Mauricio Duarte abraça materiais e técnicas ancestrais como marca
Mauricio Duarte abraça materiais e técnicas ancestrais e os transforma em marca registrada para o mundo
Mauricio Duarte está sem casa há meses. Apesar de radicado em São Paulo, o estilista amazonense tem constantemente vivido em salas de embarque por aí – seja para visitar sua Manaus natal, em busca de reconexões espirituais com o rio e trocas com as comunidades locais com quem produz, seja para levar sua moda (e suas falas) para o mundo. Em setembro, marcou presença em Milão, com direito a cochichos com Naomi Campbell, e estreou na semana de moda de Nova York, em calendário dedicado à moda latino-americana.
Nas malas, a coleção Muiraquitã, evolução natural da Piracema que apresentou na última SPFW, em abril: uma criação cosmopolita, mas que carrega carga intensa da ancestralidade do criador. “Quando saí de Manaus para estudar em São Paulo, minha mãe me deu um muiraquitã que carrego até hoje. É um símbolo de proteção muito nosso. Então, quando surgiu essa oportunidade de desfilar em NY, nada mais natural que trazer de novo esse impacto de proteção, de espiritualidade, que tem um significado não só para mim, mas para todos os que estão me ajudando a construir essa história”, conta.
O coletivo não é à toa. Na evolução do trabalho de Mauricio, a presença dos fazeres e saberes amazônicos tem se tornado cada vez mais forte, trabalhados com vontade de transformar tantas tradições e significados de maneiras inéditas. Para isso, ele faz questão de pontuar todas as comunidades com quem produz, especialmente no uso de materiais nobilíssimos que vão além do tecido – como as fibras de tucum e arumã e as escamas de pirarucu.
“Eu venho trabalhando com as fibras, mas essas comunidades já fazem isso há muito mais tempo, em outros repertórios e objetos. Como a Assai, de São Miguel da Cachoeira, a Amiarn, do Alto Rio Negro, e a Amism, dos Sateré Mawé”, detalha. “O que temos feito de interessante é trazer esse repertório delas para o vestuário. A estrutura do corset que mostramos em Nova York, por exemplo, era originalmente uma luminária. Através do meu olhar, acaba se tornando outra possibilidade de produto. Mas eu não consigo produzir o suficiente para gerar demanda que sustente essas comunidades. Por isso faço questão de nomeá-las, até para que surjam colaborações delas com outras pessoas.”
O uso do tucum e do arumã, não é de hoje, tem chamado atenção nas ideias de Mauricio ao aparecerem em obis, saias, tops e acessórios (criados em collab com o mineiro Carlos Penna). “É um trabalho muito minucioso. Uma das saias demora 12 dias para ficar pronta. É um macramê sem agulha, à mão livre, na fibra de tucum”, explica. “E é um trabalho 100% feminino e que corre o risco de se perder, pois a juvenude não tem o interesse de aprender essas técnicas. Quero também ajudar a fomentar essa preservação. Imagine você ser uma senhora de 70 anos, a tristeza que dá ver que ninguém quer seguir o que você aprendeu com sua mãe? É pura ancestralidade, de uma importância tremenda.”
Além das fibras, Mauricio tem sido pioneiro no uso das escamas de pirarucu na moda. “Muito da minha criação surge de mamãe, e me lembro dela tingindo essas escamas e fazendo flores. É um material que sempre foi muito usado para artesanato, que já aparece em peças de design, mas ainda é tratado como subproduto da pesca”, explica. Além de brincos e anéis, Mauricio as tem aplicado em meio aos fios de crochês nas roupas – mas quer ir além do mero décor.
“É uma materialidade que ainda não tem a preocupação, por parte de quem pesca o pirarucu, de se tratar como algo com alto valor agregado – como acontece na retirada da pele, que já virou um clássico da moda. A escama ainda não tem um grande mercado”, diz. “Estamos em um processo de entender esse material como fonte de renda para essas comunidades. E, ao mesmo tempo, inovar no vestuário e nos acessórios com uma matéria-prima orgânica que tem grande resistência e durabilidade. Tenho usado-a natural, sem nenhum tipo de verniz nem nada – mas é algo possível de se tingir, abrindo outras tantas possibilidades.”
Seu primeiro contato, lembra Mauricio, foi quando era a “criança viada que encaixava as escamas para fingir que eram unhas postiças”. Depois, já estudando moda em São Paulo, usou o que conseguiu achar por Manaus em projetos de faculdade – lá por 2017. “Agora, a ideia é trabalhar com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que já atua na pesca de manejo sustentável em Tefé, no Amazonas, para que possamos tratar da certificação dessas escamas – algo que já é feito com a carne e com a pele.”
Aliando responsabilidade social e ambiental, Mauricio tem uma clareza muito forte de manter suas origens no radar – mesmo quando sai para rodar planeta afora. “Tenho é que agradecer a toda a nossa ancestralidade. Poder olhar com valor para essas escamas que, antes, não valiam nada para a gente, ou poder fomentar essas mulheres que estão trabalhando comigo, é algo que, ao mesmo tempo, me segura e me empurra. E me desafia a conhecer mais as fibras, pensar em outras formas de uso para esses materiais que já são uma característica minha. Eu não consigo me separar dessa memória de casa. E, no fundo, nem quero.”