel Palácio de Sal - Foto: Pimpa Brauen / Divulgação.

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