Reflexões: Por onde andei enquanto eu me procurava?
“Existe uma rachadura em tudo, e é assim que a luz entra” reflexões de "Anthem" - Leonard Cohen.
Há um certo romantismo implícito em perder-se. “Perder-se também é caminho” disse Clarice; “perco-me e acho tudo legal” diz alguém na internet que também poderia ser replicado como “Lispector, Clarice".
Com certeza ambos (Clarice Lispector AND Clarice FakeNews) escreveram isso após uma longa travessia no deserto ou em um pequeno oásis após terem se perdido até do camelo e, com isso, toda a dignidade junto. Ali, naquele instante em que o gole d'água toca a garganta seca, acharam o máximo e compensatório terem se perdido. Provavelmente na mesma época não haviam tantos caminhos e tantas interferências cruzando seu córtex pré frontal.
Perder-se é como uma onda em Nazaré, um furacão Katrina. Perder-se é também, em alguns casos, ausentar-se da autonomia. Mas para as ondas em Nazaré requer-se o mínimo de técnica, o mínimo de conhecimento empírico. E para um furacão é necessário um bom sótão montado. Perder-se é preferível quando temos um manual de sobrevivência mas com tantas variáveis assim, perder-se jamais será como montar um móvel.
Em uma vida tecnológica perder-se pode ser "viver na lupa algorítmica" (em looping) e chancelar suas escolhas pessoais através de uma terceirização imagética que propõe o tempo inteiro um “caminho” de encontro consigo mesmo. Nessas circunstâncias nada é suficiente. O abismo em que nos encontramos, nesse conto perdido dos números, refaz nosso instinto de sobrevivência para o engajamento. Nos perdemos, meu caro, isso é indubitável. Qual será o caminho de volta? Em que via deixamos de ser aquilo que nos fortalecia? Em que momentos deixamos de lado o pacto com o inefável?
Descobri essa palavra no ano passado e não sei como vivi trinta anos sem conhecê-la. Para fazer um paralelo com a vida algorítmica diria que o inefável é equivalente a sensação dopaminérgica que as redes sociais nos trazem, com uma diferencia sutil mas determinante de que o inefável nos coloca em estado de graça, quando a dopamina nos põe de frente com a abstinência. Somos NEO-Junkies, covardes o suficiente para fingir que tudo vai bem.
O inefável talvez seja similar ao fechar dos olhos, ao não precisar de mais nada, o inefável deve se assimilar ao júbilo (outra palavra que eu amo) em grandeza. Nos distanciamos da grandeza das coisas, das palavras, do afeto, em busca de resultados frágeis, fáceis e ilusórios. O desvio está feito e parece que o caminho antigo está em obras e sem previsão de retomada. Aquele, o desvio, com certeza foi feito com superfaturamento e está sendo orquestrado por pessoas que perderam sua humanidade.
No início do ano passei vinte e um dias fora das redes, quando voltei não acreditava mais em mim e em nenhum dos zumbis “avatarizados” que via. Perdi memes, notícias mas ganhei principalmente no compromisso com a verdade, a minha, aquela inefável, insubstituível. Passado o tempo entendi que a mentira move o mundo, que sempre foi assim. A mentira, essa contrária à ficção, não tem compromisso em gerar um caminho em direção a nós mesmos - Foi ela quem simplesmente operou o desvio. E nós, poeira das estrelas em ritmo de manada, vivemos mesmo como o pó, sobrevoando ao relento do que fomos.
Esse texto parece ser pessimista frente à vida perfeita que todos ostentamos em nossas “auto-edições”; ter domínio da narrativa, alguns dizem. O que temos que provar? Por que? E pra quem Na verdade, as vezes só gostaria de poder ser triste - E eu sei que você também. A real tristeza é o trampolim da superação. E nessa dicotomia entre quem esconde melhor versus a disputa maluca por quem sofre mais, não aguentamos mais ver vítimas - e elas estão por toda a parte, principalmente dentro de nós.
Depois de atravessar o deserto e, no oásis, tomar minha água em um copo de plástico branco de 200ml como nas festas de criança, tirarei todos os obstáculos da frente do caminho e, em retomada, voltarei ao lugar de onde sempre habitei, antes dos escombros que não eram meus terem soterrado tudo aquilo que de melhor tínhamos pra dar. Ainda temos para onde ir, que a festa dos cansados loucos pra sentar sentar e sentar não nos feche para os raios de sol do céu da cidade.
Há espaço para reconstruir e há mão de obra viva e lúcida para tecer novas narrativas - essas, cruas. Precisamos da crueza da coisa para além de matérias sensacionalistas e caça-likes. A crueza é, principalmente, a propriedade do que é natural (pode colocar no google). A cada dia em que orgânico perde mais e mais espaço, uma fada morre na quinta dimensão - mas isso é papo pra outro dia.
Por hora, ouçamos Leonard Cohen em seu "Anthem" e Matilde Campilho com seu “Fevereiro".
"Os pássaros cantam no romper do dia
comece de novo
Eu ouço eles dizendo
Não se apoie naquilo que passou
Ou naquilo que está para vir”