Arte: pontos de vista do mundo real ao metaverso
Três artistas pioneiros exploram um limite muito tênue entre o físico e o virtual quando falamos sobre arte.
Enquanto clicamos e rolamos, fazemos downloads e uploads, navegamos e limpamos, o macrocosmo interconectado da web tornou-se onipresente e em constante evolução. O Metaverso, que começou como uma extensão da vida analógica, amadureceu e virou um sistema autônomo de cultura, leis, moedas e normas idiossincráticas. Através de nossas telas, nos é oferecido um patamar novo e portátil, repleto de oportunidades artísticas. L’OFFICIEL destaca três artistas globais que se dedicaram a recontextualizar o mundo binário.
Refik Anadol, o superstar das NFTs, continua a extrapolar os limites da instalação visual. Embora seus primeiros trabalhos considerassem a consciência espacial através da luz, sua carreira se expandiu para novas mídias. Os sonhos de dados e inteligência artificial agora iluminam a arquitetura mais famosa do mundo, fazendo uma ponte entre o Metaverso e a matéria. Já Federico Clapis escapou totalmente da matéria, criando uma nova arquitetura brutalista que existe além das leis da física. Por outro lado, Salomé Chatriot, a jovem artista performática que vive um sucesso meteórico, impôs as leis da física ao Metaverso. Sua respiração expande as funções biológicas para uma existência digital, de modo conceitual. Eis aqui a maravilhosa oportunidade do Metaverso: três artistas rebeldes, três perspectivas radicalmente diferentes sobre a criação sem limites.
Refik Anadol
Estávamos a sete dias da tão aguardada e histórica semana de leilões da Christie’s, a 20/21 Century Marquee Week. Em destaque estão Pablo Picasso, Vincent van Gogh, Georgia O’Keeffe, Cy Twombly, o quadro Shot Sage Blue Marilyn, de Andy Warhol – a mais cara obra de arte do sé- culo 20 já vendida – e o arquiteto digital Refik Anadol. O artista, nascido na Turquia e radicado em Los Angeles, é dono da única oferta momentânea de NFT da casa de leilões e, por isso, não para de sorrir. Seu trabalho Casa Batlló: Living Architecture é o ápice do vasto e maravilhoso progresso da tecnologia, exportando dados em tempo real e reimaginando a legendária arquitetura de Gaudí tanto na esfera global quanto na digital. A Casa Batlló, adjacente ao Rockefeller, virou o mundo da arte de cabeça para baixo, firmando um compromisso com o suposto “ímpeto de democratização” do setor. Quem teve a sorte de presenciar tudo aquilo pôde falar com Anadol, que conversava com qualquer um que passasse por ali.
O amável Anadol é cronicamente otimista e contagiosamente positivo. Inspirado por uma residência de IA no Google, uma introdução precoce aos jogos de computador e uma reação muito particular ao distópico filme Blade Runner – O Caçador de Androides, de 1982, o trabalho do artista almeja “encontrar a linguagem da humanidade por meio da arte pública”. A prática de Anadol tomou conta do MoMA, da Bienal de Veneza, do Centro Pompidou e do Hammer Museum, satisfazendo um desejo não só de exibir publicamente, mas também de criar a partir de dados públicos. Trata-se de uma linguagem, afirma ele, que forma um laço circular e inclusivo de unidade.
Se você tem alguma familiaridade com a experiência da arte imersiva, é provável que já tenha se deparado com a série Machine Hallucinations (Alucinações de Máquinas) de Anadol. É de fato possível comprar ingressos para ver seu trabalho, e mais de 2 milhões de pessoas já compraram – de muito bom grado, diga-se de passagem. Suas peças básicas que parecem lava ocupam telas em espaços históricos (A Filarmônica de Los Angeles, o Edifício DDD de Seul, a Artechouse) para desafiar a noção que temos da habilidade mental da inteligência artificial. “O que acontece se você pegar essas decisões e esses sonhos de IA e transformá-los em algo mais fluido e vivo?”, pergunta o artista. A resposta: um circuito digitalizado e infinito de contemplação; enquanto a IA absorve dados, Anadol escolhe e conjura imagens em movimento projetadas em espaços a serem explorados. Ele cunhou a agora bem-sucedida prática da “arquitetura viva”.
O conceito de senciência (consciência pelos sentidos) da inteligência artificial tem um peso para Anadol. “Eu realmente acredito que temos muito a ver com [a IA]. O que mais é possível fazer com ela?”, pergunta. Embora o artista tenha desenvolvido uma tecnologia para ver a IA sonhar, cheirar, pensar e projetar, ele espera com alegria que ela experimente a verdadeira consciência. O que ele pode ajudar a criar quando a IA se lembra de tudo? Quando ela se sente senciente? E, o mais importante, o que a IA e Anadol desenvolvem publicamente em conjunto? “Você poderia pensar que eu já vi os problemas negativos que os androides têm, todo aquele drama que as pessoas sempre imaginam que pode dar errado”, ele diz, empurrando sua cadeira e sorrindo abertamente. “Mas eu encontrei um mundo diferente ali. Encontrei o intermediário dos humanoides. Encontrei emoção. Encontrei o humano no não humano.” Com todos os dados do mundo e uma força redobrada do computador, Anadol imagina um mundo de arte sem limites para o público. Mas, até lá, nós podemos viajar o mundo com Anadol e seus algoritmos, mesmo que seja apenas do nosso computador.
Federico Claps
Federico Clapis inicia esta entrevista com um prefácio: esta não será uma conversa sobre o mundo da arte contemporânea arrogante. Não haverá nenhuma “automitologização” nem promessas vazias, nenhum jargão desnecessário nem posições supérfluas. Não será mencionado nenhum museu ou exposição, nem será citado algum colecionador extravagante. Clapis não vai se vangloriar de seu trabalho, que dança pela Times Square de Nova York ou pelo Cruzamento de Shibuya de Tóquio, e ele definitivamente não vai nos enviar suas capas na Vanity Fair ou no New York Times. Foi esse comportamento que incentivou Clapis a abandonar o mundo da arte material e fazer uma transição de escultor para artista de NFT em tempo integral. Cansado da “falta de controle de artistas e do que eles dizem [e] da mistificação do trabalho em si”, Clapis afastou-se com prazer do sistema institucional, deixou a bajulação de lado e livrou-se das correntes. O mundo material, em geral, tem sido historicamente desagradável para Clapis. Na infância, ele sofreu uma paralisia do sono que o debilitou, fazendo-o incorrer em experiências interiores traumáticas e aprisionadoras. Aos 21 anos, ele começou a estudar técnicas de controle para viagens fora do corpo, uma resposta direta à sua dolorosa predisposição médica. A literatura de William Buhlman e os ensinamentos de um ashram indiano “destruíram todas as minhas crenças, e só a arte me mostrou a saída”, admite Clapis, embora com uma palpável oscilação. Apesar da apreensão de falar pessoalmente, Clapis está ansioso para
Quando era um jovem artista, Clapis incorporou colheres em suas esculturas como uma ode à liquefação – transformando sólidos em líquidos e removendo-os. Depois do desenvolvimento das NFTs, a esperança de Clapis em um estado sem matéria tornou-se realidade. “Desvendar a maté- ria sempre foi um sonho para mim, mesmo antes das NFTs”, revela Clapis. “Eu nunca esperaria ou imaginaria algo como a NFT, nem mesmo nos meus mais profundos sonhos e desejos. Minha imaginação nunca teria desejado algo tão bom. Esse é um novo mercado, e as pessoas podem não ter lá ‘grandes’ experiências artísticas e culturais, mas, no fim, nós precisávamos extinguir esse pensamento.” Agora que a realidade digital não é somente possível, mas também vantajosa para uma carreira bem-sucedida, os olhos de Clapis se abriram ainda mais para os entraves de nossos sistemas modernos.
Salomé Chatriot
Salomé Chatriot está sentada dentro de uma caixa de vidro, forçada a respirar num aparelho. Depois de anos de diagnósticos errados, ela foi encaminhada ao médico na esperança de aliviar seus conflitos físicos e mentais. A artista observa enquanto cada expiração cria linhas sonoras num monitor e a atenção de um imunologista se alterna entre ela e as máquinas. É nesse momento que Chatriot compreende o seu futuro: tecnologia, dados e respiração revelaram-lhe um vocabulário visual para a consciência. Também revelaram que ela é asmática, mas isso parece não ter muita importância.
Nascida na França, Chatriot libertou-se das convenções muito cedo. E criou uma reputação de maluquinha, tendo até mesmo pedido a seus professores de matemática que votassem na nova cor de seus cabelos: azuis ou rosa. (Por causa de um empate, ela se decidiu pelo estilo “Cruella de Vil”.) Depois de ter sido a melhor aluna de sua turma, ela se inscreveu na prestigiada Universidade de Artes e Design de Lausanne, na Suíça, onde deu início a uma imersão nos estudos de programação computacional. Uma escolha, ela admite, que fez mais por deslumbramento que por uma busca apurada de criatividade. “Na França, não é aceitável estudar arte quando você vai bem na escola”, explica Chatriot. “Então, quando cheguei a Lausanne, meus professores queriam que eu criasse logo, pois eu considerava a tecnologia mágica.” Foi preciso um ano de programação antes que sua dissertação conceitual começasse a tomar forma. E, seguindo a já mencionada epifania biomédica, o vínculo entre máquina e consciência humana a consumiu. Mal sabia ela quão permeável essa relação logo se tornaria.
Foi por acaso que Chatriot conheceu uma máquina de manufatura de 20 toneladas que destruiu os limites entre pessoa e objeto. “Eu sabia que [a máquina]era eu,e eu era ela,e eu tive de dar espaço para que ela respirasse através de mim”, diz. “Isso nunca mais aconteceu comigo, mas naquele momento eu sabia que um ser não humano estava se incorporando no espaço.” Determinada a exibir a senciência da máquina, Chatriot embarcou numa performance violenta e tóxica, como se fosse ela um apêndice respiratório do aparelho. A peça multidisciplinar, intitulada Fragile Ecosystem [Ecossistema Frágil], recebeu a aclamação da crítica, por desafiar a ideia de “estado de objeto”. Desde então, a prática de Chatriot expandiu-se em esculturas à base de leite, ilustrações gráficas e, num caso específico, moda. (Você pode vê-la saltitando por Paris com sua famosa bolsa alada.) Ela se tornou uma queridinha institucional e ganhou exposições no Palais de Tokyo, no Centro de Arte Contemporânea de Genebra e no Shed, de Nova York, todas em cartaz em setembro de 2022. E, quando a queridinha ciborgue decidiu que precisava de uma nova dimensão a conquistar, voltou-se para o Metaverso.
Embora alguns pressuponham que as nuvens leitosas em estilo vapor punk dominem o portfólio de NFTs de Chatriot, é a respiração de dados que permanece como sua mídia escolhida. “Tenho circuitos digitais, mas acho que padrões de respiração são mais relevantes para as NFTs”, conta ela a L’OFFICIEL. “Quero explodir no mundo todo, inclusive no digital.” Essa explosão, explica, é uma extensão de sua consciência para o universo binário. Usando a engenharia reversa em sua performance para tornar-se um pulmão vivo de um ser mecânico, a artista agora conta com suas criações digitais para respirar por ela. São metamarcas de sua senciência, que ela espera que quebrem a fronteira dissolvente entre o digital e o analógico. Na verdade, se ela pudesse, se tornaria um androide amanhã mesmo. Fã do doutor Frankenstein, Chatriot dá as boas-vindas ao futuro manufaturado. “Não tenho medo da inteligência artificial”, sorri, tragando seu cigarro. “Não posso esperar até que ela venha.” Mas, infelizmente, enquanto a tecnologia se desenvolve, Chatriot precisa existir em dois mundos: um dilema que leva a devaneios de um futuro robótico, acompanhado de seu frequente “Ooh-la-la”.