Arte

Sonia Delaunay: a mulher das artes à moda, do design ao figurino

Das artes à moda, do design ao figurino, Sonia Delaunay chegou a vender suas criações no Rio de Janeiro e criou fantasias para o carnaval de 1928

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Sonia Delaunay - Foto: Getty e Reprodução.

Nascida em Gradizhsk (à época pertencente ao Império Russo; na atual Ucrânia) em 14 de novembro de 1885, em uma família judia, com o nome de Sarah Illinitchna Stern, se tornou a primeira artista mulher a ganhar uma mostra no aclamado Musée du Louvre, na Paris de 1964. Ao ficar órfã de seus pais, quando tinha de 5 para 6 anos, foi morar em São Petersburgo, na Rússia, com um casal de tios, o irmão de sua mãe Henri Terk e sua esposa Anna, ele, um advogado local muito conhecido e influente. Ainda menina, pediu para trocar de nome: passou a se chamar Sonia Terk (Sonia Terk). Viajou para a Finlândia, além de outros países europeus e seus tios a apresentaram às artes em constantes visitas a museus e galerias.

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Sonia Delaunay - Foto: Monique Jacot / Getty Images.

Quando adolescente, aos 16 anos, um professor notou suas habilidades para o desenho e a orientou a estudar artes. Dois anos mais tarde, foi para a Alemanha, para se formar na Academia de Belas Artes de Karlsruhe. Aos 20 anos, mudou-se para Paris dando continuidade aos estudos de artes na Académie de La Palette, no artístico bairro de Montparnasse. Não se adaptando muito à metodologia desta academia, preferia passar a maior parte do tempo frequentando museus e, especialmente, galerias de arte, recebendo, então, influência da arte neoimpressionista; dos artistas pós-impressionistas e, muito em especial dos fauvistas (fovistas), que mergulhavam no universo das cores em combinações intensas. 

No seu primeiro ano de estudos em Paris, Sonia Terk aceitou se casar com o colecionador, negociante, autor, crítico de arte e dono de uma galeria, o alemão Wilhelm Uhde (1874-1947), tido e conhecido como homossexual. Devido à união, teve a chance de se enveredar mais facilmente no mundo das artes de Paris.

Ao ter contato mais próximo com Delaunay, teve acesso à sua pesquisa em cores, o que viria a ser o fundamento do “Orfismo”, que recebeu este nome devido a Orfeu, figura da mitologia grega que era poeta e tocador de lira que encantava a todos, inclusive os animais ferozes e as plantas. Orfeu é o deus da música e, sendo ela propagada por sons e os sons propagados por ondas sonoras de características circulares e concêntricas, o uso dessas formas tornou-se a grande identidade visual do casal Delaunay, em forças de dinamismo e movimentos contínuos com exuberância de cores.

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Croquis das fantasias criadas por Sonia Delaunay para o carnaval do Rio de Janeiro de 1928 - Foto: Getty e Reprodução.

Mais do que as características visuais coloridas e circulares, o casal Delaunay também pesquisava o “Tratado da Lei do Contraste Simultâneo das Cores”, do químico francês Michel-Eugène Chevreul (1786-1889), diretor do setor de tinturaria da Manufatura de Gobelin, também diretor do Museu de História Natural de Paris e professor de Teoria de Cores na escola das artes do Musée du Louvre. Após 11 anos de intensa pesquisa, Chevreul chegou à conclusão, em 1839, como as cores, pelo ponto de vista da bioquímica, se comportam na retina dos nossos olhos. Tratou-se, entre outras prerrogativas, de um resultado de pesquisa com mais de 700 páginas no qual ele comprovava como as cores diametralmente opostas em um círculo cromático se complementam e se intensificam uma à outra. São as cores complementares. Peguemos um círculo cromático, o mais simples, com as três cores primárias (magenta, amarelo brilhante e azul ciano) e as três cores secundárias (laranja, verde e violeta). A cor pigmento fica inalterada mas, na retina dos nossos olhos, a cor em forma de luz torna-se mais intensificada com as combinações magenta x verde; amarelo brilhante x violeta e azul-claro x laranja. Este é o conceito do “Contraste Simultâneo das Cores”, de Chevreul. Mais do que isso, ao olharmos intensamente para uma determinada cor por aproximadamente um minuto, a retina dos olhos satura e o cérebro passa a “enxergar” exatamente a cor oposta, ou seja, se olharmos para um tom de verde, depois de um tempo o cérebro nos envia visualmente, ao piscarmos os olhos, a cor magenta. Acontece o mesmo com as outras cores diametralmente opostas, inclusive com o preto e branco. Parece mágica, mas não é. Trata-se da bioquímica das cores na retina dos olhos, caso a pessoa não seja daltônica. Novidades tanto para a ciência quanto para as artes. Há inúmeras outras possibilidades de contrastes e combinações segundo Chevreul (duplo complementar, cores análogas, triângulo harmônico, pentágono harmônico entre outras), além das combinações com as variações de tonalidades das cores opostas. É uma prática especialmente usada na moda de hoje em dia pelas consultoras de imagem e estilo.

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Croquis das fantasias criadas por Sonia Delaunay para o carnaval do Rio de Janeiro de 1928 - Foto: Getty e Reprodução.

Daí o Orfismo usar especialmente a palavra “simultâneo” nos seus fundamentos; sem esquecer das simultaneidades e dinâmicas dos novos tempos do fim do século 19 e início do 20, advindas dos avanços tecnológicos da época (luz elétrica, automóvel, avião, novos vapores, todos pós-Revolução Industrial) e proclamada e exaltada pelos artistas do Futurismo, movimento surgido na Itália e difundido via Paris, a partir de 1909 pela poesia de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) e, a partir de 1910, via Milão, pelas Artes Plásticas (como era chamada até então). Daí um certo diálogo entre cores e dinâmicas simultâneas dos dois movimentos: enquanto o Futurismo não tem linguagem visual própria (apropriando-se das linguagens fovistas, cubistas e até mesmo um pouco das linguagens abstratas); o Orfismo é especialmente abstrato.

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Croquis das fantasias criadas por Sonia Delaunay para o carnaval do Rio de Janeiro de 1928 - Foto: Getty e Reprodução.

Segundo afirmação de alguns teóricos da arte, a grande conceituação do Orfismo veio dos estudos da própria Sonia Delaunay, em continuidade e consequência das pesquisas do seu amado esposo Robert. Porém, por ser apaixonadíssima por ele, Sonia, mesmo tendo um comportamento de significativa liberdade e autonomia, preferiu ficar afastada deste reconhecimento público pois ela poderia fazer mais sucesso do que o marido, o que não seria adequado à época. Desta forma, Sonia optou migrar para as Artes Aplicadas e as Artes Decorativas, hoje chamadas Design de Produto e Design de Interiores, respectivamente. Ainda na gravidez, Sonia recebeu uma quantidade de sobras de tecidos do alfaiate de Robert, em que prevaleciam cores escuras e tons terrosos, comum às roupas masculinas em uma herança austera do século XIX. Ao fazer uma colchinha de retalhos em cortes geometrizados para o berço do bebê, percebeu que aquele patchwork de retalhos escuros e terrosos de predominância monocromática tinha uma linguagem visual do Cubismo Analítico (em que dominam a multiperspectiva do olhar; a fragmentação das formas e a monocromia em tons de cinza e terrosos). Já no Cubismo Sintético, a forma não é tão fragmentada e as cores tornam-se mais presentes. A artista viu assim um possível amálgama entre as Artes Plásticas e outros fazeres tidos à época como “menores”. Daí em diante, Sonia esteve envolvida com as Artes Aplicadas e as Artes Decorativas, se enveredando intensamente pelo universo da moda.

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Croquis das fantasias criadas por Sonia Delaunay para o carnaval do Rio de Janeiro de 1928 - Foto: Getty e Reprodução.

Passou por diversas dificuldades, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), mudando-se da França para a Espanha, em 1914; e depois para Portugal, em 1915. Como se não bastassem os problemas advindos da Guerra de 1914, em 1917 houve a Revolução Bolchevique na Rússia, o que lhe impediu de continuar a receber ajuda financeira dos tios de São Petersburgo. 

Mas neste mesmo ano de 1917, os Delaunay encontram, em Madri, com o empresário russo Sergei Diaghilev (1872-1929), fundador, em Paris, dos Ballets Russes que lhes encomendou trabalho para a ópera Cléopâtre (Cleópatra). Sonia fez o figurino e Robert, a cenografia. Fez outros figurinos, como o famoso Le Coeur à Gaz (Coração a Gás), em 1921, já em Paris, para encenação do texto do poeta romeno Tristan Tzara (1896-1963); assim como outros trabalhos que favoreceram o restabelecimento financeiro do casal.

Em 1920, viajou a Paris e foi procurar trabalho na indústria da moda. Foi recusada por Paul Poiret (1879-1944), mas não desistiu. Posteriormente, o casal e o filho mudaram-se para Paris, quando Sonia se estabeleceu, primeiramente, com seus tecidos estampados e, na sequência, com seus vestidos da sua própria empresa registrada. A possibilidade financeira veio ao venderem a pintura do artista naïf Henri Rousseau (1844-1910) La charmeuse de serpents (A encantadora de serpentes), obra de 1907, para o costureiro e colecionador de arte Jacques Doucet (1853-1929).

Daí em diante, Sonia esteve envolvida com as Artes Aplicadas e as Artes Decorativas e também com o universo da moda. Foi trabalhar com estamparia, em especial para sericultores de Lyon. Seus desenhos multicoloridos e de combinações especialmente com cores complementares, assim denominados de “estampas simultâneas” tornaram-se uma realidade da moda, em particular na Paris dos anos 1920. Das estampas partiu para as roupas: os “vestidos simultâneos”, inspirados no seu primeiro vestido em patchwork colorido feito para o Baile dos Artistas Russos de 1913, que acontecia anualmente em Paris e a cada ano um artista russo era convidado a fazer a decoração. O baile do ano de 1913 coube à Sonia Delaunay decorá-lo e teve merecidos sucesso e reconhecimento. Tudo muito colorido, inspirando-se nas intensas combinações cromáticas baseadas na “Lei do Contraste Simultâneo de Cores”, de Chevreul.

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Trajes de banho dos anos 1920 de Sonia Delaunay - Foto: Getty e Reprodução.

Desta forma, Sonia começou a comercializar suas criações de têxteis estampadas e seus vestidos. O amálgama com as ditas Artes Plásticas era uma constante, mesmo com o sutil disfarce das Artes Aplicadas e Artes Decorativas. Criou roupas de banho, guarda-chuvas, lenços e uma série de outros produtos usáveis. Passou a vestir atrizes e a alta roda artística dos “Anos Loucos”. Na Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes de Paris, em 1925, que legitimou a estética do Art Déco, expôs suas criações “simultâneas” junto com um grande nome da alta- -costura de então, Jacques Heim (1899-1967), em um espaço montado em plena Pont Neuf, sobre o Rio Sena, na esfuziante Paris dos anos 1920, no denominado Pavilhão Internacional da exposição, recebendo o nome de “Boutique Simultanée”. Com a Depressão de 1929, Sonia encerrou suas atividades na moda, voltando-se, então, à pintura e à ilustração gráfica publicitária.

O seu sucesso tornou-se uma grande realidade na junção de arte e moda, chegando, inclusive, a dar uma aula na Sorbonne Université sobre a influência da pintura na moda. Desenhou roupas , figurinos, motivos para bordados, objetos, mobiliário, tapeçarias, porcelanas, joias, fez ilustrações para livros, capas de revista, atuou como desenhista gráfica (até mesmo para superfície de automóveis), entre outras atividades culturais, inclusive vendendo seus produtos no Rio de Janeiro, como atesta o seu cartão de visitas com pontos de venda em Paris (19, Boulevard Malesherbes); Londres (20, Berkelly Street) e Rio de Janeiro (na Casa de Aladin, situada na Rua 13 de Maio, n. 52). 

Com o seu contato na então capital do Brasil, chegou a criar um figurino para o carnaval carioca de 1928, com as fantasias “Banana ", “Serpentina”, entre outras, sendo de extrema criatividade e de intenso colorido.

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"Vestido Simultâneo" em cores contrastantes e formas abstratas. Anos 1920 - Foto: Getty e Reprodução.

Com todo este empenho e produção artística, sendo mais conhecida no universo das artes, também deixou marcas indeléveis no mundo da moda. Contemporânea de Gabrielle Chanel (1883 -1971), esta mais conhecida no mundo da moda [considero Sonia Delaunay tão importante para a moda quanto Mademoiselle Chanel]. Enquanto a francesa privilegiou o purismo das formas e as cores sóbrias e discretas, especialmente o preto; a ucraniano- -francesa evidenciou as cores vivas, as estampas e a exuberância visual. Ambas muito importantes no cenário da Paris dos anos 1920, mas, se a moda tornou-se mais alegre e colorida, deve muito a este arauto chamado Sonia Delaunay, a maga das cores. 

Robert faleceu de câncer, em Montpellier, em outubro de 1941. Em 1964, a viúva e o filho Delaunay fizeram uma doação de 114 obras, assinadas tanto por Robert quanto por ela, ao Museu de Arte Moderna de Paris, o Centre Georges Pompidou, inclusive a colchinha de retalhos que deu origem à sua trajetória aqui descrita. Sonia morreu em Paris, em dezembro de 1979, aos 94 anos, tendo sido reconhecida em vida como grande patrimônio cultural francês pelo Ministério da Cultura da França, do qual recebeu honrarias. Em 2014/2015, o Centre Pompidou fez uma grande exposição retrospectiva das obras do casal Delaunay. Disse Sonia: “Sempre mudei tudo ao meu redor. Fiz minhas primeiras paredes brancas para que nossas pinturas ficassem melhores. Eu projetei móveis, eu fiz tudo; eu vivi a minha arte”.

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