Rio de Janeiro ganha espaço de arte multidisciplinar com novidades
O Rio de Janeiro ganha espaço de arte multidisciplinar, capitaneado pelo curador de arte Victor Gorgulho e pela empresária Anna Pitthan
Nem só de brilho, glamour e grandes eventos vive a eterna Cidade Maravilhosa, sabemos. O Rio de Janeiro, ao contrário da experiência aferida, digamos, por um turista de fim de semana, pode revelar-se radicalmente diferente para aqueles que encaram a rotina no balneário mais famoso do país – e quiçá um dos mais badalados do mundo – de maneira um tanto particular e distinta da experiência dos flâneurs temporários que por aqui passam, recorrentemente.
Já nos idos do início da década passada, o célebre escritor carioca João Paulo Cuenca foi quem anunciou que, no Rio, praticamente todas as livrarias e cinemas de rua estavam a ser substituídos por igrejas, shoppings ou farmácias. A visão de Cuenca, podemos afirmar, já é uma verídica debutante que, do alto de seus 15 anos ou mais, vem teimando em modificar parte da paisagem urbana da cidade de modo radical, seja por conta de processos de gentrificação de determinados bairros, seja, usualmente, por causa da voraz especulação imobiliária que assola a cidade.
Munido do desejo de caminhar na contramão dessa brutal (e embrutecedora) lógica que parece ainda varrer a capital carioca, mais e mais, o curador de arte contemporânea Victor Gorgulho, vem, desde antes da suspensão total causada pela pandemia do vírus da covid-19, tentando criar uma espécie de centro cultural híbrido, singular em seu papel a ser desempenhado na cidade.
Gorgulho, formado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), já contabiliza mais de uma década no campo da curadoria e da escrita das artes visuais. Seu próximo projeto, no qual vem trabalhando há cerca de dois anos, é nada menos do que uma mostra que provoca o diálogo – ora objetivo, ora engendrado pelas ideias curatoriais – entre as obras de Adriana Varejão e de Paula Rego. A exposição colocará lado a lado mais de uma centena de obras de diversas épocas e suportes das duas artistas, consideradas, cada uma, um dos nomes mais celebrados do circuito da arte de seu país de nascença – para Adriana, claro, o Brasil; para Rego, Portugal, apesar de logo assumir sua identidade luso-inglesa, dado seu crescimento em território britânico.
A exposição, que acontecerá em abril de 2025, ocupará o salão principal do prédio renovado da prestigiada Fundação Calouste Gulbenkian, no coração da cidade de Lisboa. Mas, antes de o grande desafio concretizar-se nas bandas da terrinha, é na sua cidade de coração – o Rio, evidentemente...! – que o curador está prestes a abrir um dos seus projetos dos sonhos.
“É bonito ouvir assim (risos), mas meus sonhos, na maior parte das vezes, já vêm compartimentados, enxugados, reduzidos a um tamanho que me pareça possível que sejam realizados, entende? Mesmo que demorem, claro. E geralmente demoram mesmo…”, diz Gorgulho, em parte sério, em parte de fato brincando ao falar das dificuldades e dos percalços que enfrentou desde que decidiu que iria levantar o próprio espaço cultural, um ambiente onde distintas linguagens e campos da arte pudessem se encontrar.
Foi de suas ideias que nasceu também a parceria com Anna Pitthan, jovem empresária de Porto Alegre baseada há anos na cidade, onde já esteve à frente do Desvio, misto de bar e centro cultural que reunia as mais distintas “tribos” da efervescente cena carioca, mas que teve sua história interrompida por causa dos cortes impostos pela pandemia.
“Não somos uma galeria de arte. Essa foi nossa primeira decisão ao resolvermos trabalhar juntos novamente, dessa vez construindo este espaço, o Glória”, afirma Pitthan, que já atuou ao lado de Gorgulho em exposições individuais e coletivas cuja curadoria foi assinada pelo jovem experiente profissional.
“Somos, antes de tudo, uma livraria de publicações voltadas para a arte, a cultura e o pensamento contemporâneos. Nosso acervo é composto de publicações raras, antigas, novíssimas, nacionais, estrangeiras e por aí além. O Victor sempre quis trazer a ideia de brincar de fazer uma verdadeira curadoria de livros…”, completa Pitthan.
“Livros, filmes de arte, projetos expositivos que cruzem os campos da arte contemporânea, da literatura, do teatro, além…”, adiciona Gorgulho, certo de que seus primeiros passos foram mais do que bem dados. Depois apenas de um soft opening para o circuito artístico carioca, o número de artistas buscando doar publicações (muitas delas raras e já não mais publicadas), além de marchands e colecionadores, pouco a pouco, contribui para que Pitthan e Gorgulho batam sua meta orçamentária, de modo a realizar todos os projetos previstos dentro do próximo ano.
“Aqui definitivamente não é um espaço para buscarmos o lucro, para ganharmos dinheiro. O intuito é formarmos e abrirmos, do modo mais transparente e horizontal possível, esse vasto acervo de publicações de arte que, possivelmente, poderá operar como um reforço às já defasadas bibliotecas das respeitadas universidades públicas da cidade – como a Uerj e a UFRJ, além da privada PUC-Rio –, mas também servindo de ponto de venda para editoras estrangeiras que terão sua entrada facilitada no país, tanto pelos acessos conquistados pela dupla quanto pelas parcerias institucionais que vêm sendo travadas com agentes país afora”, reforça Victor, lembrando a centralidade dos livros em sua proposta idealizada com Pitthan. “É difícil guardar segredo acerca do que consegui planejar e delinear como um programa curatorial, até o próximo ano”, ri, como quem guarda algo na ponta da língua. “Podemos adiantar, radiantes (mesmo!), que iremos exibir desde projetos comissionados, como nosso Clube de Prints, que reunirá obras inéditas de nomes de diferentes gerações, como Adriana Varejão (a primeira a topar e a acreditar no projeto, lá atrás, diga-se!), Janaina Tschape, Luiz Zerbini, Marcela Cantuária, Raul Mourão, Maria Lynch, Daniel Frota, Luisa Brandelli, Guga Ferraz, Laura Lima, Diambe…”, elenca.
A abertura oficial, em junho, contará com shows pocket de uma turma do naipe de Luisa Arraes – melhor amiga de Gorgulho, já tem até as chaves do espaço, onde adora fotografar ensaios e afins – e ninguém menos do que Bebel Gilberto, a eterna filha máxima da bossa nova. “Eu já a convidei, ela fez que sim daquele jeito carinhoso e fugidio dela. Eu acho que temos chance, ué”, gargalha, sua risada sempre a pontuar seu discurso empolgado, como quem está a gestar para valer seu filhote cultural, fruto de uma conquista nada fácil, em meio ao próprio bolso, doações de entidades filantrópicas e a esperança no sucesso de vendas dos produtos (exclusivos) que estarão ali presentes para o grande público poder ter, enfim, um acesso à arte (e a compra de uma obra, seja ela um print, uma gravura, serigrafia e outros derivados de técnicas múltiplas de impressão), de fato mais inclusivo, verdadeiro, sem aquele paleolítico comportamento elitista que reafirma uma certa ideia de que a arte não é para todos.
Além de um acervo de livros que segue a crescer, há uma série de projetos de exposições que flertam, de maneiras distintas, com o universo literário. É o caso da exposição BLAST!, confirmada para outubro e novembro deste ano, que consiste em uma individual do cineasta Karim Ainouz apresentando algumas de suas obras fotográficas e também audiovisuais, ainda que em outros suportes e um tanto mais experimentais do que seu trabalho nas telonas. “É um espaço de mistura mesmo, localizado justamente onde, lá atrás, tanta coisa – movimentos artísticos, parcerias, episódios históricos da nossa cultura como um todo – acontecia”, resume, precisamente, Arraes. “O Victor é praticamente meu irmão, da minha família há anos já; quando eu soube que ele havia conseguido o espaço e que tinha a chave em mãos, pedi na hora para que ele me emprestasse. Ele nunca nega nada ligado ao meu entusiasmo. A gente vai fazer até teatro aqui, nos aguardem”, se empolga Luisa, a atual Blandina da novela das 6 da Rede Globo No Rancho Fundo, dando indícios de que Gorgulho tem o desejo de partir de um texto dramatúrgico antigo do genial Jô Bilac, amigo próximo da dupla também, e, ali, reencenar o texto, com Victor dirigindo Luisa, como foi quando eles se conheceram, há mais de 14 anos. Vida longa ao Glória!