Ducasse: tudo sobre a lenda viva
Da alta-costura ao prêt-à-porter da gastronomia, o francês Alain Ducasse tem uma trajetória sem precedentes
Numa manhã de maio de 2011, toca meu telefone. É a assessoria do chef francês Alain Ducasse que está prestes a inaugurar uma escola em São Paulo. Eles estão buscando um tradutor particular para acompanhar o chef durante toda sua viagem no Brasil. Sem pensar um segundo ou perguntar quaisquer detalhes, eu aceito a proposta. Começo a sentir um frio na barriga. Como é traduzir ao vivo as palavras do chef mais estrelado do mundo? Duas semanas depois, Alain Ducasse chega a São Paulo. Vou buscá-lo no aeroporto junto com o motorista.
Em poucos instantes, começo a entender o personagem. Apaixonado, rápido, obcecado, curioso, seguríssimo de si mesmo, odeia perder tempo e ama fazer perguntas sucintas, sempre sucintas. Andamos bastante pela cidade. Eu me lembro da visita na feira da Rua Barão de Capanema junto com o chef Alex Atala seguida de um almoço bem-humorado no seu premiado DOM. Monsieur Ducasse pergunta, olha, sente, cheira, interage pouco, ouve muito, prova tudo. No meio da tarde de uma agenda apertadíssima, uma verdadeira agenda de ministro – seu telefone toca. É o designer e arquiteto francês Philippe Starck que acaba de chegar para visitar a obra do Cidade Matarazzo. Sem hesitar, Ducasse informa: “Mudamos os planos, quero ver meu amigo”.
Caminhamos juntos nos intermináveis corredores da maternidade em ruínas. Há imensas plantas de papel rabiscadas penduradas nas paredes, Ducasse observa com curiosidade o projeto cujas obras estão prestes a começar. Depois de uma tarde agitada e plena de reviravoltas, chegamos finalmente ao evento de inauguração da escola. Logo o chef pede para visitar as cozinhas onde está sendo preparado o coquetel. Ele olha e mete a mão para provar tudo. “Está frio, assim não dá!”, disse incomodado. Com um leve sorriso no rosto, seguimos para a festa. Ele é parado a cada segundo para uma foto, um autógrafo ou uma pergunta. Mais tarde, temos um jantar no extinto restaurante Kaa com outros chefs e pessoas influentes da cena gastronômica paulistana. Eu já estou exausto, mas parece que o chef acaba de começar o dia. Incansável, ele responde a todas as demandas com entusiasmo.
Cinco anos depois, eu embarco para Paris ao lado de Patrícia Filardi, grande amiga e diretora do Buffet Fasano. A convite do próprio Ducasse, vamos estagiar e conhecer os bastidores das suas “maisons” parisienses. Carta branca na mão, podemos observar como funciona uma das grifes de gastronomia mais prestigiadas e consistentes do mundo. Vivenciamos a excelência de perto, conversamos com dezenas de colaboradores, e, humildemente escondidos, admiramos todo esse balé acontecendo. Tudo já foi dito ou escrito sobre Alain Ducasse. Dos admiradores mais profundos aos críticos céticos, o chef provoca sempre sensação ou repulsa. Assim são os grandes talentos, os grandes artistas, os grandes empresários. O que dizer sobre um chef de cozinha que transforma sua paixão em trabalho, seu saber em transmissão, suas ideias em projetos, seus cardápios em estrelas, seus sonhos em realidades? O que escrever sobre um homem que emprega mais de 2 mil pessoas, possui 100 livros editados, coordena 34 manufaturas de chocolate, dirige três escolas de cozinha, comanda 34 restaurantes em nove países diferentes e brilha com 20 estrelas no guia Michelin? Me atrevo a esse exercício.
À l’origine, le goût
Em sua biografia recém-publicada na França Uma vida de gostos e paixões, Alain Ducasse conta suas memórias olfativas, de onde surgem as primeiras vontades de cozinhar. Nascido em 1956 numa fazenda do sul da França, durante sua infância ele mergulha em sabores e ingredientes simples da terra. Quando criança Ducasse quer ser cozinheiro, arquiteto ou viajante. O adulto consegue fazer os três ao mesmo tempo. Ducasse se define como um diretor artístico, um criador. Um verdadeiro Christian Dior da comida. Ele desenha, pensa, escolhe, decide e assume todas as suas decisões, todas as suas coleções. Da alta-costura ao prê-t-à-porter, ele atrai estrelas, investidores, parceiros e pessoas que compram e executam suas ideias. Ele desfila com perfeccionismo, quebra paradigmas e não se deixa intimidar. Ao contrário, ele chega antes onde ninguém o espera. Curioso, viaja em busca de saberes e sabores transformadores, de encontros e histórias a serem contadas. Alain Ducasse é uma pessoa muito convicta das suas raízes e extremamente aberta para o resto do mundo. Um chef “glocal”, talvez o primeiro da galáxia. Cada criação Ducassienne circula entre tradição e modernidade, na França e no mundo. Se existe um ponto comum entre todos os pratos do chef, é o ingrediente. Ele sabe da importância dos produtores locais que lhe dão a chave para exaltar o sabor autêntico de cada produto. A cozinha de Alain Ducasse é forte, consciente e humanista. Para além e por trás do prato, Ducasse enxerga longe, muito longe. Ele vislumbra uma culinária francesa em constante evolução, viva, múltipla, criativa e contemporânea. Ducasse está convencido de que a cozinha da França, um dos países mais visitados do mundo, é sua atração principal.
Mônaco
Finalmente eu sigo para Mônaco. Destino: o Louis XV. O restaurante do Hotel de Paris é uma verdadeira instituição mundial da alta gastronomia. Quando comento para alguns colegas e amigos que vou remediar essa falha do meu currículo de experiências profissionais, os olhos de todos brilham. Vários chefs do mundo têm uma passagem pela cozinha do Louis XV, como, por exemplo, a brasileira Elisa Fernandes. É onde toda a história de Alain Ducasse como chef estrelado começa. Em 1987, ele assume o comando da casa com uma missão claríssima: conquistar as três estrelas. Missão cumprida em 1990, quando a consagração máxima projeta o chef numa trajetória sem precedentes. Desde então, Alain Ducasse faz de Mônaco sua casa afetiva e se torna cidadão monegasco em 2008. Nesse pequeno principado da Côte D’Azur, na fronteira da Itália com a França, ele cozinha para o casamento do príncipe Albert de Mônaco, recebe hóspedes ilustres de todas as nacionalidades, extrapola experimentos e transforma o restaurante na sua principal vitrine criativa. Minha experiência no Louis XV é uma das mais impressionantes e impactantes da minha jornada gastronômica. Ao passar a suntuosa entrada do restaurante, sente-se a pureza da excelência, o resultado do rigor, os frutos de décadas de trabalho. Tudo é pensado além dos mínimos detalhes e pode até intimidar, como na entrada de um museu deslumbrante. Estou com calor, emocionado, tento tirar meu paletó. Em poucos segundos, um maître d’hotel se aproxima, “aqui o traje é a rigor”. Questiono essa regra para a amiga que me acompanha, logo ela me lembra onde estamos. Aqui, nessa mesa, Alain Ducasse e seus chefs sucessivos experimentam, provocam e maravilham. Juntos fazem honra e reverência ao métier de chef, cozinheiro, patissier, maître, sommelier... Como estar sentado assistindo a um show, o espetáculo vai da cozinha ao serviço num balé de sabores, desenhos, texturas, cheiros e movimentos inesquecíveis. O novo cardápio do Louis XV é uma expressão do movimento e filosofia “Naturalité”, o mesmo que norteia a cozinha dos discípulos Ducasse e valoriza o uso de vegetais e ingredientes locais, sazonais e sustentáveis. É também uma leitura moderna do terroir da região Mediterrânea. Com legumes provençais, peixes e frutos do mar regionais, tomates, abobrinhas, ervas aromáticas, damasco, figos, entre dezenas de outras jóias, o chef delegado Emmanuel Pilon orquestra uma equipe apaixonada por servir, engajada com os princípios do chef, devota para fazer jus ao nome e continuar, sempre, no topo. Na boca, cada garfada é diferente, cada mordida surpreende e traz um lote de sensações e emoções. A mestre de cerimônia Claire Sonnet, diretora da sala, conduz esse menu degustação, que prefiro chamar de experiência Alain Ducasse, que culmina na saída com uma folha impressa personalizada que lista todas as iguarias e vinhos da noite. É difícil esquecer, é tão bom lembrar. Como uma criança feliz, sigo para o cassino do hotel para sentir se a sorte está do meu lado. Ela está, posso voltar para descobrir as próximas invenções de Alain Ducasse.
Paris
Início de 2023, faz um frio danado em Paris. Eu passo na frente da manufatura de chocolate do bairro da Bastille, que celebra 10 anos de existência. Sinto um forte cheiro de chocolate, paro, penso. Tenho uma louca vontade de entrar novamente nesse universo apaixonante em volta do cacau, mas meu compromisso é outro. Vou provar as criações da chef patissière Flora Davies, nomeada por Ducasse para tocar sua mais nova aventura: uma pequena fábrica artesanal de biscoitos. Numa loja charmosa e vestida de elementos decorativos históricos, a chef e sua equipe cozinham biscoitos à base de farinhas de grãos esquecidos, manteiga da região da Normandia e pouco açúcar, pouquíssimo açúcar. O resultado são receitas que, mais uma vez, quebram os paradigmas do paladar. Os biscoitos da manufatura Ducasse abrem um novo caminho para sabores que desmancham na boca. Mas a história de Ducasse com a Cidade Luz não é de hoje. Ele chega a Paris em 1996 para assumir o restaurante de Joël Robuchon. No seu livro, ele conta alguns comentários desencorajantes que recebe da mídia. Em oito meses, conquista três estrelas novamente e assume sua saída física das cozinhas. Ducasse deseja focar na sua expansão multiplicadora. Ele se torna o primeiro chef do mundo a acumular estrelas sem estar na cozinha, e assim reinventa seu próprio métier de chef. Durante 20 anos ele supervisiona as cozinhas do palácio Plaza Athénée, sobe os andares da Torre Eiffel, expande e exporta seus conceitos culinários ao redor do globo. Ao mesmo tempo, ele compra e renova os velhos bistrôs clássicos parisienses Allard, Benoit e Aux Lyonnais. Esses três endereços são inevitáveis para provar uma cozinha francesa tradicional. Sempre inquieto, Ducasse imagina um cruzeiro num barco elétrico pelo rio Sena e inaugura Ducasse Sur Seine. No aeroporto de Paris, Charles de Gaulle, ele assina um contrato com a Air France para cuidar dos menus das salas vips. Como se não bastasse, o chef assume o comando de restaurantes de vários museus parisienses – meu favorito é Les Ombres, situado no Museu Jacques Chirac. Como um grande imperador da gastronomia francesa, ele conquista as chaves do Château de Versailles onde realiza grandes eventos e recebe casualmente no seu restaurante Ore. A alguns metros do castelo, ainda assina a gastronomia do primeiro hotel situado dentro do parque Trianon. Ali ele imagina cerimônias que lembram uma época de reis e rainhas. O rei mesmo, é ele. Ducasse Paris vira um grupo empresarial à altura dos sonhos do chef. Ele faz, arrisca, ganha, perde, desfaz, refaz com uma equipe sempre fiel e atenta a ele. Paris se torna sua porta de entrada e saída para o mundo. Bistrôs, brasseries, restaurantes, alta cozinha, manufaturas, museus, aeroportos, consultorias, burger vegano, Alain Ducasse sabe circular entre tempos e movimentos, tendências e desejos, inovações e oportunidades.
Faire-savoir
Quando Alain Ducasse sofre um acidente de avião em 1987, ele perde a visão e todos os movimentos do corpo. Durante um ano fica hospitalizado, sem saber da cura. Incapacitado de cozinhar ao vivo e em cores, ele começa a cozinhar na sua cabeça. Da própria cama do hospital, escreve detalhadamente e escrupulosamente suas receitas. Assim, transmite seu savoir-faire e consegue expressar sua arte por meio das mãos de outros artistas. É nesse momento que aprende a delegar e enxerga seu verdadeiro papel: faire-savoir. Nos anos 2000, Alain Ducasse sentiu a vontade de publicar um livro. Não qualquer livro, um grande livro da sua cozinha. Ele procura editores, as portas se fecham. Muito grande, muito custoso, muito pesado. Ele decide então fundar sua própria editora, trocando a escolha dos legumes pela escolha do papel. O livro é um grande sucesso, reeditado algumas vezes. Ducasse Édition apresenta hoje mais de 100 livros de diversas autorias. A aventura da transmissão do savoir-faire se concretiza quando ele decide comprar a escola nacional da pâtisserie e criar a École Ducasse. A escola cresce exponencialmente com a abertura do campus de Meudon na região de Paris. Aqui Ducasse deixa um legado precioso para milhares de alunos de todo o mundo. Alain transforma cozinheiros em "Ducassiens" e garante a perenidade, talvez a eternidade, de sua cozinha.
Merci, chef!
No fim do ano 2022, estou exausto a caminho da minha casa no sul da França. Subindo as escadas da sala da Air France no aero porto de Paris Orly, escuto uma voz. Levanto a cabeça e está ele, o próprio, descendo as escadas com pressa e uma mala na mão. Nossos caminhos se cruzam novamente, do nada. Ele se lembra de mim, trocamos uma palavra. Tenho milhares de perguntas na cabeça. Seguimos para nossos respectivos destinos. Assim é Alain Ducasse, sempre atento e em movimento.
Meus endereços preferidos
- Allard;
- Champeaux;
- Spoon;
- Le Salon des Manufactures;
- Ducasse Sur Seine;
- Les Ombres;
- Louis XV, Mônaco;
- Ore, Château de Versailles;
- La Bastide de Moustiers, Provence.