Comida saudável: conheça alguns chefs
A tão famosa comida saudável é improvável em um sistema alimentar insustentável. No Brasil, alguns chefs e restaurantes dão o exemplo e desbravam o caminho
Andamos comendo muito mal. A comida virou mais um bem de consumo como qualquer outro. Nos tempos modernos, o alimento ultraprocessado é um dos principais vilões. É o fruto de estratégias de marketing globais agressivas e de uma busca incessante por lucros. Um estudo recente publicado pela Federação Mundial da Obesidade afirma que mais da metade da população global será obesa até 2035. Se não mudarmos urgentemente a forma como nos alimentamos, o impacto econômico da obesidade chegará a 4,32 trilhões de dólares. Essa soma representa 3% do PIB global, um resultado comparável ao da Covid-19 em 2020. A consequência econômica é preocupante, entretanto a saúde das pessoas e do planeta é ainda mais. Enquanto estamos comendo lixo e jogando fora mais de um terço da comida produzida, mais de 768 milhões de pessoas passam fome.
A pandemia poderia ter quebrado certos paradigmas sobre a segurança alimentar global, mas infelizmente a vulnerabilidade das pessoas em situação de pobreza – que têm um acesso limitado a alimentos nutritivos – só aumentou. O alimento saudável deveria ser um direito universal, mas passamos longe disso. Como fazer para alimentar uma população global de 9,7 bilhões de pessoas até 2050 se tornou uma questão complexa e cheia de contradições. O sistema alimentar global sofre uma pressão e vive atualmente um colapso de valores. Faltam boas perspectivas... Uma coisa é certa, a relação entre o alimento, a saúde humana e a saúde do planeta é evidente. Basta olhar um pouco para trás em nossa história para entender. Como comíamos? Como nossos ancestrais se alimentavam? Qual era a relação das pessoas com a comida? Como transformamos a alimentação nos últimos 70 anos? E mais chocante ainda, como anda a saúde da Terra? A produção sustentável de alimentos e a preservação do meio ambiente são indissociáveis. O planeta é assustadoramente afetado pela forma como os alimentos são produzidos, processados, transportados, consumidos e descartados.
Os canudos de plástico dentro das pobres tartarugas chocaram o mundo, mas são apenas a ponta do iceberg. Há micropartículas de plástico em nosso estômago, há bilhões de embalagens de todos os tipos descartadas diariamente na terra e nos oceanos. Há danos irreparáveis, todos são causados pelo homem. Para produzir comida, precisamos de recursos naturais. E o planeta tem seus limites. Ele vem nos alertando que terra fértil e água limpa não são infinitas, que a emissão de gases de efeito estufa é um dos causadores das violentas mudanças climáticas. Para conseguir levar uma comida saudável até o prato, precisamos preservar os solos férteis e a biodiversidade, além de manter um clima adequado. Fazem-se necessárias e urgentes práticas agrícolas e alimentares que minimizem o impacto no meio ambiente e preservem os recursos naturais para as gerações futuras. É fundamental “cancelar” marcas de alimentos que usam o Greenwashing para vender mais. Busquemos valorizar na raiz a sustentabilidade no mundo alimentado por grandes corporações. Tudo começa com dietas inteligentes, escolhas conscientes e pequenas atitudes que promovam a saúde humana e a conservação do planeta.
O Brasil tem alto potencial para reduzir emissões de gases de efeito estufa por meio da adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis. É sabido que o país é um grande amante de agrotóxicos e que o uso dessas substâncias tóxicas para a saúde humana, e planetária, tem crescido nas últimas décadas. É sabido também que somos um dos maiores produtores de carne, e que a criação de gado é associada a problemas ambientais, como o desmatamento da Amazônia e do Cerrado, e à emissão de gases de efeito estufa. É fato que nem todas as empresas se preocupam com a equidade social e o tratamento justo e respeitoso dos trabalhadores e consumidores finais. Vimos recentemente algumas vinícolas brasileiras associadas a práticas análogas à escravidão para produzir suas uvas. Paradoxalmente, nosso país tem potencial para se tornar uma referência em sustentabilidade. Com sua imensa extensão territorial e diversidade de biomas e culturas, é mais fácil implantar sistemas que respeitem o ecossistema. O clima brasileiro também joga a favor, pois aqui é possível produzir uma grande variedade de alimentos. É urgente promover e valorizar a agricultura sustentável brasileira. A mesma aposta na rotação de culturas, no uso de fertilizantes orgânicos e no controle biológico de pragas. Tudo isso para ajudar a preservar a biodiversidade, manter a qualidade do solo e aumentar a eficiência no uso de água e da energia. É urgente alertar sobre o desperdício, uma das principais causas do impacto ambiental na cadeia alimentar. Desde a produção até o consumo, não faz nenhum sentido jogarmos comida no lixo em um mundo faminto e cheio de conflitos. O Brasil tem uma capacidade criativa ímpar e pode inventar novas soluções de embalagens mais adequadas ao contexto ambiental.
O crescimento da demanda por alimentos mais sustentáveis pode igualmente impulsionar avanços em tecnologias e o uso viável de bioinsumos numa agricultura orgânica e de baixo carbono. Os desafios são enormes e começam pela adoção de políticas públicas e incentivos para os produtores adeptos de práticas agrícolas mais benéficas e respeitosas com a Terra. Em nosso prato, é fundamental seguir dietas – saudáveis e sustentáveis – que incluem mais vegetais, frutas e grãos integrais. A sazonalidade dos ingredientes é linda e precisa ser definitivamente resgatada. De preferência, deveríamos optar por comprar alimentos produzidos localmente, mesmo que possa ser uma missão difícil. E sim, precisamos consumir menos carne e alimentos processados para manter nossa saúde em dia e sonhar com um futuro melhor para o planeta. O esforço vale a pena. É nessa luta interminável que alguns chefs de cozinha e empresários da gastronomia no Brasil têm se engajado. Juntos, eles mostram que é possível servir pratos que impactam as pessoas além do sabor. Do planeta ao prato é um caminho sem volta.
Nos cardápios dos restaurantes contemporâneos é comum ler frases como “usamos somente ingredientes de pequenos produtores, orgânicos e sustentáveis”. Greenwashing ou realidade purista? Basta pesquisar um pouco e fazer algumas perguntas ao sentar à mesa para elucidar. Na sua Enoteca Saint Vin Saint em São Paulo, a empresária Lis Cereja responde a todas com maestria e consistência. Desde 2008, seu restaurante é intransigente com a naturalidade de sua gastronomia. Absolutamente todos os pratos são feitos à base de ingredientes orgânicos e artesanais. Uma receita que pode custar caro à primeira vista, mas que valoriza as tradições alimentares e o respeito pelo planeta. No final, a conta se sustenta. É bom lembrar que alimentar e restaurar as pessoas carrega uma responsabilidade imensa, e muitas vezes esquecidas pelos “top” chefs. Ao longo da última década, Lis visitou e validou centenas de pequenos produtores do estado de São Paulo. Estes abastecem sua casa diariamente. Ela divulga e compartilha com prazer seus achados para quem quiser ouvir. Cultivar propriamente parte de seus insumos foi igualmente uma consequência dessa filosofia. Hoje a empresária se orgulha com a colheita diária de seus temperos, pancs e verduras, ervas medicinais, flores comestíveis e boa parte dos legumes que vão direto para a cozinha. É frequente ver e ouvir em suas redes sociais as galinhas soltas que dão ovos e as cabras que dão leite fresco. Na cozinha e no empório anexo é possível comprar feijões orgânicos, familiares e crioulos, produzidos por agricultores que resgatam as sementes tradicionais, como a paquinha, a rosinha, o guandu, o rajado e o enxofre. O menu, em grande maioria vegetal, não poderia ser fixo. Não existe qualquer razão comercial que justifique os mesmos pratos o ano todo.
Ao contrário da imensa maioria dos restaurantes em todo o mundo, a sazonalidade e o ritmo da natureza ditam sua gastronomia, e nunca o contrário. Utópico? Talvez, mas possível e louvável. “Trabalho com sistemas circulares de produção e consumo, penso nos menus só depois de receber os insumos da horta e dos fornecedores orgânicos, respeito a sazonalidade e as tradições alimentares. Resgatar, lembrar, valorizar, simplificar, é nisso que acredito. Não desperdiçar, nunca. Aproveitar os ingredientes ao máximo, reaproveitar. Conhecer os produtores. Permitir que a natureza e os agricultores nos digam o que usar e cozinhar em cada estação. Vinhos, só naturais, orgânicos e biodinâmicos, pois vinho também é alimento. Para mim, o real valor da comida está nas pessoas que a produzem e nessa pequena escala, consciente, local e sustentável”, defende a empresária com convicção. Na cozinha de Lis Cereja tudo se faz do início. Os caldos e fundos são feitos ali, assim como as farinhas, os picles, as conservas láticas, as geleias, compotas, os vinagres, leites vegetais e frutas secas. O doce de leite se faz do leite cru, assim como o iogurte, a coalhada, o requeijão. Nessa mesma cozinha, o desperdício zero é mandatório. As cascas de legumes viram biomassa ou voltam para os pratos como decoração, os talos viram conservas lactofermentadas, as folhas viram extrato verde para caldos. Com tanta sabedoria, experimentos e iniciativas, a chef virou uma referência nacional em gastronomia sustentável. Ela dá o exemplo e compartilha seu saber sem pudor no seu incrível podcast e nas suas redes sociais. Esse engajamento e paixão também deram origem à feira Naturebas, evento incontornável que levanta a questão do vinho natural na América Latina e reúne centenas de pessoas adeptas da preser- vação do planeta. Todos são amantes do comer e beber bem.
Um caminho parecido é seguido pelo chef César Costa em seu restaurante Corrutela no bairro da Vila Madalena em São Paulo. O jovem prodígio já passou por diversas cozinhas pelo mundo e percebeu que a grama do vizinho não é mais verde. Ele defende uma comida com propósito, engajada e conectada com as questões planetárias gritantes. Da arquitetura aos ingredientes, ele busca gerar o menor impacto ambiental possível. Um caixote de metal de aspecto industrial é a primeira coisa que se vê ao subir os degraus do seu sobrado cinza encaixado entre as casas íngremes da Medeiros de Albuquerque, uma das poucas ruas pacatas da Vila Madalena, bairro paulistano de tradição boêmia. Vinda da Coreia do Sul, trata-se de uma composteira capaz de transformar 30 kg de cascas, aparas e até restos de carne em 3,5 kg de composto no mesmo dia. Elemento visível, a composteira é apenas uma entre várias outras iniciativas que fazem do Corrutela um restaurante engajado para responder aos desafios contemporâneos da gastronomia. Lixo zero, plástico ao mínimo, redução da pegada de carbono, energia limpa, comércio justo e uso de alimentos livres de agrotóxicos são alguns princípios que César Costa segue à risca.
Desde o início, seu restaurante recebeu a consultoria da Sustainable Restaurants Association, uma ONG inglesa que assessora, certifica e ranqueia restaurantes sustentáveis. O chef, de 27 anos, confia no potencial de ingredientes orgânicos, no pico de seu frescor, para oferecer uma comida simples, calcada no sabor original dos alimentos. Pratos com poucos elementos dão à sua comida um toque informal. A complexidade está em botar de pé um restaurante sustentável no Brasil, o que levou dois anos de construção e um trabalho de pesquisa continuada. “Na Dinamarca, eu vi a expansão das casas do Christian Puglisi e entendi a ideia de se montar um restaurante a partir da criação de uma rede de fornecedores. É uma lógica fundamental se você pretende abrir um restaurante de produto”, diz o chef.
Com apenas dez pratos no cardápio, o Corrutela conquista com seu hommus de beterraba amarela, manga salgada e quinoa, sua berinjela assada servida com coalhada de keffir, maçã e rabanete, sua ostra com uva branca fermentada e seu prato de prejereba, mandioquinha e berbigão. Todo investimento no trabalho dedicado à formação da rede de pequenos produtores orgânicos e no tempo que leva para fazer ingredientes do zero, se justifica também do ponto de vista econômico, explica César. “Pago no trigo que moo para fazer o pão um valor bem melhor do que o da farinha do mesmo trigo já pronta. O mesmo se pode dizer do chocolate e da polenta”, defende o chef.
Na área de apoio do restaurante, uma máquina israelense tira toda a sujeira pesada de panelas, partes internas do fogão e bandejas com um produto biodegradável que dispensa o esforço manual, economizando milhares de litros d’água. A água é filtrada na casa pelo sistema Tecnoline que elimina a compra de garrafinhas plásticas de uso único, um dos maiores desafios ambientais da atualidade. O que, afinal, vai para o lixo? Só o papel higiênico dos banheiros. Quem sabe em breve veremos também toaletes japoneses sem papel... Considerado um dos melhores restaurantes da América Latina, o Corrutela, ocupa o 95o na renomada lista Latin 50 Best Restaurants, além de ter ganhado o prêmio Flor de Caña Sustainable Restaurant Award for Latin America’s 50 Best Restaurants 2021: Pasado y Futuro.
Com os pés na areia e as mãos na terra, o belga Hervé Witmeur incorpora sabores e preparos que se transformam em rica matéria-prima para suas criações. Apaixonado pela natural cuisine, o chef carrega em sua assinatura a criatividade na combinação das técnicas tradicionais com os insumos locais, a simplicidade, e o uso de orgânicos. “Na Bélgica, a gente usa muito a comida francesa, então eu cheguei ao Brasil com as técnicas da gastronomia francesa e comecei a brincar com os produtos locais. Tento usar ao máximo os produtos da região e fazer uma gastronomia internacional”, explica o chef. Entusiasta do aproveitamento integral dos alimentos, Hervé é comprometido com o desenvolvimento de uma cozinha que combina agricultura orgânica e produtos de alta qualidade. O chef veio ao Brasil pela primeira vez em 2011 com sua esposa para velejar e encantou-se com o litoral do Piauí.
Apaixonados, resolveram ficar e abriram as casas La Cozinha, em Barra Grande, e Éllo Restaurante, em Jericoacoara. Minha experiência no seu restaurante é, no mínimo, surpreendente. É tão raro encontrar restaurantes preocupados com a natureza nos paraísos naturais brasileiros... Mais um paradoxo para a conta! Inspirado na culinária brasileira e francesa, os peixes e frutos do mar frescos direto dos pescadores são naturalmente produtos de primeira qualidade. A cozinha aberta permite que todos assistam ao balé incessante dos cozinheiros rodeados pela dedicação e experiência da equipe. Dá pra sentir o cheiro forte da paixão, do amor e da genuinidade. Além de um menu excepcional, dá também para perceber a veracidade da história que tem por trás. “Eu gosto muito de usar na cozinha produtos que planto a semente, colho... Mexer com o produto que você acompanha na terra, trabalhar o produto que a gente plantou... é uma sensação incrível”, comenta o chef.
O sonho de produzir seus próprios insumos cresceu e, junto com o amigo David Saey, Hervé e Marie expandiram a produção em uma área de 14 hectares de terra nos Tabuleiros Litorâneos, em Parnaíba. Com práticas que integram agroecologia e permacultura, a fazenda de orgânicos La Reserva cultiva frutas, vegetais, verduras e superalimentos sem pesticidas, que servem para abastecer o Éllo e o La Cozinha, como também suprir os restaurantes da região. O excedente da produção é comercializado no vilarejo, difundindo a importância do consumo de alimentos sem agrotóxicos em uma região pobre de abastecimento de produtos agrícolas de qualidade.
Alimentar-se bem é preciso, e cuidar do nosso planeta é uma emergência global que pode começar com gestos simples e escolhas do que colocamos em nosso prato. Na hora de decidir frequentar um restaurante, é interessante pensar nisso. Em resumo, a relação entre o alimento e o planeta é fundamental para nosso futuro, e precisamos adotar medidas para tornar a produção e o consumo de alimentos mais sustentáveis e eficientes, o quanto antes. É possível.