Gastronomia

Il Milione, a travessia do restaurante Lasarte em Barcelona

Quando um restaurante com três estrelas Michelin resolve ultrapassar seus próprios limites, o resultado é pura poesia sensorial.

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Paolo Casagrande e Joan Carles Ibáñez | Divulgação

Houve um tempo em que o mundo ainda estava por ser descoberto. Uma era dourada dos espíritos inconformistas, movidos pelo desejo de enxergar além das bordas dos mapas, desbravadores que cruzavam oceanos e desertos em busca de cores, aromas e sabores que nunca haviam sido experimentados. Um deles, Marco Polo, narrou seus feitos em Il Milione, o livro das maravilhas. Séculos depois, fui eu quem embarcou nessa viagem. E embora não tenha atravessado a rota da seda, bastou uma escada estreita dentro do restaurante Lasarte, em Barcelona, para mergulhar numa experiência que me tirou completamente do lugar comum. Confesso: cheguei com o pé atrás. Tenho uma certa apreensão com experiências imersivas. Muitas vezes, elas se apoiam mais na cenografia do que na substância. Mas logo percebi que ali era diferente. Tudo, da arquitetura à iluminação, do silêncio ao primeiro gesto de serviço, me conquistou aos poucos, com precisão e delicadeza, sem pressa, como quem sabe exatamente aonde quer levar você. Il Milione é uma obra sensorial onde cada detalhe está ali para nos lembrar que o prazer, quando elevado ao extremo, pode ser uma forma de transcendência.

Acuarelas | Divulgação

Essa obra-prima tem assinaturas de peso. Martín Berasategui dispensa apresentações. Com 12 estrelas Michelin no currículo, é uma das figuras mais reverenciadas da gastronomia mundial. Paolo Casagrande, seu braço-direito no Lasarte, é pura elegância e rigor, um veneziano que carrega em si o mesmo espírito explorador de Marco Polo. E Xavi Donnay, o mago dos doces, traz uma doçura precisa e nada óbvia à jornada.

A proposta de Il Milione nasce de um lugar de inquietude e não conformismo, exatamente como nasceu o próprio Lasarte, em 2006. Primeiro restaurante em Barcelona a conquistar três estrelas Michelin, o Lasarte sempre teve uma essência voltada à excelência com leveza, sem teatralidade vazia. Ali, a técnica nunca sufoca a emoção. Il Milione é o novo passo dessa caminhada, mais íntimo, mais ousado, mais sensorial.

Xavi Donnay | Divulgação

Essa experiência não é aberta ao público geral, é reservada apenas para oito pessoas por noite. O Il Milione acontece na antiga mesa do chef, agora transformada em um espaço imersivo acima do salão do Lasarte. De cima, vemos a brigada de cozinha a quatro metros abaixo, em silêncio absoluto, como um balé técnico onde tudo é medido, pesado e sincronizado. O ambiente é de uma elegância quase cinematográfica, escuro, moody, envolvente, com uma mesa que parece flutuar, envolta por luzes âmbar, aromas difusos e uma trilha sonora feita sob medida.

A marea alta | Divulgação

Depois do silêncio ritualístico da chegada, da primeira taça de Champagne Krug, dos olhos percorrendo a sala íntima como quem tenta absorver cada detalhe do cenário, chega o momento em que tudo muda. É o instante em que o menu se revela. A travessia sensorial do Il Milione se inicia com uma série de pequenos mundos em forma de prato. "Bound by the Seas" abre o caminho: uma sucessão de aperitivos que evocam terras e mares distantes. Em seguida, "Pearls of the Sea" nos apresenta ostras em texturas surpreendentes, inspiradas nas rotas comerciais do Oriente. Mas é em "Silk Delight" que acontece o momento de pura genialidade: um croissant, ainda morno e crocante, servido com manteiga dourada e caviar ossetra. A combinação, improvável à primeira vista, é sutil, elegante e absolutamente inesquecível, um ápice de criatividade. O menu segue com "Origins", a reinvenção do mil-folhas de foie gras e enguia defumada, depois, "Rising Tide" une mar, floresta e montanha num prato aromático e profundo. "Fishing Light", inspirado na pesca noturna galega, traz polvo e lula com perfeição técnica. "The Marvels" surpreende com um suco frio de aspargos brancos, morango e camarões, montado como um jardim comestível. "A Millenary Story" presta homenagem ao arroz ancestral da China e Índia em um risoto de terra e mar. Em "Deep Essence", o peixe virrey vem grelhado com vinagrete, raízes trufadas, redução de caranguejo e cereja amarena — um prato de memória e elegância.

O genial Croissant com caviar | Divulgação

A carne surge em "Seduction", um veado marinado em koji com laranja e mirtilo translúcido, seguido por "Hoshigaki", um doce em forma de caqui seco, que serve de ponte para a sobremesa. "Nectar", com miso, amêndoa e yuzu, é leve e cítrico, e "Ode to Cocoa", um tributo 100% ao cacau, encerra com intensidade tropical. Por fim, os "Délices Sucrés", petits-fours perfeitos como um ponto final bem escrito.

Um ode ao cacau | Divulgação

Mais do que impecável, o serviço é emocional. Joan Carles Ibáñez, uma lenda da sala espanhola, guia a experiência como um maestro. Ele conhece os vinhos, mas também se lembra de belas histórias em torno da experiência. E enquanto o menu se desenrola, tudo muda, das louças à luz ambiente, acompanhando o ritmo do jantar como se fosse uma partitura. Nada é aleatório. As taças são feitas à mão pela Zwiesel Glas e são tão leves que literalmente “desaparecem” da mão. A porcelana vem de pequenos ateliês europeus e até os talheres, como uma espátula de manteiga exclusiva, são resultado de colaborações com designers. As aquarelas pintadas por Daniel Zlota com pigmentos naturais (como café, soja e arroz) ilustram os destinos que inspiraram os chefs. Il Milione é a viagem que eles escolheram fazer juntos, e nos convidam a embarcar. Mesmo quem começa com o pé atrás, como eu, termina com o coração totalmente entregue.

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