Amazônia guarda um universo mágico de árvores milenares
Abrigo de uma das florestas tropicais mais discutidas da atualidade, a Amazônia guarda um universo mágico de árvores milenares, rios voadores e preservação
Das 120 mil espécies de animais identificadas no País, 73% dos mamíferos e 80% das aves estão na porção brasileira do bioma amazônico. Nessa área gigantesca, de 4,21 milhões de quilômetros quadrados, cerca de 13 mil tipos de plantas – nativas, cultivadas e naturalizadas – costuram um tapete indispensável para a captura de CO2 da atmosfera, colaborando para o equilíbrio do clima; embora nos últimos 50 anos 17% da floresta tenha sido perdida com espaços ocupados por pastagens e pela agricultura, de acordo com a MapBiomas.
Desde a década de 1950, vê-se o esforço para conter esse panorama e promover políticas de crescimento inclusivo e sustentável, a exemplo da composição do território chamado de Amazônia Legal, que definiu os limites geográficos da região que passou a contar com incentivos fiscais e demais recursos. Sob a responsabilidade da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), a área corresponde a quase metade do território nacional, aproximadamente 59%, com 772 municípios de nove estados – Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão –, tal qual aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em uma dessas cidades, Alta Floresta, localizada no extremo norte do Mato Grosso, a 830 quilômetros da capital, Cuiabá, está o Cristalino Lodge, um projeto que tem como objetivo a preservação da porção sul da floresta por meio de atividades de ecoturismo.
Idealizado pela empresária e conservacionista Vitória da Riva durante os anos de 1990, o Cristalino Lodge é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural. As RPPNs estão entre as categorias de Unidades de Conservação reconhecidas pelo governo e são desenvolvidas por proprietários rurais ou urbanos que indicam o potencial de suas terras para a manutenção da biodiversidade. No caso do hotel, ele está incrustado em atuais 11.399 hectares de área protegida (apenas dois hectares da área total da reserva são ocupados pelo Lodge) e foi construído com base em conceitos de sustentabilidade que adaptaram a arquitetura ao ambiente. Já nas primeiras etapas do projeto o tempo da natureza ditou o ritmo da obra, a exemplo dos materiais que eram transportados apenas nos períodos de cheia do Rio Cristalino ou das madeiras certificadas que foram trazidas de florestas renováveis. A ideia desse complexo turístico de selva sempre esteve em formar uma estrutura que unisse a beleza natural e a criatividade humana, tendo o luxo no que é essencial, e principalmente sempre focado na conservação, com a premissa de não ser apenas um alojamento ecológico dentro da floresta tropical e sim através dele proteger o entorno. Para o desenho das 18 charmosas acomodações, projetadas utilizando somente materiais naturais, e dos ambientes comuns, sempre integrados ao seu entorno, foram consideradas as estações do ano, as épocas de maior e de menor umidade, a incidência da radiação solar e a variação da temperatura, permitindo que soluções de ventilação fossem inseridas, dos brise-soleils às janelas e os lanternins – pequenos telhados colocados sobre as cumeeiras que formam um sistema permanente de saída de ar uma vez que o lodge não possui ar condicionado. Com unidades que variam entre 22 e 79 metros quadrados, os bangalôs e os apartamentos, ideais para casais, famílias e pequenos grupos, fornecem jogos de banho e de cama de 300 fios da Trousseau, banheiro privativo e varandas ou pequenos jardins, dependendo do tipo do bangalô.
Somaram-se a esses esforços a instalação de placas de energia solar e a criação de sistemas de tratamento dos efluentes da água cinza, gerados por chuveiros, pias e máquinas de lavar, e da água negra, provenientes do esgoto sanitário, por meio de técnicas de permacultura. Criado pelo naturalista Bill Mollison e seu aluno, o designer ambiental e educador ecológico David Holmgren, o termo é uma junção de várias ideias que vêm sendo aprimoradas desde 1978, quando eles lançaram o livro Permaculture One – A Perennial Agriculture for Human Settlements. Em uma de suas cartilhas, o Instituto de Permacultura Ipoema, fundado em 2005, explica que essa é uma prática que “envolve o planejamento de ambientes sustentáveis, bioconstruções, uso racional da água, energias renováveis, sistemas agroflorestais, produção alimentar ecológica e organização social participativa”. Em resumo, além de desenvolver uma base agrícola permanente, capaz de sustentar as pessoas, é fundamental que esses modos de produção não causem impactos negativos ou destruam os ecossistemas. Na reserva, cada passo desse conhecimento e das tecnologias que derivam dele são compartilhadas com as comunidades locais. Os visitantes do Cristalino experimentam uma série de atividades, sempre bem cedo ou no fim da tarde, com destaque para a observação da flora e da fauna de um dos dois mirantes, torres de aço, de 50 metros de altura, e 30 quilômetros de trilhas. Convidada para o passeio, que se inicia ainda quando o dia não amanheceu, me preparei conforme a agenda organizada pelo lodge. Dormi bem cedo e acordei quando tudo parecia noite. Quando deixei meu quarto com minha lanterna a tiracolo, ainda estava escuro.
NESSA área GIGANTESCA, DE 4,21 MILHÕES DE quilômetros QUADRADOS, CERCA DE 13 mil TIPOS DE PLANTAS – NATIVAS, CULTIVADAS E naturalizadas – COSTURAM UM TAPETE indispensável PARA
A CAPTURA DE CO2 DA ATMOSFERA
Fui para o restaurante onde pude tomar um desjejum leve, com café e biscoitos, e receber as primeiras orientações dos meus guias. De lá embarquei em uma voadeira, embarcação pequena e estreita utilizada para navegar em águas rasas ou estreitas, e atravessei o rio, do outro lado da margem atracamos para completar o restante do trajeto a pé. A subida pelas escadas do mirante foi tranquila, mas íngreme, e o topo revelou uma vista assustadoramente deslumbrante – estava muito acima das copas das árvores camufladas pela névoa densa e esbranquiçada que cobria toda a imensidão da mata, um mar de floresta sem fim. Com o passar do tempo, a cerração desceu e todo aquele verde se revelou em vários formatos e tamanhos. O céu se abriu e ia ficando multicolorido, em vermelho, rosa e laranja, à medida que o sol ganhava o horizonte. Se antes havia apenas silêncio, a luz trouxe a reboque o som das cigarras e dos pássaros com revoadas de araras vermelhas e azuis. Naquela imensidão, notei que boa parte das ramagens começou a balançar pelo movimento de grupos numerosos de macacos, de espécies distintas, que saltavam de galho em galho e se acomodavam para “aproveitar o momento”, uma oportunidade única de ver a vida selvagem que habita a copa das árvores gigantescas e centenárias.
As expedições ao longo de minha estada, importante mencionar, eram realizadas de manhã ou no entardecer, deixando as horas anteriores ao almoço para nadar no rio ou relaxar no deque flutuante em espreguiçadeiras de madeira repletas de almofadas coloridas, onde eu descansava e deixava a internet de lado. Era a hora da caipirinha e da cerveja, de aproveitar a vista e os sons desta parte tão notável da Amazônia, hora boa também para jogar conversa fora com outros hóspedes. Quando da volta dos passeios em que deslizávamos pelo rio de barco, em torno das 19h, 20h, o píer onde atracava a voadeira mudava completamente de cenário, era tomado pelo coaxar de uma saparia e embalado pela fogueira que alterava as texturas, as sombras e as cores da natureza. Alguns olhos dos pequenos jacarés brilhavam no entorno como se viessem nos desejar boas-vindas. Em uma dessas noites o jantar aconteceu do lado externo do restaurante, sob um céu estrelado, em um pátio com árvores ao redor do fogo, com peixe feito na brasa. Fresco, pescado momentos antes, com todos os acompanhamentos possíveis, a iguaria trazia os temperos de uma cozinha regional e contemporânea. Pensado pelo chef Fábio Vieira, o cardápio do Cristalino reúne os sabores da Amazônia e as técnicas da culinária internacional, sempre orgânica e local, em pratos que passam pelo pirarucu salgado e curado, confitado com azeite, alho, tomate, batata, ovo e azeitona preta; pelo gaspacho de açaí; e pelo tambaqui assado e caramelizado com tucupi negro, servido com purê de batatas, pitadas de puxuri (noz-moscada amazonense) e molho de hortaliças.
Floresta tropical de características singulares, a Amazônia se transforma em cada um de seus ciclos. Em fevereiro e março, por exemplo, a umidade do ar elevada desperta as flores que se abrem por todos os lugares, como as orquídeas, as bromélias e as helicônias, e os animais, que aproveitam a fartura de alimentos. Se os meses de abril e de maio têm vapores acumulados de água formando “rios voadores”, responsáveis por levar mais umidade para a atmosfera, o ciclo de junho a outubro é marcado pela vazante, quando as correntes fluviais atingem seus níveis mais baixos e revelam rochas, corredeiras e muitos pássaros, tornando-se o paraíso dos birdwatchers. Por fim, com o verão dando mais potência aos dias, entre novembro e janeiro, a visibilidade mostra uma floresta primária, ainda intocada, de verdes intensos, carregada de frutos e de flores espalhados por todos os cantos.
Aproveitando que estive por lá na vazante, participei de experiências que deixaram a viagem mais divertida. Na primeira delas, saí de caiaque do deque flutuante e remei em direção a uma praia, ao sabor da correnteza, vendo macacos-prego e famílias de lontras e de antas alimentando-se e refrescando- -se na beira do rio. Como é um transporte silencioso, sem motor, minha passagem não afugentou os inúmeros pássaros, que voavam de uma margem para outra, que descansavam, pescavam e simplesmente abriam as asas para secá-las, admirados a certa distância por mim. Mudando a velocidade do instante, fiz o último percurso até a praia de voadeira, todo o trajeto foi realmente maravilhoso, as águas estavam claras e refletiam árvores floridas, árvores mortas e galhos retorcidos como um grande espelho, confundindo a minha percepção da realidade. Chegando lá, fui recepcionada por dezenas de pequenas borboletas amarelas que voavam de um lado para outro em um frenesi . Um delicioso piquenique foi servido pelo meu guia, bolos, pães e sucos, bem como as frutas e as castanhas cultivadas pelo entorno foram oferecidas, enquanto o sol se punha me presenteando com um espetáculo maravilhoso. Encerrando o passeio, mergulhei nas águas calmas e deixei o tempo correr. Em algumas noites, quando cruzava a sinuosidade caudalosa em direção ao Cristalino, meu guia acendia a lanterna para me mostrar a focagem dos jacarés. Sem que os répteis fossem importunados, acompanhava o barco a deslizar perto deles com a respiração presa na garganta, vendo seus olhos serem iluminados pelos fachos de luz. Finalmente, dedicada a desbravar o ambiente onde estava, participava de caminhadas, algumas delas estendendo-se por até quatro quilômetros, passando por regiões parcialmente alagadas, zonas de bambu, figueiras, jardins de plantas ornamentais, pequenos riachos e castanheiras milenares, como a que me deparei, que tem mais de 40 metros de altura, cerca de quase mil anos e precisa de mais de seis pessoas para abraçá-la. Encantada com cada detalhe, a ideia de querer voltar e de resguardar essa terra de maravilhas fez nascer sensações de calmaria, de aflições e de esperança pois, certamente, estas experiências únicas e autênticas podem transformar qualquer indivíduo, aumentando assim nossa conscientização ambiental, nossa conexão com nós mesmos, nos fazendo nos sentir parte da floresta.