Hommes

Zé Celso Martinez: na contramão do pensamento comum

Xamã antropofágico! Um dos nomes mais contundentes da cultura nacional, Zé Celso Martinez segue na contramão do pensamento comum e revira do avesso os bons costumes da tradicional família brasileira.

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Foto: Beto Eiras

Já faz pouco mais de um ano que José Celso Martinez Corrêa trancou-se em casa por conta da pandemia da COVID-19. Aos 84 anos, ostentando a primeira dose da vacina com orgulho, ele pode até estar recluso, mas a cabeça voa a mil por hora. Cheio de ideias e de projetos para quando a vida voltar a caminhar pela normalidade, Zé surge na entrevista (feita por canal digital) eufórico, em seu traje indígena Tarahumara, de cor verde-bandeira, arrematado por um colar tribal de nuances amarelas. A indumentária entrega a provocação: “Sou um anarquista coroado, a personificação do lado b”, diz aos risos.


Nascido em Araraquara, no interior paulista, o dramaturgo iniciou a carreira na década de 1950, entorpecido pelo eco do Manifesto Antropofágico e, sobretudo, por Oswald de Andrade. Em 1958, ainda estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), ele abriu as portas do Teatro Oficina, palco de encenações memoráveis e de movimentos libertários que ajudaram a definir a cultura brasilis, a exemplo do Tropicalismo.

Sua obra, considerada incompreendida e hipersexualizada pelos caretas, tem alicerces nos enredos lisérgicos vividos por ele. “Acho que nunca escrevi uma linha sem estar totalmente entregue às viagens, seja com ayahuasca, peiote, LSD ou um simples baseado harmonizado com vinho.” As abstrações da realidade o permitiram explorar novos territórios e criar peças que mesclam as epopeias gregas e o cotidiano urbano e traz o surrealismo salpicado por notas orgiásticas. Num desses pitstops para além da imaginação, ele se trancou num quarto em Nova York, na companhia do bossa-novista João Gilberto, com quem dividiu alucinações decorrentes da mescalina. “Eu, literalmente, jantei os anos 1960 e 1970. Fiz de tudo. Só parei agora porque fiquei cardíaco”, confessa sem um pingo de arrependimento.


Bem no auge de sua produção teatral, o Brasil havia se aquartelado. “Tínhamos que driblar a censura, mas essa parte até que era fácil, pois o pessoal que fiscalizava não entendia nada do que fazíamos ali e deixava passar. Mas quando a peça entrava em cartaz, aí era um outro problema. A montagem de ‘Pequenos Burgueses’, por exemplo, foi suspensa.”

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Anúncio da estréia publidado no jornal O Estado de São Paulo e Zé Celso atuando em Bacantes, 1996.

Em meio à instabilidade política, em 1966, o teatro ardeu em chamas – dizem que o incêndio foi criminoso, capitaneado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A reconstrução levou pouco mais de um ano, e teve projeto assinado pelos arquitetos Flávio Império e Rodrigo Lefèvre. Mas mesmo nesse cenário caótico, a arte figurava como trincheira contra a opressão. Quando o lugar retornou à vida, Zé Celso escolheu reencenar “O Rei da Vela”, escrita originalmente em 1933, por Oswald de Andrade. “Saímos de São Paulo para nos apresentar em outras capitais. Criamos o ‘ReVolição: Lição de Voltar a Querer’ e descobrimos o silêncio como forma de atuar e de importunar o poder que nos reprimia. Era uma espécie de proteção contra o regime da tortura, que tinha poucas falas, muita ação e o povo contracenando conosco. Colocamos a técnica em prática na Universidade de Brasília – sempre circulando pelo campus num silêncio sepulcral. A polícia chegou a publicar um artigo nos principais jornais do país intitulado ‘Como eles Agem’, apenas para teorizar que nós usávamos um tipo de hipnose aprendida na China que ‘obrigava’ a plateia a nos seguir.”


Até aqui, ele parecia controlar os censores e o Oficina sobrevivia à impaciência ditatorial. “Mas quando estávamos com ‘Roda Viva’ em cartaz, o teatro foi invadido por militares e os atores espancados brutalmente. Acabei preso, torturado e exilado.”

Segundo ato

Portugal tornou-se o refúgio do diretor teatral exatamente quando a Revolução dos Cravos eclodiu. O ano era 1974. Zé aproveitou o momento para filmar “O Parto” e mostrar a peça “Galileu Galilei” para o maior número possível de espectadores. “Lembro-me de uma cena que fizemos no meio da rua, dançando e cantarolando: ‘Nosso pão, tesão, habitação é a Terra’ (...). Nós estávamos entregues a qualquer tipo de experiência.” Enquanto conversamos, percebo que a sua musicalidade corre pelas veias e o corpo pulsa regido pelo gingado cadenciado de sua fala. As mãos se contorcem em gestos longos e plásticos, como se ele conduzisse a passista na apoteose do samba – ritmo que ele admira.


Da terra do colonizador, ele partiu para a colônia rebelde de Moçambique, na África, para acompanhar de perto a independência do país. “Era como se Woodstock estivesse rolando ali, com muita maconha, música e uma vibração que nunca tinha visto”, conta. Retornou ao Brasil em 1978, e tratou de rebatizar o Oficina para 
“Oficina Uzyna Uzona” – aqui cabe um adendo sobre a escolha do nome original, o solitário “Oficina”, que remete a trabalho: “Queríamos que as pessoas percebessem que o teatro não é fres- cura, é meio de vida, é trabalho”, explica Martinez.

Em solo brasiliano, o combativo Zé Celso travou batalhas contra o poderoso grupo Silvio Santos para impedir a ocupação do quarteirão do Bixiga que abriga o teatro. A ideia dos investidores era transformar a região em um enorme shopping center, engolindo o Oficina. Para impedir que o plano saísse do papel, a estratégia foi emplacar o tombamento do imóvel, mas não apenas como bem patrimonial e, sim, como equipamento de proteção à continuidade cultural.


No documento enviado ao Condephaat em julho de 1981, a justificativa exalta que “O espaço pede uma transformação arquitetônica substancial que permita a sua existência contemporânea. O projeto do terreirão eletrônico dos arquitetos Suzuki Tupinambá [SIC] e Lina Bo Bardi, criado a partir das próprias práticas que os arquitetos, cenógrafos, atores/atuadores organicamente criaram nesses 21 anos, é que neste momento exigem uma revolução arquitetônica; um salto de maioridade”.

Entretanto, somente nos anos 1990 – já com o tombamento do edifício aprovado (também pelo Iphan) –, a concepção da arquiteta Lina Bo Bardi, que cravou galerias metálicas e uma passarela linear, chamada de rua do Mangue, foi adotada. A obra unificou o espaço cênico dos anos 1960 e o subterrâneo underground dos anos 1970. “A revitalização encontrou-se com a forma africana, índia, popular e de terreiro, ligada às soluções urbanísticas de desconstrução do centro das cidades.”


Passadas quatro décadas de embates, finalmente, Zé Celso encontrou o seu “Rei Lear”. Debochado, Silvio Santos propôs entregar o local à Cracolândia e achou graça quando Zé, a bordo do seu mítico poncho Tarahumara, falou sobre a herança que ambos deixariam à cidade. “São Paulo não precisa de mais cimento. Ela quer natureza, arte livre, não encaixotada. O lugar do teatro é o da natureza, da cosmopolítica [conceito que permite ver além do ponto de vista social]. Esse capitalismo selvagem, rentista, contrapõe as lutas dos indígenas pela terra, essa terra-planeta, essa coisa concreta que estamos pisando agora. Considero-me índio. Minha avó era índia. Minhas lutas são pela posse da terra de origem.”

Zé em Hamlet, 1993.

Terceiro ato

O armistício durou pouco tempo e nenhum lado comemorou a vitória. Silvio ainda tem planos megalômanos para o quadrilátero que compreende as ruas Jaceguai, Abolição, Japurá e Santo Amaro. Zé segue sonhando com um terreiro tomado por bacantes, numa comilança antropofágica – talvez no dia supremo da “Xota Power” – no ápice da sua “tragicomédia orgia”. Impossível explicar José Celso Martinez Corrêa – um xamã pronto para devorar os recalcados.


Hoje, no centro de suas inimizades não há um homem palpável, mas o capitalismo, sistema que ele acredita ter entrado em colapso (porém, é verdade que Silvio Santos representa esse capitalismo esdrúxulo e ultrapassado). “A pandemia do coronavírus é a prova desse caos de dimensões apocalípticas, já que ela está ligada à globalização e à devastação constante da Terra.”

Para ele, é chegado o momento de se livrar das relações burguesas de raciocinar, ambíguas e meio edipianas. “A ação é a do pensamento primitivo, a do sentido devorativo do sistema” – faz uma breve pausa e emenda: “Temos um vírus no poder, um vírus que quer nos sufocar”. [Refere-se ao atual presidente da república, que, na sua visão, trava uma guerra para calar a cultura e manejar o povo como se fosse gado]. “Quanto mais inculta e ignorante for a população, mais fácil será manipular o discurso. A opressão não vem sem o parasitismo que caracteriza a colonização.”


Zé convoca, ainda que silenciosamente – inspirado na hipnose chinesa que nunca estudou –, os tupinambás à retomada da Pindorama oswaldiana. É o momento de fazer Hamlet verbalizar “Tupi or not Tupi” e de digerir de uma vez por todas o banquete dos caetés, que teve como prato principal, a catequese carnuda do bispo Pero Fernandes Sardinha

Os Sertões - A Terra

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