Meu nome é Gal: longa-metragem vivida pela atriz Sophie Charlotte
O nome dela sempre será Gal, em longa-metragem lançado em meados de outubro, a cantora continua sendo a musa que verdadeiramente foi
O nome dela sempre será Gal! Vivida pela atriz Sophie Charlotte, o longa-metragem "Meu nome é Gal" que foi em meados de outubro, a cantora continua sendo a musa que verdadeiramente foi.
Desde que renasceu aos olhos do público mundial, no já longínquo ano de 2011, quando lançou o disco Recanto, composto e produzido por seu eterno parceiro de alma e de música Caetano Veloso, Gal Costa não saiu mais da vida daqueles que sempre a tiveram como a histórica musa que verdadeiramente foi, assim como tampouco desgrudou dos ouvidos e olhos atentos de uma turma um tanto mais jovem, devota em mostrar, nesta última década, sua afeição e admiração pela figura de Gal.
Após nos deixar, de maneira repentina e surpreendente, no dia 9 de novembro do ano passado, a performer – considerada uma das maiores cantoras de todo o mundo e não apenas do Brasil – passou a ser alvo de um sem-fim de homenagens destinadas a perpetuar sua memória, especialmente no campo musical. De Adriana Calcanhoto à Marina Sena, de Tim Bernardes à cantora Assucena, não foram poucos os que se lançaram à brava aventura de incorporar, sobre o palco, clássicos de uma carreira tão vasta quanto complexa – em ritmos, rupturas, estilos, comportamentos e registros vocais e corporais. Gal não era brincadeira, sabemos…
Nos anos que se seguiram à realização tanto do disco Recanto quanto de seu excelente registro ao vivo em CD e DVD, à época, Gal não parou de realizar um verdadeiro enfileiramento de projetos que apelavam a todos os seus públicos, álbuns, shows, livros e um documentário dirigido pela cineasta Dandara Ferreira que apenas corroborava esta espécie de missão ao qual se lançaram alguns jovens de gerações um tanto distantes da de Gal. A própria, no entanto, nunca achou estranho este desejo por sua obra, especialmente pelos discos das décadas de 1960 e 1970.
Não seria de estranhar, portanto, que – especialmente após a feitura de um longo documentário em quatro episódios, comandado por Dandara, sob a batuta refinada da HBO Brasil – um longa-metragem de ficção pudesse estar no horizonte de Gal; horizonte o qual a diva nunca parecia enxergar entremeado por névoa, neblina ou qualquer outro elemento que o embaçasse. Gal, aos seus 70 e tantos anos, atravessou a última década sem parar de trabalhar e de lançar novos projetos, invariavelmente bem recebidos pela vasta gama que constitui seu público, assim como pela crítica especializada e/ou por seus mais conservadores fãs. Gal foi uma unanimidade até o fim.
GAL, AOS SEUS 70 E TANTOS ANOS, atravessou A ÚLTIMA DÉCADA sem parar DE TRABALHAR E DE LANÇAR NOVOS projetos, INVARIAVELMENTE BEM RECEBIDOS PELA VASTA GAMA QUE CONSTITUI seu público, ASSIM COMO PELA CRÍTICA ESPECIALIZADA E/OU POR SEUS MAIS CONSERVADORES FÃS.
Dandara nos conta que, em uma tarde qualquer no apartamento de Gal, nos Jardins, em São Paulo, foi quando ambas falaram pela primeira vez sobre a ideia de um filme de ficção para narrar o início de sua trajetória artística, de sua vinda de Salvador, na Bahia, ao Rio de Janeiro, onde encontraria seus comparsas Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil, dentre outros. O local onde a turma residia? O mítico Solar da Fossa, onde hoje está instalado um shopping de dimensões nababescas, em uma zona limítrofe entre o fim do bairro de Botafogo, na capital carioca, e o túnel que o conduz até a lendária Copacabana.
Gal FOI UMA UNANIMIDADE
ATÉ O FIM.
Foi ali que, naturalmente, Gal também se instalou, ainda a arranhar e tentar entender quais eram seus verdadeiros desejos e angústias em torno de sua furiosa vontade de cantar, de performar sobre o palco, mesmo ainda muito tímida e resguardada para tal. Sua voz, no entanto, era o seu maior cartão de visitas à época.
Havia sido ninguém menos do que João Gilberto aquele que, ao ouvir Gal cantar, ainda na Bahia, pouco anos antes, proferiu aos quatro ventos: “você é a maior cantora do Brasil”. Caetano logo tiraria a sua prova dos noves e, é claro, não discordou em absolutamente de Gilberto, aquele que representava tanto para o próprio quanto para Gal, o gênio maior da música brasileira de então.
Capaz de, com apenas uma nota só em seu violão, deflagrar todo um novo jeito de cantar, de posicionar-se no palco, de lidar com seu violão, de criar um engenhoso e sofisticado compasso (por vezes levemente descompassado) entre o som da voz e a cadência do ritmo da canção, sendo emitida pelo violão, por exemplo. João Gilberto era o que havia de mais fascinante e estranho naquele momento, e foi a ele que Gracinha (o primeiro apelido de Gal, antes da mudança radical exercida pelo empresário Guilherme Araújo), e Veloso destinaram toda sua devoção musical, ouvindo-o ininterruptamente, embebidos de um verdadeiro deleite por estarem diante de algo revolucionariamente novo, estranhamente familiar, brutalmente delicioso.
Foi esta devoção que fez com que Gal e Caetano, nos idos de 1967, não se desconectassem um do outro nem mesmo para pensarem suas carreiras individuais, como fazia Maria Bethânia (que já encontrava o êxito por sua performance no show Opinião, em que foi encarar a missão nada fácil de substituir Nara Leão, no Rio de Janeiro ainda ermo, sem nenhum dos baianos, a não ser seu irmão Veloso a “escoltá-la” a pedido do patriarca da família).
O filme Meu nome é Gal triunfa, sobretudo, ao delinear uma janela temporal narrativa que busca dar conta de um período da vida da cantora que – apesar de aparentemente curto –, revelou e deixou eclodir uma série de pequenas revoluções internas em Maria da Graça, da menina bossanovista da capital baiana à hostilidade do Rio de Janeiro que, na tentativa de transformá-la em uma popstar, vivia dizendo: “você precisa ser mais você, se soltar”. A áspera São Paulo, onde viveu junto de seus amigos Caetano e Gilberto Gil, antes que estes fossem exilados pelo regime militar, nos revela uma Gal um tanto conflituosa em seus anseios e angústias – artísticas, afetivas e emocionais –, transmitidas com limpidez e um carisma ímpar pela sempre boa atriz Sophie Charlotte.
Sophie, para fincar seus pés no solo onde Gal Costa pisou, fez um longo caminho de preparação para o papel. Se o projeto existe há mais de cinco anos, foi durante esta meia década que a atriz global passou a frequentar cada show da cantora baiana, em suas diferentes turnês pelo Brasil, ao passo em que ouvia ininterruptamente suas canções e, em encontros pontuais com a própria Gal, ouvia histórias daquelas que poucos sabem, transmitidas ali pela musa tropicalista para a jovem atriz a quem Gal publicamente não escondia sua infinda admiração.
Sophie estava destinada, portanto, a viver na pele de Gracinha, Gal e de Gal Costa, dos idos de 1966 a 1971, recorte proposto pelo filme, culminando em sua volta a morar no Rio de Janeiro, onde frequentava a praia de Ipanema, que não tardou a ganhar um apelido digno da estrela, “As dunas da Gal”, uma vez que o terreno de areia sofria ondulações por conta da obra de um píer submarino que ali estava sendo instalado. Figurinha carimbada, mas também sempre mítica, Gal era o acontecimento da praia carioca e de tantos mais territórios da dita Cidade Maravilhosa.
Em outubro de 1971, longe de seus amigos Caetano e Gil, e mais próxima de nomes como o de Waly Salomão e Jards Macalé, associados ao movimento da poesia marginal da época, a cantora concebeu talvez o seu mais radical experimento cênico-musical. A princípio previsto apenas para cinco apresentações, o show Gal a todo vapor – Fa-Tal, ficaria meses a fio em cartaz no antigo Teatro Tereza Raquel, em Copacabana, onde a juventude livre e libidinosa recém-saída das praias do balneário-deslumbre que era o Rio de Janeiro, logo amontoava-se para conseguir um lugar na plateia do icônico show de Gal, trecho escolhido pelas diretoras e roteiristas Dandara Ferreira e Lô Politti para encerrar sua narrativa audiovisual.
Pode parecer pouco? Vejam o filme e deixem que questões muitas sejam deliciosamente suscitadas em mesas em artigos acadêmicos, em revistas e jornais de toda sorte. Há muito ainda – talvez seja do conhecimento de poucos mesmos – a se destrinchar na trajetória de Maria da Graça, a menina tímida tornada hippie cujo uso do grito era um artifício estético-político, chegando até ao posto de musa de corpo dourado, cabelos e pernas livres, a estender a bandeira da contracultura em um país que agonizava diante da morte (literal e metafórica) da cultura e de seus gênios de então.
Gal vive. Isto é um fato, um delírio e uma especulação. Seja como for, dentro de cada um de nós, na projeção das telas de cinema, nos rádios que teimam a emplacar seus hits das mais de seis décadas de carreira da artista, nas lembranças daqueles que conviveram – de perto ou de longe – com uma performer sem limites. Gal vive, e sua vida após seu encantamento parece estar só começando. Sorte a nossa.