Tiago Barbosa será Milton Nascimento em Clube da Esquina
Depois de seis anos na Espanha, o ator Tiago Barbosa encerrou sua temporada na Europa e retornou ao Brasil para interpretar Milton Nascimento no musical “Clube da Esquina”
Carioca, Tiago Barbosa é um artista multifacetado, que se revelou no programa “Ídolos” em 2012 e já brilhou em diversos musicais da Broadway. Após interpretar o príncipe de Cinderella - sendo o primeiro ator negro do mundo no papel - Tiago se tornou rei, como Simba na peça “O Rei Leão”. O sucesso foi tanto que o ator ganhou o Prêmio Bibi Ferreira e logo partiu rumo à Espanha para participar da montagem “El Rey León” e reassumir a coroa no papel principal da peça. Depois de seis anos, Tiago preparou sua volta ao Brasil em apenas 24h. O motivo? Viver Milton Nascimento na nova peça “Clube da Esquina - Os Sonhos Não Envelhecem”.
Em entrevista exclusiva à L’Officiel, nós descobrimos mais da trajetória de Tiago Barbosa e ele comenta sobre desigualdade no Brasil e representatividade LGBTQIAP+.
L’OFFICIEL: Conte um pouco para os nossos leitores, como é a rotina de um ator de musical? Como é a preparação para as sessões?
TIAGO: A rotina de um ator de musical é sempre intensa, requer muito estudo da obra, do personagem, além de muita disciplina e dedicação, já que normalmente envolve as três habilidades do artista, canto, dança e interpretação. Para o ‘Clube da Esquina’, em específico, minha preparação está sendo em conjunto com alguns profissionais, primeiro porque estou vindo de um espetáculo que não tem nada a ver com o Milton, que é o ‘Kinky Boots’, onde eu era uma drag queen, e que também me exigiu uma preparação completamente diferente de tudo que eu já fiz na minha vida. No ‘Clube da Esquina’, por ser biográfico, estou tentando ao máximo respeitar o Milton. Eu comecei um processo para poder baixar de peso com o doutor Tigre, especialista também na alimentação, com toda a sua equipe, para eu poder estar com o corpo o mais longilíneo possível, já que eu tenho muita massa muscular; estou fazendo também todo um acompanhamento com a Pâmela Barros, que é uma fonoaudióloga, porque estamos falando de um outro registro vocal, outra intenção vocal, e eu nunca tinha cantado por esse registro, que é mais metálico, de cobertura, como é o do Milton Nascimento, então estou tendo todo esse acompanhamento para poder fazer da melhor maneira possível, sem prejudicar a voz, claro.
Estou estudando muito e lendo muito sobre Milton, buscando todos os vídeos possíveis e imaginários sobre ele no YouTube, ou seja, me alimentando o máximo possível para que possa ser uma linda homenagem a esta figura icônica brasileira.
L’OFFICIEL: Quais foram as influências artísticas que você teve durante a infância para fazer acender essa luz dentro de você?
TIAGO: Eu acho que a minha maior referência sempre foi o meu pai. Ele era músico, tocava violão, tinha uma belíssima voz e meu pai nunca desistiu da vida dele como músico; ele sempre cantava em casa e isso era muito bonito porque me estimulava a querer cantar também, a querer seguir aquele caminho que eu achava tão poético e tão bonito. Meu pai foi e sempre será minha grande inspiração, e claro, ao redor disso, meu pai escutava muito Ray Charles, Alcione, Milton e Sandra de Sá. Então, eu sempre fui cercado de bons músicos, de acordo com aquilo que meu pai escutava em casa, na verdade, eu sempre fui cercado de um bom gosto musical, apuradíssimo, que era do meu pai, e isso certamente me ajudou na construção, até mesmo nas minhas escolhas musicais.
L’OFFICIEL: O Rei Leão e muitos outros clássicos que você participou, fazem parte do imaginário do público e são capazes de reviver sentimentos da infância. Como é estar no palco, dando vida a essas histórias?
TIAGO: A princípio é uma grande responsabilidade, você tem que saber psicologicamente como trabalhar para si a responsabilidade, pois você acaba encarnando um personagem que faz parte do lúdico de toda uma geração; há uma expectativa que colocam em cima do trabalho, em cima do personagem, em você, que é muito grande, então se você não tiver um acompanhamento psicológico, não souber separar uma coisa da outra e focar no que você pode fazer de melhor, eu diria que é um grande passo para o enlouquecimento. É lógico que você conta com a orientação e o suporte dos seus diretores, que vai te conduzir e direcionar para um caminho, e isso ajuda muito, mas o que eu tento fazer sempre é trazer para a minha realidade, além de buscar fazer tudo com muita paixão, muita verdade, muita honestidade cada um desses trabalhos e tentar deixar mais leve possível, para que realmente não se torne um peso todo o processo.
L’OFFICIEL: Você tem alguma fórmula que faça seus personagens serem grandes sucessos?
TIAGO: Paixão! A paixão direciona tudo. Quando você faz algo com paixão, com honestidade, com gratidão, isso já faz uma grande diferença. Eu acho que todos os trabalhos que chegaram até mim, uma das coisas que eu sempre faço é olhar para trás e olhar para aquele momento que eu estou vivendo. Sempre faço essa leitura do passado e do presente. Não vivo do meu passado, mas ele me ajuda a seguir em frente, então esse processo me torna grato pelo que estou vivendo no hoje, porque tudo que vivi lá atrás me ajudou, fortaleceu e ensinou para poder viver esse agora. E se eu posso ter essa oportunidade, é também porque tive pais que me prepararam para poder viver esses momentos tão bacanas que tenho vivido na minha carreira.
L’OFFICIEL: Qual foi o sentimento em ter sido o primeiro negro do mundo a interpretar o papel do Príncipe Topher em Cinderella? Como você enxerga isso como um momento marcante e representativo?
TIAGO: Bem, estamos falando sobre um Brasil de seis, sete anos atrás e que não é o mesmo Brasil de hoje. Foi um processo muito bacana, muito bonito, mas foi um processo também em que eu pedi a Deus muita maturidade. Quer dizer, eu não sei se, naquela época, fazer esse movimento foi algo muito ousado da própria produtora e também do diretor, porque fazia parte do lúdico de toda uma geração sempre ver um príncipe branco, interpretado por um homem de branco, falando sobre o ponto de vista de um homem branco, mas alguém precisa começar esse movimento; e quando você pega um homem negro para poder contar essa história também, você acaba desconstruindo e reconstruindo um novo olhar, uma nova linguagem, um outro empoderamento. Isso foi muito importante, foi muito importante para a minha carreira, muito importante para aquele momento, como segue sendo importante. A minha maior felicidade naquele momento era saber quantas crianças e jovens que tem um sonho de ser um príncipe, uma princesa, estavam se identificando, se sentindo parte e capazes, e isso foi muito legal, foi um passo muito importante e sou muito agradecido por esse trabalho, porque ele gerou um olhar diferente para o novo, serviu como uma abertura para tantos outros jovens atores, negros, para que possam fazer o papel que quiserem fazer, afinal, o papel depende muito mais do profissionalismo, da capacidade daquele ator, de reinventar-se e fazer o melhor que ele tem para fazer. Não é sobre cor da pele. Estamos em 2022, um tempo em que já não dá mais para ficarmos presos, atados a isso. E sim, precisamos inserir mais negros no cenário cultural, para que os todos entendam que necessitamos viver em um país mais respeitoso, com mais possibilidades e oportunidades.
L’OFFICIEL: Você teve uma passagem no Morro do Vidigal durante a sua vida, quais ensinamentos você leva desse período?
TIAGO: Sem dúvida minha passagem pelo Morro do Vidigal foi um tempo de muita construção, muito mesmo. E os ensinamentos foram vários, como respeitar a si mesmo, respeitar a sua origem, o coletivo, defender os seus, a buscar a excelência no que se faz, o valor das amizades; também foi um período de muita conversa, muito aprendizado com o ator e diretor e um dos fundadores Guti Fraga, que é um homem com uma carreira incrível, um grande ensinador, um grande mestre dentro de todo esse projeto cultural e social.
L’OFFICIEL: Tendo toda essa vivência na comunidade do Rio de Janeiro até o período na Europa, qual análise você faz sobre a desigualdade social no Brasil e a falta de incentivo à cultura por parte do governo?
TIAGO: Eu acho que se eu tivesse o direito de alguns desejos na vida, com um gênio da lâmpada, um deles seria que todo cidadão brasileiro pudesse ter a oportunidade de ir para fora, passar um tempo, e regressar. Porque é muito diferente e posso relatar algumas situações onde isso ficou claro pra mim. Teve um período, quando eu estava fazendo ‘O Rei Leão’, na minha primeira semana de trabalho’, e o espetáculo acaba uma hora da manhã, até que a cortina abaixa, você vá para o seu camarim, que venha a maquiadora para tirar a maquiagem e que você tome um banho, guardar suas coisas e vá para casa, já é muito tarde; e eu vivia relativamente perto do trabalho, mas fazia minha caminhada para casa, e no dia que eu perguntei para uma amiga se ela não queria que eu a acompanhasse até em casa, justamente por ser muito tarde, ela me disse que não precisava e que estava tudo bem; isso me tocou porque, na minha cabeça, era muito perigoso que uma mulher andasse tão tarde da noite sozinha na rua, o perigo a gente sabe como né… Outra situação que eu recordo, é que, também voltando do trabalho tarde da noite, passando por um lugar, eu vi tanta gente com o telefone celular na mão e eu pensava ‘-meu Deus, que perigo! essa gente vai ser tudo assaltada’, mas não, também estava tudo bem, porque a polícia estava ali para isso, para poder assegurar, e todo mundo tem o direito de ter, de ter fácil acesso, e a polícia na Espanha é vista como elemento de admiração pela sociedade, as crianças querem tirar foto com essa polícia, as crianças querem ser um policial quando crescerem. E foi aí que me dei conta de que algo já havia sido roubado de mim, como cidadão: a paz. Quando você vê que, durante uma pandemia, onde todos que trabalham com a área da arte tiveram assistência pelo governo e até agora mesmo, inclusive faz uma semana que eu recebi um e-mail, dizendo que se você não teve a entrada ao auxílio, ainda que você esteja trabalhando, você tinha o direito de recorrer, ao valor inteiro daquele auxílio que o governo deu durante aquele período de dois anos que ficamos sem trabalho, isso já fala por si, então sim, é diferente sim!
Hoje eu volto ao Brasil, claro, com muito amor e vontade, pois eu tinha muita vontade de voltar e fazer um trabalho bacana, tinha muita vontade mesmo, e estou fazendo com muito amor, mas eu me deparo com um Brasil muito diferente de seis anos atrás. É um Brasil que dá um pouco de medo de andar na rua, é o Brasil em que atores e produtores vivem numa guerra entre o respeito e a falta de oportunidade, vivemos numa guerra onde os salários estão defasados e você precisa abaixar a cabeça e aceitar sem questionar, sendo que trabalhamos muito para poder manter este setor que emprega milhões de pessoas, mas que, ainda assim, é um setor sucateado, é um setor onde não há igualdade entre nós mesmos, é um setor onde eu vejo, ainda assim, muitos atores que praticamente, - a palavra é muito forte, mas é isso -, prostituiu seu próprio trabalho, pois, a partir do momento que você diz sim a qualquer proposta de trabalho, qualquer proposta financeira pelo qual você sabe o quanto que estudou para poder conquistar aquele lugar, para poder trabalhar com isso, sabe quantas aulas que você investiu de canto, de teatro, de dança, que na hora que chega o salário, muitas vezes você não consegue nem fechar sua conta do mês, e aí você recebe várias mensagens de colegas perguntando se você tem ingresso amigo para poder assistir, então é uma roleta russa de tanta falta de respeito pela nossa própria profissão, onde nós fazemos isso com nós mesmos, e o governo hoje ainda endossa isso.
L’OFFICIEL: Depois da experiência e complexidade do personagem Lola em “Kinky Boots”, qual reflexão você traz sobre a jornada de superação de pessoas LGBTQIAPN+?
TIAGO: ‘Kinky Boots’ vai sempre ter um espaço especial no meu coração. Foi um processo muito duro, muito difícil, de aceitação, de investigação, empatia e respeito. Durante o processo eu vi o quanto de preconceito também ainda existia dentro do meu coração, ainda sendo um homem-negro-gay, e não somente da minha parte, como da parte de alguns amigos também. Quando eu comecei a estudar o ‘Kinky’ eu percebi que eu queria dar voz a essa Lola como uma mulher trans, eu precisava, e eu não sabia quanto desdobramento isso iria me dar, e o quanto de estudo eu teria que fazer; eu comecei a conversar com várias pessoas, várias mulheres e homens trans, pessoas que estavam passando pelo processo de transição, e eu pude perceber o quanto essas pessoas ainda são marginalizadas, discriminadas, que não existe acesso, não existe o respeito, quando falávamos sobre a travesti e quando falamos na travesti, o quão isso nos leva ao lugar pejorativo, ao lugar de maltrato sexual, o lugar da falta de oportunidade, o lugar da vergonha, e eu queria levar essa Lola a ser uma mulher trans, mas com muita, com muita dignidade, autoestima, talento, voz, dança, queria que ela fosse uma mulher exuberante, uma mulher brilhante, incrível. E também, eu sabia a bandeira que eu estava levantando, por ser o único homem negro naquele espetáculo, eu sabia o peso da responsabilidade social, ainda que pouco dos meus trabalhos fora do Brasil e das coisas que eu vivi tenham ecoado aqui, e eu tenho certeza, que se fosse um homem branco do teatro musical brasileiro, fora do Brasil, isso teria ecoado daqui de outra maneira, eu tenho a mais absoluta certeza. Foi engraçado porque, quando eu comprei o meu primeiro salto alto, porque eu queria antes de começar os ensaios ter domínio daquele salto alto, diferentes tipos de salto alto, eu passava praticamente meia parte do meu dia de salto alto dentro de casa, para que meu pé criasse calo e que assim, durante todo o período de 8 horas de ensaio, eu pudesse estar com aquele salto da melhor maneira possível, e tudo porque eu queria defender a essas mulheres da maneira mais bonita que fosse. Eu emagreci, vivi um processo de emagrecimento para que quando iniciasse o processo de maquiagem, de transformação, eu tivesse o mais feminina possível, para poder fazer esse personagem e dar a cara a tapa para essas mulheres, e eu acho que eu consegui um resultado muito especial. Foi um processo incrível e inesquecível, ainda que muito difícil, porque quantos dos meus amigos questionaram a minha decisão de sair de ‘O Rei Leão’ para fazer uma mulher, ou perguntaram se eu não ia ficar feminino demais, quantas coisas eu ouvi, e também por outro lado, quantas mensagens de homens, héteros, casados, até com perfil fake, eu recebi, onde colocavam seus desejos contidos para fora, em cima daquela personagem, e tudo isso, me mostrou um pouco do mundo oculto que vive por debaixo disso também… Foi uma grande experiência!
L’OFFICIEL: Como você conseguiu organizar sua volta ao Brasil em menos de 24h após encerrar a segunda temporada de “Kinky Boots”?
TIAGO: Meu Deus! Organizar essa saída da Espanha para chegar no Brasil já com ensaios, foi a maior loucura da minha vida. Na Espanha eu não tive ajuda para nada, mas tive ajuda da produção do espetáculo “Clube da Esquina”, que deixou pronta toda a minha vida aqui no Rio de Janeiro, um suporte que foi incrível, mas lá na Espanha eu não tive esse suporte pra poder finalizar. Foi uma correria muito grande. O surto de Coronavírus estava voltando na Espanha e eu tinha alguns colegas de trabalham que estavam infectados e a minha imunidade tinha baixado muito, porque eu estava num estresse muito grande, resolvendo coisas no Brasil, com cinco horas de diferença, finalizando uma casa, colocando-a toda dentro de um container pra poder acabar a segunda temporada do ‘Kinky Boots’ no dia 12 de junho, no dia 13 embarcar e no dia 14 já fazer a minha primeira leitura do texto no novo trabalho. Eu gosto muito - e acho muito necessário - que o ator tenha um período de detox, para se desintoxicar de um personagem para viver um outro; eu acho que esse respiro eu consegui viver somente dentro do avião, em 12 horas de voo. Comecei a ouvir muito Milton - que não tem nada a ver com o personagem que eu estava fazendo -, e isso foi um processo, está sendo, na verdade, de muita leitura, de ver muitos vídeos, e tendo que conciliar ainda com a adaptação geral, principalmente nas três primeiras semanas, pois cheguei no Brasil com cinco horas de diferença, quando eu já estava morrendo de fome era madrugada aqui, quando era hora de comer aqui eu estava começando a ter sono, e ficou tudo desregulado, eu acordava 03, 04 da manhã, não voltava a dormir e ia pro ensaio a tarde, enfim... Chegou a ser estressante, mas tem dado certo. Pouco a pouco tudo entra nos eixos...
L’OFFICIEL: Com o que você está empolgado em interpretar Milton Nascimento? O que podemos esperar deste novo projeto?
Eu acho que o público, quem já me conhece e já viu meus trabalhos aqui no Brasil, verá um Barbosa mais maduro. O Milton ele é visto como uma entidade, um lugar de respeito, um cara que a música dele, o nome dele é estudado lá fora, então eu acho que as pessoas vão se deliciar com essas músicas que marcaram e marcam a história da música brasileira, e vão cantar junto - isso eu tenho a mais absoluta certeza -, vão poder conhecer um lado do Milton pouco divulgado, e terão ainda mais empatia, ainda mais amor, e acho que vão entender muito mais a cabeça do grande Milton Nascimento, bem como a história do ‘Clube da Esquina’, esse grupo de músicos talentosos, que fizeram diferença no mercado fonográfico, e que ditam essa história. Está sendo um prazer voltar para poder fazer esse trabalho!