Nicolle Rocha: a poesia da aquarela
Em entrevista exclusiva, a artista plástica Nicolle Rocha nos conta sua trajetória e suas inspirações como artista.
Nicolle Rocha, nascida na vibrante cidade de Recife é uma artista visual cuja obra é um reflexo de sua profunda conexão com a natureza e a aquarela. Em sua prática artística, Nicolle utiliza papéis artesanais com superfícies rústicas, criando um contraste fascinante com a suavidade que a técnica proporciona. Essa combinação é um meio de explorar e transmitir a ambiguidade da personalidade humana, tema central em suas pesquisas artísticas.
Para Nicolle, o processo criativo é uma jornada contínua de autoanálise. Suas obras geométricas, com suas linhas retas e precisas, são uma busca pela harmonia absoluta, mesmo sabendo que esta é um ideal inatingível. Em contraste, suas criações com formas orgânicas, que evocam o feminino e o masculino, permitem que a água interaja livremente com o pigmento e o papel, resultando em composições que refletem a fluidez e a impermanência da vida.
Cada camada sobreposta nas suas obras é uma analogia para a alma humana, complexa e multifacetada. É nesse acúmulo de camadas que Nicolle constrói novas interpretações e significados, espelhando nossa intrincada natureza.
O mar esmeralda de Pernambuco, que encantou Nicolle desde a infância, é uma presença constante em suas aquarelas. Suas pinturas não apenas refletem suas memórias, mas também provocam uma reflexão que expressa suas emoções e pensamentos através da arte.
Cada obra da sua nova exposição "Água de Cor”, que inaugurou em julho no Frade Vilas, em Angra dos Reis revela a harmonia entre controle e acaso, entre o que é planejado e o que é deixado à fluidez da vida. As mais de 50 obras, oferecem uma imersão no universo sensível e introspectivo da artista. Em "Água de Cor", Nicolle Rocha oferece uma visão sensível e poética da interação entre seus sentimentos e a técnica da aquarela.
Agora um pouco mais sobre Nicolle:
Como você se descobriu artista?
Minha história com a arte e a criatividade está profundamente ligada à hereditariedade. Tanto minha avó materna quanto minha mãe possuem um alto grau de habilidade manual. Minha avó, à sua maneira, sempre se dedicou à costura e ao bordado de uma forma incrivelmente delicada e detalhista. Ela sempre foi muito precisa, quase científica, em suas expressões. Tenho muitas memórias dela medindo tudo com fita métrica, sempre buscando perfeição.
Já minha mãe é uma pessoa totalmente diferente. Ela é uma alma livre, incapaz de se prender a regras ou a uma régua. Embora ela também tenha muitas habilidades manuais – nunca gostou de se limitar. Ela sempre pintou, fez colagens e trabalhou com as mãos, mas tudo de forma muito livre, sem se prender a normas. Para ela, a arte sempre foi algo feito por prazer e nunca como uma profissão. Sinto que sou uma combinação dessas duas personalidades.
Quando olho para a minha arte, vejo o lado geométrico, as formas precisas que traço com régua e grafite, e me lembro da minha avó. Me esforço para manter tudo dentro das linhas, mesmo na aquarela, o que exige um esforço extra. Mas também tenho esse lado livre, de “faça do seu jeito, use a sua imaginação”, que herdei da minha mãe, que sempre nos incentivou a sermos criativos.
Como foi deixar sua formação para apostar no mundo da arte?
Minha trajetória profissional, na verdade, foi um tanto aleatória. Sou formada em Direito, mas nunca me senti pertencente a esse universo. Concluí o curso mais por um senso de responsabilidade de terminar o que comecei do que por paixão. Após me formar, fui para São Paulo fazer um MBA em Marketing na ESPM e, durante esse período, comecei a trabalhar com moda. Foi nesse momento que comecei a despertar para a parte artística da minha vida. Trabalhei com moda por cerca de 5 ou 6 anos e tive uma confecção chamada Santa de Roca. O que mais me atraía nesse trabalho era a criação de estampas e a escolha de cores. Sempre tive uma forte atração por cores, desde pequena, com alguns tons específicos me fascinando mais que outros. A combinação de cores, o color blocking, tudo isso sempre me chamou muita atenção.
Acho que durante o tempo da confecção, eu já ensaiava minha entrada no mundo das artes. Mas a grande virada de chave, a descoberta da aquarela, veio junto com um período de intensa terapia, autoconhecimento e a pandemia. Comprei um kit de aquarela para presentear um amigo e, por curiosidade, comprei um igual para mim. No final das contas, o maior presente foi para mim mesma, quando descobri essa nova técnica. Lembro exatamente da sensação que tive ao encostar uma gota de água no papel de aquarela. A tinta se expandiu, e eu fiquei de boca aberta. Como é que eu nunca havia experimentado aquilo antes? Até hoje, essa sensação de impacto permanece, dependendo da cor ou da capacidade de expansão de uma nova tinta.
Continuo me surpreendendo e me encantando. Desde esse primeiro momento até agora, fiz inúmeros cursos, aulas particulares e passei muitas horas experimentando no ateliê, até finalmente alcançar o que queria – algo que nem sabia que buscava. Mas quando a minha primeira obra abstrata ficou pronta, usando um papel indiano que estava usando pela primeira vez, com uma superfície mais irregular, senti que havia encontrado o meu caminho. Pensei: "É isso. É isso que eu quero fazer."
Na verdade, essa transição foi muito mais sobre aceitar que havia em mim algum tipo de talento criativo que eu precisava externalizar. Era uma necessidade não só de usar essa criatividade, mas também de mostrar às pessoas o trabalho que eu estava realizando. Acho que o artista, pelo menos no meu caso, enfrenta essa dúvida interna: será que esse trabalho realmente faz sentido? Será que deve ser mostrado? É uma luta constante entre a insegurança de deixar algo para trás e a convicção de que está lindo e precisa ser compartilhado. Então, essa transição foi muito mais sobre acreditar em mim mesma e seguir adiante. É impressionante como, quando damos esse passo de confiança, as portas começam a se abrir e as oportunidades aparecem. Aí é só seguir o fluxo.
O que te inspira, te emociona e coloca sua criatividade para funcionar?
Sem dúvida, a natureza é minha maior fonte de inspiração. As cores que uso, as formas orgânicas que aparecem nas minhas obras, tudo isso vem da natureza. Mas há muito mais, algo que vem de memórias. São lembranças de infância, de verões felizes, das praias de Pernambuco. Aquelas formas de semi círculos nas minhas obras remetem às piscinas naturais. Acho que tudo isso é uma sedimentação de memórias – os tons de rosa dos buganvílias da fazenda, por exemplo. Está tudo dentro de mim e, aos poucos, vai saindo. Tem grandes artistas que admiro e que inspiram também: Hilma Af Klint, Tomie Ohtake, Gabriela Machado para mencionar alguns… Desde pequena, sempre gostei de ficar sozinha, sempre tive essa necessidade. Trabalho sozinha no meu ateliê e posso passar horas imersa nesse universo particular. Tenho rituais que sigo antes de começar a pintar. Sempre acendo uma vela. Às vezes coloco uma música ou uma frequência para tocar, que pode ser bem baixa ou alta, dependendo do meu ânimo. Quando coloco alto, é para levantar o astral, soltar a criatividade. E toca de tudo: de Bach a Caetano, Gypsy Kings, Jazz, Blues, Samba. Depende do dia, do humor. Vou seguindo meu instinto. Mas muitas vezes, passo horas totalmente em silêncio, mergulhada na minha conversa interna. É nesse silêncio que, acredito, surgem as melhores ideias. Algumas pessoas chamam isso de inspiração, criatividade, o “outro lado”. Eu sou fantasiosa e me assumo como tal. Chamo isso de mágica, e acredito realmente nela.
Quando é que a obra está pronta?
Essa talvez seja a pergunta mais difícil de responder. Pode ser que o que eu vá dizer não faça muito sentido para quem vai ler, mas é assim: eu nunca pinto uma obra só de cada vez. Há o tempo de secagem, o tempo de espera. Cada obra leva uma quantidade diferente de água, de camadas, e, portanto, tem um tempo de secagem diferente. Preciso esperar secar para poder aplicar a próxima camada. Por isso, trabalho em séries. Quando começo, nunca sei exatamente como elas vão acabar. Vou colocando as obras para secar no chão, onde consigo vê-las de cima, com mais distanciamento. Leva dias, às vezes semanas. E, de repente, olho para aquele papel e penso: "É isso. Está pronto. Esse aqui não vai levar mais nada." É totalmente intuitivo!
Como você vê a arte brasileira?
Eu acho a arte brasileira extremamente especial. O povo brasileiro, com toda a sua criatividade, espontaneidade e vivacidade, reflete essas características na arte que produz. Estamos vivendo um momento de grande efervescência no mercado artístico. Vejo cada vez mais pessoas se interessando em estudar e entender a história da arte, colecionando obras e visitando museus. Isso é muito importante, pois movimenta a cena artística, cria novas oportunidades e inspira as próximas gerações. É um ciclo positivo que só tende a fortalecer ainda mais a arte brasileira.
Quem vai ser a Nicolle do futuro?
Uma das coisas mais fascinantes em ser artista, para mim, é que não existe um prazo para isso acabar. Você pode ser artista até o último dia da sua vida, sem pressa ou pressão. Estamos vendo, a cada dia, artistas, especialmente mulheres, alcançando grande sucesso já na maturidade, aos 70, 80, 90 anos. Um exemplo que admiro muito é Carmen Herrera, uma artista cubano-americana que só começou a ganhar reconhecimento aos 80 anos e continuou a produzir até os 106, sempre feliz e dedicada à sua arte. Eu sempre tive uma relação peculiar com o tempo, e ser artista combina perfeitamente com isso. Posso trabalhar no meu ritmo, sem pressa, sem pressões externas, adaptando-me às oportunidades que surgem e que fazem sentido para mim. A parte boa de começar uma nova carreira um pouco mais tarde, com mais experiência de vida, é que você já sabe o que não quer. No futuro, pretendo continuar seguindo minha intuição, acreditando em mim mesma e aproveitando o que o universo me trouxer. Gostaria, lá na frente, de poder olhar para trás e ter certeza de que eu me diverti muito e que faria tudo de novo!