Trinca: bar traz o vermute à tona num cenário pós-quarentena
Na contramão da grande indústria, o vermute feito aos poucos tem tudo para ganhar o status de novo ícone dos bares
A vida pós-quarentena vem causando uma confusão no mundo dos habitués dos bares: ninguém sabe dizer qual é o drinque do momento. Enquanto o gim segue onipresente, alimentado tanto pelas grandes marcas quanto pelos pequenos e médios produtores locais, copos vermelhos de Campari pipocam por aí ao lado de fórmulas eternas como o Negroni, combinações como o Aperol Spritz ainda carrega seu rescaldo de outras épocas e os coquetéis enlatados tomam as prateleiras.
Correndo por fora, um personagem das antigas está se tornando o preferido entre os que gostam de beber: o vermute. Tipicamente uma receita de vinho fortificado com ervas, suas origens remontam à Grécia e Roma antiga, às dinastias chinesas, aos costumes mediterrâneos e até às típicas garrafadas espalhadas pela cultura brasileira. Já teve usos medicinais, foi tratado como digestivo e é ingrediente essencial de vários coquetéis clássicos — do Dry Martini ao nosso Rabo de Galo.
Hoje, se tornou querido de uma turma que gosta de colocar a mão na massa e produzir a fórmula artesanalmente. Quem está prestando atenção já sabe que garrafas de vermutes handmade vêm circulando nos últimos anos. Mais recentemente, casas especializadas têm surgido para ratificar a onda — que já é bem sólida nas cenas da Espanha e Argentina, dos botecos aos bares modernosos.
“Diferentemente de outras bebidas, como o gim, o vermute é algo relativamente fácil de se fazer em casa e as pessoas desses países já tinham esse costume, usando a receita clássica da família. Esse boom talvez venha por esse momento da gastronomia, da coquetelaria, de se olhar para o próprio lugar e produzir nele”, analisa Alexandre Bussab, que abriu, ao lado de Tábata Magarão, a vermuteria Trinca, em São Paulo — a mais recente empreitada dedicada à bebida.
Ela, uma bartender de carreira do Rio de Janeiro; ele, de São Paulo, trocou o mundo da televisão para mergulhar no balcão. Os dois, que se encontraram por acaso em Salvador, viram-se alquimistas de apartamento durante a pandemia. Recém-chegados de um réveillon em Buenos Aires, quando esmiuçaram a cultura vermuteira da cidade e voltaram com dezenas de garrafas nas malas, se desafiaram com vontade (e tempo de sobra) a produzir os seus próprios vermutes. “A primeira tentativa foi literalmente com todos os ingredientes que tínhamos em casa. Deu muita coisa errada até conseguirmos”, relembra ele.
O resultado, depois de pelo menos 30 testes para cada um, são três variações que dão nome ao bar e, de certa forma, traçam a história da bebida. “O rosé oriental veio por conta da nossa descoberta de que o vermute já estava pela China há 7 mil anos. O italiano branco, pela tradição forte dessa região em beber, assim como produzir os rótulos clássicos que todo mundo conhece”, conta Tábata. “E o sul-americano, para conectar tudo isso. Afinal, se estamos todos na América Latina, nada mais natural do que pegar essa cultura e traduzir na nossa linguagem.” Feitos com base de Chardonnay e Malbec, as infusões levam ingredientes como raiz de angélica, cumaru, feno grego e pimenta preta — além da losna, ou artemísia, regulamentar em qualquer vermute.
“Queremos valorizar esse momento. Quando começamos, ficamos com essa dúvida: como vamos vender vermute para um público que não tem a cultura de bebê-lo puro?”, diz ela, que sempre entrega um shot degustação dos três para qualquer cliente, antes ainda do cardápio da casa — e os oferece à moda, misturados a água com gás ou tônica, e em coquetéis autorais.
“Tentamos desmistificar, quebrar a barreira das pessoas que chegam dizendo que não entendem do assunto. Tudo pode ser muito simples: ou você gosta ou não gosta. As nuances do vermute podem ser mais fáceis para as pessoas perceberem, é democrático — ao contrário da cultura do vinho, por exemplo, que tem fama de supercomplexa.” E finaliza, feliz com a clientela que tem formado: “Quem entra em uma vermuteria, naturalmente, já é alguém que está disposto a tentar algo novo. No pós-pandemia, as pessoas estão com sede de viver, de experimentar”.