João Maraschin: confira entrevista exclusiva para L’Officiel
Com meros três anos à frente da marca que carrega seu nome, João Maraschin já ganhou um pódio próprio. Confira a entrevista!
Com meros três anos à frente da marca que carrega seu nome, João Maraschin já ganhou um pódio próprio. Muito por conta do seu posicionamento global — a etiqueta nasceu em Londres, onde mora —, mesclado à sua vontade esperta de produzir, de maneira responsável, ao lado de comunidades artesanais espalhadas pelo Brasil. O resultado iça a arte feita à mão nacional a uma moda desejável em qualquer lugar. Palpável no mercado internacional, depois de ser indicado ao prêmio LVMH e assinar collab com Alexander McQueen, Maraschin fez o caminho inverso e entra agora no mercado nacional — junto da plataforma de novos designers do Shop2gether e com desfile elogiado no último SPFW, em novembro, quando mostrou seu furor de possibilidades artesanais. “Muito do que faço é porque quero produzir, experimentar; depois assimilo no que faz sentido dentro da coleção”, define, passeando pelas araras de tudo o que trouxe para o desfile (muito mais do que entrou de fato na passarela), antes de conversar com L’OFFICIEL sobre esse novo momento.
L’OFFICIEL Nesses três anos, a impressão é que a marca cresceu muito. Como está tudo, internamente?
JOÃO MARASCHIN Foi um crescimento muito forte, internacionalmente. Conseguimos solidificar uma presença muito boa, inclusive comercialmente. Mas, até agora, eu não tinha nenhum tipo de relação comercial com o Brasil. Era não só uma questão de preço, mas um receio sobre como introduzir a marca aqui. Não poderia entrar no mercado querendo ser uma marca de luxo internacional porque não é esse meu lugar, não tenho o capital de marketing para competir com a Gucci ou a Louis Vuitton ou com quem quer que seja. Então precisava entender qual é esse lugar da marca que vende em vários lugares no mundo, tentando atender ao apetite que está existindo no Brasil. Essas conversas sempre existiram, mas sempre tive a preocupação de entregar algo que fosse girar na loja — não me interessa ter um corner que vai ficar empoeirado e ninguém vai comprar pois o preço não traduz. Quero ver as pessoas vestindo [minhas criações]. Na Europa, já encontrei desconhecidos em eventos usando a marca, quero que isso aconteça no Brasil. Então precisava entender como chegar com esse produto para cá, foi um exercício difícil. E agora, trazer isso para o SPFW, começando a vender no Shop2gether, são linhas de aprendizados que teremos para ver se a estratégia funcionará ou não.
L’O Como foi essa adaptação?
JM Basicamente, reduzi os preços que praticamos no mercado internacional para operar num valor que seja possível no Brasil. É um pouco mais alto do que gostaria, ainda não somos tão competitivos, mas consigo entregar a mesma história no cenário local e no internacional. O segundo movimento foi iniciar um miniQG no Brasil. Há dois meses tenho um escritório aqui, com uma equipe de duas pessoas, para essa transição. Quero poder não só fabricar o feito à mão aqui, como sempre foi, mas também todas as outras roupas que atualmente produzo com fornecedores na Europa. Meu sonho é chegar a ter uma fabricação 100% nacional, articular parcerias que entendam a dificuldade e a qualidade do que quero, como acontece lá fora. Até o final de 2024, a vontade é de ter uma coleção quase toda feita aqui. Em nível de impostos, para mim, é muito mais simples exportar do Brasil do que importar. E poderei passar a dar um suporte total para a indústria brasileira, que é um dos pilares do meu DNA, e ser ainda mais fiel aos valores que estabeleci no início— o que começou com as comunidades de artesãos, agora para a cadeia inteira da manufatura. Esse aprendizado aconteceu muito em 2022, quando fiz a coleção com a MCQ Alexander McQueen. Vendemos quase 3 mil peças, todas produzidas no Brasil. Pude aprender com esse processo exatamente porque não era um investimento meu, diretamente. Desenhei a coleção, cuidei de toda a produção e pudemos estabelecer os custos, a logística etc. E pude perceber que tipo de estruturas precisaríamos colocar nesse caminho. O que me animou, pois vi que era possível. Foi um ótimo teste, que agora vai me fazer atender a essa demanda sobre a marca que está rolando no Brasil.
L’O Por que escolheu produzir tudo da collab no mercado nacional, se já tem a estrutura de produção montada na Europa?
JM Basicamente porque o trabalho dos artesãos foi o que os atraiu, em primeiro lugar. Quando tivemos a primeira reunião, a McQueen chegou com painéis com meu trabalho todo mapeado — e 90% do que queriam era justamente o feito à mão. Depois, com a Sarah Burton vindo no processo e, principalmente, a equipe de design, isso foi ficando ainda mais claro. Queriam o handmade, mas não só. Queriam contar a história com o produto, aproveitando as artesãs que estavam naquele contexto, ou que tinham tais características. Em uma das minhas comunidades de bordado, 75% das mulheres têm mais de 70 anos, então também há essa questão da aposentadoria, das pessoas que tinham o bordado como um hobby e que depois foi transformado em profissão. A McQueen queria produtos que fossem enraizados na cultura de cada um desses lugares. E trabalhamos muito a estruturação do preço de forma transparente. Sabiam exatamente quanto estava sendo pago aos artesãos, o quanto eu estava ganhando para a minha logística e para a construção da história — vim para o Brasil nove vezes naquele ano. Então havia essa transparência, com liberdade para eu reproduzir os valores que tenho como pessoa, como designer, que são semelhantes aos de todo mundo com quem trabalho.
L’O Da última vez que conversamos, você falou muito sobre essa relação com quem produz, de não se impor e ter essa troca criativa. Mas quando entra um terceiro ator, ainda mais um gigante como a Alexander McQueen, essa liberdade deve ficar mais complicada, não?
JM Sim, e há várias pontes que precisam ser cruzadas. Qualquer criador fica deslumbrado com um convite desses. Quando recebi o e-mail, muito breve, querendo marcar uma reunião — até pensei que fosse um spam, de alguém mandando mensagens aleatórias. Claro que há uma euforia, poder fazer algo com uma marca superfoda que tem um trabalho incrível. Mas sou muito confiante nos meus processos e nas relações que estabeleço. Meu compromisso sempre foi proteger esse lugar, esses diálogos, pois não aconteceram da noite para o dia. Existe uma nutrição. Eu não chego num artesão impondo nada, há esse lugar horizontal em que temos responsabilidades diferentes, mas somos igualmente importantes. O João, diretor criativo, não é nada se não tiver a Estela, a Ana ou a Katia no processo — não adianta nada ter vontades e não conseguir executar. Então, quando a McQueen se aproximou, a primeira coisa que fiz foi apontar as bandeiras vermelhas, o que não poderíamos fazer de jeito algum. Estava obviamente deslumbrado por ser escolhido, mas também não queria vender a alma e ser atropelado. E fui muito feliz, pois todos estavam alinhados com os mesmos valores que tenho e me deram muita liberdade — eu decidi o que era possível ser feito, como seria feito e eles entraram com o suporte. Claro que havia expectativas, houve negociações de preços e possibilidades em toda a linha, assim como tive que defender algumas das comunidades que poderiam ter sido limadas do processo numa lógica de produção em larga escala. Mas foi um processo bom nesse sentido, uma porta que se escancarou. E não traí os valores estabelecidos para a marca. Sou muito impulsivo e emocional, mas eu também sou muito convicto nesse sentido. Não posso trair o propósito do projeto ou comprometer a longevidade dos relacionamentos que construí.
L’O É um protecionismo — não num sentido de segredo industrial, mas em defesa de relações humanas.
JM Totalmente. Outro movimento que comecei este ano foi de dar consultorias para empresas, no Brasil e lá fora, de vários pontos da cadeia. Muitas das marcas com que trabalho já estão estudando o desejo de trabalhar com as mesmas comunidades. E não tenho nenhum problema quanto a isso. Hoje, a João Maraschin não tem um volume para sustentar essas comunidades. Lógico, já somos uma marca mais bem estruturada e com uma demanda consistente e constante, mas não a ponto de manter uma exclusividade. E nem acho isso justo, assim como não gosto quando uma loja tenta fazer isso comigo. Não é financeiramente sustentável, nas duas pontas. Essas pessoas vão, com certeza, fazer outros projetos e, por mais que usem das mesmas técnicas, não será igual ao que produzem para mim. Mesmo que alguém peça, tenho a clareza que os artesãos com quem trabalho não produzirão o mesmo. Não estão nessa história só pelo dinheiro. Claro que é o que mantém isso tudo possível, mas jamais trairiam a relação que existe comigo para produzir uma cópia. Então há sim um protecionismo, mas não aquele protecionismo colonial. Uma das coisas que falo no meu processo é sobre decolonizar como se faz moda. Acho que me colocar nesse lugar de fazer as coisas de uma maneira diferente já é um movimento de decolonizar uma forma de desenhar uma marca, de criar algo juntos.
L’O Voltando à sua vontade de produzir 100% da marca no Brasil: por que agora, e não desde o começo?
JM Amo o Brasil, sempre foi muito presente na minha história toda, protagonista de tudo o que faço. Mas minha vida é em Londres, então num primeiro momento tentei estabelecer essa estrutura por lá. Estamos fazendo o caminho inverso, né? Normalmente, uma marca de um designer brasileiro se solidifica no Brasil e depois internacionaliza, eu estou chegando aqui agora após me solidificar por lá. Meu primeiro ponto de interesse, que formatou muito o DNA do meu trabalho, foi o feito à mão. Era uma ponte que já existia e que foi se fortificando nesses anos. Já do restante da cadeia, não tenho esse mapeamento no Brasil. Não tenho um fornecedor de alfaiataria, por exemplo, é algo que ainda estamos tateando. Por isso não pude fazer nesse primeiro momento, pois era mais fácil mapear por onde vivia — não podia estar no Brasil, fisicamente, para esses movimentos. Então em Londres foi o caminho mais simples, também para vender para outros territórios internacionais — menos para o Brasil, que acabou ficando para um projeto futuro, pela questão da conversão do euro, da libra. Essa chegada vem até mais cedo do que imaginava. Estou lançando a minha sexta coleção, ainda é uma marca supernova.
L’O Um processo curioso, pois você resolveu primeiramente a parte mais complicada — de ter essa relação com os artesãos que estão fora do mercado de manufatura das capitais.
JM É muito da minha personalidade. Quando sou apresentado a desafios, sempre prefiro fazer primeiro o mais difícil e depois, o resto. Porque acho que o mais difícil vai sempre demorar mais e, se não resolver isso, arrisco não ter nada. A essência da João Maraschin é o feito à mão, sem isso ela não existe. Por isso esse caminho. Hoje já produzo com comunidades fora do Brasil, na Itália, no Senegal. Estou fazendo um projeto em Londres com três bairros próximos ao meu estúdio, mas em outro contexto: o educacional. No Brasil, as técnicas já estão enraizadas nas comunidades — diferentemente de lá. Um dos meus pilares é preservar essas técnicas, algo que só acontece se você ensinar a alguém. Então estamos ensinando crochê, macramê, uma série de coisas para poder ter um impacto positivo em diferentes comunidades. Não é só no interior de Itabira, queremos impactar em outros lugares — mesmo que de forma pequena, por enquanto.
L’O Nesse mix de ser uma marca meio brasileira, baseada em Londres, vendendo pelo mundo… como vê a percepção do mercado sobre si?
JM Fui ontem às Histórias Indígenas no MASP e vi uma frase que falava sobre voltar para a sua matriz, e aquilo me tocou muito — nesse sentido de como podemos nos inserir no mercado global. Sabemos que o mercado europeu tem essa força tradicional, com muita gente produzindo, mas também de fortes investimentos, que faz com que as pessoas enxerguem como a grande ponta lançadora de tendências. Mas, em paralelo, vejo que o mundo tem pedido muitas desculpas. Talvez de forma não tão real, muitas delas como um novo greenwashing, como plataforma de marketing — inclusive para muitos governos. Então começa-se a dar espaços para pessoas como o João, que é brasileiro, ou para a Karoline Vitto, que também é e trabalha com outros tipos de corpos, ou para marcas diferentes com muito potencial, mas que não ganhariam tais lugares anos atrás. Tudo isso tem dado frutos bons e não tão bons. Há essa questão de aberturas, de oportunidades grandes que passam a ser entregues a você — o que faz ir além do que imaginava. Mas há também o movimento de te deixar encaixotadinho como o designer brasileiro. Uma coisa que ouvi muito no meu mestrado em Londres era exatamente sobre isso: o meu processo vinha de um lugar minimalista, mas, como era brasileiro, estranhavam a falta de cores. Há essas simplificações muito fáceis de colocar as pessoas em caixinhas, me senti nessa situação muitas vezes. É o famoso token, quando te usam para garantir que há aquele designer naquele perfil esperado.
L’O E também para manter dentro da caixinha.
JM Exato, pois o seu valor é esse. Se não tem isso, o que mais tem para mostrar? Abrem-se certas portas por causa disso e é preciso provar que se consegue criar um produto competitivo que está no mesmo lugar de qualquer um, independentemente de onde vem. São muitos desafios a superar. O mercado brasileiro, eu nem conheço ainda, vai me trazer desafios novos. Mas, o de fora, posso dizer que ganhamos espaço muito grande com tudo o que tem acontecido nos últimos anos. A marca começou a ser ouvida com mais atenção por pessoas líderes da mídia, estamos vendendo na Selfridges e na 10 Corso Como, lugares que não vendem qualquer marca. Então há esse espaço que foi conquistado, mas não de forma simples, foi construído. Talvez a porta de entrada seja o fato de ser o brasileiro do feito à mão, mas depois é preciso sustentar. Então começa-se a negociar com a sua própria visão de marca, de que forma é possível trazer um produto que seja até mais internacionalizável. É uma criação que pode estar na Ásia ou na Europa e será entendida como um produto global.
L’O Do lado de cá, há a sensação de que a indústria criativa europeia tem percebido que precisa abraçar a criatividade do Sul Global para se manter relevante. Como enxerga, trabalhando no meio do furacão?
JM Exatamente assim. De novo, é esse decolonizar o processo que, para mim, não é tão genuíno quanto parece, mas que muitas pessoas compram. Acho que falta muito senso crítico. Não digo que tudo precisa ser político, que tem que ser questionado. Mas é entender até que ponto isso é uma vantagem, sem perder a visão de que pode ser um neocolonialismo, uma nova forma sutil de se apropriar de forma, digamos, respeitosa da história alheia. Há muito disso, e não deixa de ser um certo controle, como você acabou de falar. Trazem essas marcas para seus radares, veem quem está fazendo algo bacana, dão um certo suporte… mas nada é de graça. Quando se faz parte desse contexto, como é o meu caso, é possível enxergar mais para além da vitrine. Acaba-se vendo que certas relações são amarradas com outro tipo de teor e, juntando as pontas, entende-se como o mercado se movimenta. Essa maturidade vem depois que você quebrar a cara, vendo as coisas acontecendo na sua frente e entendendo que, por mais que o discurso seja para todos, nesse momento de uma certa igualdade, liberdade e fraternidade — na prática, a realidade é outra. E a moda não é diferente, é um dos setores mais complicados.
L’O Ser apresentado como criador de uma marca brasileira faz sentido para você, hoje em dia?
JM Comercialmente falando, sim. Dentro desse movimento de pedir desculpas, de celebrar outras culturas que não se pode mais ignorar — elas estão na sua rua, na sua tela, na flor da pele — por conta da globalização muito forte nas grandes metrópoles em que a marca está presente, as pessoas dão bastante peso. Mas, conceitualmente falando, diria que não. Tanto que quando fizemos a história com a McQueen, a questão de ser brasileiro não fez parte da comunicação: era sobre o handmade, independentemente de onde ele vinha. Muita gente fala que o que fazemos é muito especial; não é só mais uma blusa, mais uma roupa. Realmente não é, há essa preciosidade. Então depende muito do contexto em que você está. Quero acreditar que não preciso mais abrir portas pela nacionalidade. Claro que muito do destaque que ganhei vem desse movimento de mostrar como todos estão sendo diversos. Mas acredito que, cada vez mais, caminho para um lugar em que existo como um produto global, não brasileiro. Inclusive, isso nunca foi algo que usei como marketing, nunca vendi o Brasil como uma das moedas. É sobre o artesanal, e o meu país serviu como projeto piloto de como trabalhar com essas comunidades de forma responsável — depois, levei para outros lugares, como o Senegal e a Itália. A vontade é que possamos cada vez mais semear outros projetos em outros lugares, para além do Brasil. O contexto é diferente, mas o valor central é o mesmo. Vamos entendendo como maleabilizar para ter resultados semelhantes em lugares distintos.
L’O Pensando no lado inverso, nós temos essa mão de obra manual que é muito nossa, mas que a moda brasileira nunca mergulhou fundo. Sempre houve pequenas bolhas, em que o artesanal ganha relevância, que passaram. Vivemos uma agora, notoriamente mais forte. Mas não há ainda uma valorização maciça. Como você se enxerga nesse cenário?
JM Diria que é por que falta muito… de tudo. Falta suporte, falta coragem, falta muita coisa. Temos esse lugar, meio clichê, de nos colocarmos como o cachorro vira-lata da coisa toda; então acaba-se dando valores diferentes a contextos diferentes. Quando vêm essas ondas, e vê-se a Bottega Veneta fazendo, a Burberry, a Loewe, marcas que estão no topo e encostam no feito à mão, começam a enxergar um valor ali. Mas as pessoas, e me incluo nisso também, acabam muitas vezes não dando tanto valor a algo que estão familiarizadas. O crochê mesmo, é coisa que nossa avó sempre fez. Muita gente aprendeu a fazer pelo menos uma mantinha de crochê. Então me arrisco a dizer isso: como é algo muito presente na cultura de várias pessoas, do Norte ao Sul, está no contexto social geral, o valor desaparece. Por isso que se dá muito valor à alfaiataria, por exemplo — não é qualquer um que vai lá e faz um terno do jeito correto. Então o feito à mão, na nossa percepção, tem essa relação binária o tempo inteiro: se a Bottega está fazendo, dou valor; se parou de fazer, volta a ser coisa da vó. Não há longevidade, pois vira um jogo de tendências e o feito à mão não sobrevive assim. Mesmo comigo, o produto que entreguei neste desfile no SPFW é muito mais maduro do que o da primeira coleção. Para tirar a cara de pano de prato do feito à mão, é preciso tempo, experimentação.
L’O Acha que já chegou nesse patamar ideal?
JM Um dos grandes casamentos que faço é do lugar que o artesanato tem, principalmente no Brasil, com o design global que encosto pela vivência que tive até então. E tento fazer de forma respeitosa. Como transformamos esse manual, que não tem um valor reconhecido no contexto do qual ele sai, em algo que recebe outros olhares? De que forma podemos fazer esse cruzamento entre as pessoas que fazem e distribuir um pouco de responsabilidade dentro desse movimento? O meu trabalho é muito assim, por acreditar nessa força e querer que não seja algo só meu, mas coletivo. Por isso tem dado tão certo. Se chegasse a uma comunidade com uma ficha técnica, apenas encomendando algo, não teria o mesmo sabor — seria apenas mais um produto. Hoje, faço algo que precisa ser reproduzível, escalável. E o artesanato não tem esse lugar, naturalmente. Essa também é uma linguagem nova para os próprios artesãos. Quando fizemos McQueen, houve peças que produzimos 300 unidades — e todas precisavam ter a mesma qualidade, o mesmo tamanho, um ponto parecido. Eram 45 pessoas diferentes trabalhando nisso, então pense nesse controle. É um aprendizado para todos, estar aberto a isso é o que faz o projeto ter sucesso ou não.
L’O Se fizer uma correlação entre os grandes ateliês do mundo da alta-costura e o crochê da avó, como cita; apesar da diferença de evolução, a base é a mesma: a atenção, a preciosidade, o cuidado no trabalho. Como elevar a moral do nosso feito à mão e fazer entender que ele poderia chegar ao patamar da Couture?
JM É um superdesafio, né? E há esse lugar do contexto. Quando você olha para esses grandes ateliês, que fazem bordados há muito tempo, obviamente eles já estão num lugar privilegiado. Já nascem sabendo que vão fazer um produto para tal lugar, tal contexto. Em contrapartida, quando converso com um artesão pela primeira vez, o contexto em que ele foi colocado é do pano de prato, do tapete de banheiro. Há uma disparidade moral muito grande. Como você disse, as técnicas são as mesmas. Lógico, com processos de experiências diferentes, mas o lugar de onde vêm é semelhante. O contexto é o que muda tudo. O que ajuda a contar uma história diferente é o design. Eu, nesse papel, entro nesse processo para trazer uma disrupção — seja para criar algo para o consumidor final ou para um desfile — e para mostrar que a técnica que o artesão usa para fazer um cachepô pode ser inserida em outra realidade. Há sempre a surpresa imensa, quando começo a trabalhar com alguém novo que vê a imagem do que produziu numa imagem de uma revista, por exemplo. Naquele momento há a percepção de potencial, do poder fazer. E há esse lugar, como falei antes, de se sentir internamente colonizado e achar, automaticamente, que a sua arte não tem esse valor — enquanto, nos ateliês da Couture, ela já nasce valorada.
L’O É mais do que uma percepção de mercado, é uma autopercepção de quem faz.
JM Exato. E mesmo assim, se eu falar que fiz um bordado com a Lesage ou que fiz um bordado com uma artesã desconhecida no interior de Minas Gerais… há essa questão do que é globalmente acessível. Do que as pessoas realmente conhecem e do que é marginalizado. Qualquer uma dessas casas europeias está num lugar de privilégio, de conhecimento, de acesso muito fácil. As comunidades com que trabalho estão, boa parte delas, remotas num lugar supermarginalizado. Há aí coisas muito boas e muito perigosas. Você tem processos de engajamento, como o meu, que têm esse cuidado forte de não se apropriar, de ter o cuidado de como fazer. Mas também pode haver outras marcas que olham para eles e fazem do jeito que quiserem, com o valor que bem entenderem. Nesse ponto, casas como a Lesage também já têm vantagem: se disserem que o trabalho custa mil libras, é isso e ponto; é um lugar de visibilidade que você nem tem como questionar o valor do trabalho.
L’O No seu contexto de mercado europeu, falar que a sua roupa carrega bordado feito numa cidade remota no interior do Brasil — isso dá uma carga de interesse. Mas não há aí também um risco de exotificação?
JM Com certeza, inclusive dos dois lados — tanto do brasileiro que compra aqui quanto do consumidor lá fora. De modo geral, as pessoas dão valor àquilo que desconhecem e que não é tão imediato para você. Se fizer no Brasil, não é tão especial assim. Mas se eu chegar e inventar uma história que foi feito fora, a percepção de muitas pessoas muda. Esse meu caminho de transparência é ótimo, porque me ajuda a entregar os valores que acredito. Mas, comercialmente falando, se quisesse, poderia contar qualquer outro enredo, como outras marcas fazem, para vender no preço que inventar. Questão muito parecida com ser colocado na caixinha de brasileiro que precisa fazer moda colorida. É perigoso tratar o artesão desse jeito, tanto na internacionalização quanto nessa nacionalização, que faço agora. São processos muito complexos, que é preciso sempre revisitar. Não dá para subestimar o processo e achar que será do mesmo jeito para o resto da vida. Em toda coleção nova, preciso rever um monte de coisas — pois é possível que a realidade dos artesões tenha mudado muito. Assumir que tudo será sempre igual é, de novo, um processo colonizador e desrespeitoso. Para mim, o diálogo é fundamental.
FOTOS: Igor Kalinouski.
STYLIST: Miguel Cuenca.
BEAUTY ARTIST: Carolina Felicio.
MODELO: Gabriela Simoes (Singular).
MODELO: Sthefany Tomaz (Singular).
ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA: Vic Cavalcante.
PRODUTORA EXECUTIVA: Anna Guirro.
AGRADECIMENTO: Herança Cultural - Design Art Galley.