Moda

Murmaid é um jovem estúdio de moda que rever o couture com upcycling

Tocado em Paris por uma brasileira e uma argentina, o Murmaid é um jovem estúdio de moda que quer rever as convicções da couture por meio do upcycling

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

Tocado em Paris por uma brasileira e uma argentina, o Murmaid é um jovem estúdio de moda que quer rever as convicções da couture por meio do upcycling, um retalho por vez. Confira! 

Como se muda, por dentro, uma indústria secular que enfrenta tantas questões problemáticas em relação à sustentabilidade e ao hiperconsumo? Para a dupla idealista da Murmaid, esse é um trabalho que acontece um retalho por vez. Formado em 2021 pela brasileira Deborah Meirelles e a argentina Ximena de Zorzi, ambas radicadas em Paris depois de formadas pela Parsons local, o estúdio de criação tem, como mote, uma costura entre o savoir-fare manual e as práticas corretas de design, especialmente o upcycling. Nesses últimos anos, a dupla têm comandado discretamente um movimento que pode ajudar a pôr em xeque o fazer de moda francês – com vontade de atingir e remexer nos ateliês de alta-costura. L’OFFICIEL conversou com Deborah, para destrinchar melhor essa história.

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

L’OFFICIEL Como foi seu começo? 

DEBORAH MEIRELLES No último ano de Parsons, que também foi o ano da Covid, lembro que estava em um modo um pouco rebelde, odiando a moda. Com a história toda da pandemia, superdepressiva e sem conseguir comprar material, comecei a usar coisas que tinha em casa. Já havia uma pauta de sustentabilidade na minha tese, ganhei um prêmio da Tranoï com o assunto em 2018, então virou um ideal. Não consigo me imaginar criando algo que não seja feito de materiais não utilizados. Eu e Ximena, minha melhor amiga, tivemos essa ideia de construir um ateliê. Já tinha passado por estágios na área, mas não queríamos trabalhar para ninguém, viver no ambiente clichê da moda. Juntamos três meses de aluguel e abrimos um “ateliê clandestino”, que ficava exatamente no meio do raio dos 3 quilômetros que podíamos caminhar durante a quarentena. A marca foi se desenrolando bem organicamente. Oficialmente, a Murmaid começou em agosto de 2021. Foi quando já desenvolvíamos vários projetos sem assinar e percebemos que tínhamos uma identidade forte – e que, continuando assim, ela não seria mais nossa. Foi o momento do twist, abrimos um ateliê de verdade, registramos a marca. Um caminho de independência, sem ter que criar coleção apenas por criar ou fazer projetos que não queríamos. Já chegamos a ter nove pessoas no estúdio, mas, por conta da economia, agora somos nós duas – e trabalhamos com equipes por projetos específicos.

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

L’O De onde veio o nome Murmaid? 

DM Ainda na faculdade, tinha a conta com esse nome – era um perfil anônimo em que postava meus trabalhos. Sempre gostei muito de sereia [mermaid, em inglês] e, na época, não tinha mais como registrar a palavra correta, escrevi assim e acabou ficando. É também uma questão, tanto para mim quanto para minha sócia, sobre a maneira que sempre trabalhamos. Todos os nossos produtos são únicos e todo mundo que trabalha conosco é um designer. Achamos essencial que a Murmaid seja um estúdio sem um rosto que fique atrelado à marca. Essa ideia de uma criatura mística, na época, pareceu uma boa ideia para manter esse distanciamento.

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

L’O Em que momento houve a fagulha de trabalhar com a moda com o reaproveitamento de materiais? 

DM Quando estava no último ano, tive um daqueles professores que mudam a vida. Para a coleção final, tínhamos que acompanhar com uma tese, uma pesquisa profunda de um ano. Nesse processo, a coisa toda começou a perder um pouco o sentido. Comecei a me questionar: estou gastando esse tempo todo da minha vida apenas para criar roupas? Realmente acho que o mundo quer ver algo que eu fiz? Então ele me incentivou a desconstruir tudo, até mesmo o físico. Lembro de ele sugerir: “Por que você não destrói tudo? Já está destruindo as suas ideias, faça o mesmo no material”. Isso deu um negócio na cabeça. Quando se começa a analisar as consequências do mundo da moda, da cultura e do consumismo que temos, sejam ambientais, sociais ou de comportamento, há uma ética envolvida. Então, senti que não só era uma linguagem com a qual eu conseguia me justificar como designer, mas também me entender e explorar o assunto. Quanto mais continuamos esses métodos, seguimos criando técnicas possíveis, coisas que ainda não se viam tanto na área da sustentabilidade.

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

L’O Não dá para negar que a questão do upcycling já virou moda. Com tanta gente trabalhando assim no mercado, como se sobressair? 

DM Concordo com você, até acho que eu nem deveria mais ter que dizer que é upcycling. Essa já deveria ser a maneira de se criar a partir deste ponto da história. É uma questão de responsabilidade e até de ética, como designer. Nosso diferencial é que o foco é técnico. Além da questão material, de trabalhar com o que já existe, o importante é que as peças tenham zero desperdício. Respeitamos muito a questão da produção mais lenta, nossas roupas são únicas. E aplicamos as técnicas de alta-costura em roupas para um ideal de atemporalidade e durabilidade. Não é uma questão de se adequar a uma trend ou a um gênero, mas criar algo que esteja naquela linha tênue de ser um objeto de arte. Trabalhamos muito com tecelagem manual, por exemplo. Pegamos os retalhos, cortamos em tiras e fazemos o nosso próprio tweed. Isso já é muito único, pois aí sabemos que uma peça nunca vai ser igual a outra. Então é uma questão de valorizar esse trabalho manual e a criatividade, além do hype da moda. Nosso ideal é ver esse upcycling como uma maneira real de produção na alta-costura. Ver a Chanel, por exemplo, apresentando bordados assim. Chegaremos lá, um dia. Realmente acreditamos e sonhamos em ser pioneiras nisso.

“PEGAMOS OS retalhos, CORTAMOS EM TIRAS E FAZEMOS O nosso tweed. ISSO JÁ É MUITO ÚNICO, POIS AÍ SABEMOS QUE UMA peça nunca VAI SER IGUAL A OUTRA. ENTÃO É UMA QUESTÃO DE valorizar ESSE trabalho manual E A criatividade, ALÉM DO hype DA MODA. NOSSO IDEAL É VER ESSE upcycling COMO UMA maneira real DE PRODUÇÃO NA ALTA-COSTURA.”

L’O O público final, acha que ele entende esse ideal? 

DM Olha, sim e não. Esse é o tópico que pode ser mais frustrante, pois a maioria do público atraído pelo nosso produto vem mais pela estética do que pela sustentabilidade. E, muitas vezes, quando abordamos o assunto, esse cliente hesita. Por conta de ser tudo feito em Paris, feito à mão, o preço final realmente não é acessível. Então atingimos um mercado de luxo em que há um preconceito claro pela matéria-prima reutilizada. São os clientes que não pensam que, em paralelo, esse mercado não tem a qualidade que as pessoas imaginam – o que há é um marketing ótimo. Se olhar para a matéria-prima de marcas que são caríssimas, esse cliente não sabe que pode estar pagando mil euros por algo que tem a mesma qualidade de uma peça de 100 euros. Sendo muito sincera, estamos aprendendo a como lidar com essa cultura. As pessoas mais novas, da minha idade, ainda seguem a moda hype, os trends muito rápidos. Estamos aqui vivendo o Brat Summer, que fez de repente todo mundo vestir verde-limão. O consumidor mais jovem tem esse ciclo de consumo mais rápido que é completamente contra a sustentabilidade. Ao mesmo tempo, na Europa esse assunto já faz parte da vida cotidiana – separar o lixo, poupar eletricidade, há uma consciência. Em comparação, em março estivemos com a Murmaid em Tóquio durante a fashion week. Por lá, as pessoas se vestem de maneira mais criativa que o europeu – daí houve uma receptividade muito boa. Mas elas não estavam nem aí para a questão da sustentabilidade, era só pela estética. Então, é um equilíbrio… se há esse consumidor que compra pela estética e nos ajuda a alimentar esse sonho, mantendo os nossos valores, por enquanto, está tranquilo. 

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

L’O Vocês gostam de abraçar esse lado educacional? 

DM É mais uma ambição muito grande de criar uma cultura na qual as pessoas se deixem ser educadas por isso. Os consumidores vivem um conflito de querer mais informações, mas, ao mesmo tempo, não. No momento em que a pessoa sabe que aquela roupa que consegue pagar é produzida por trabalho escravo, naturalmente não vai querer se aprofundar nesse assunto – pela condição financeira, afinal, não tem opção. Sobre como são feitas as coisas, o material, a qualidade, a responsabilidade que se deveria ter sobre o consumo. Mas sempre digo que o grande culpado não é o consumidor, é a indústria, o contexto em que ele está.

L’O Na prática, como o trabalho de vocês funciona? Vocês usam só roupas de segunda mão ou também tecidos? 

DM Depende do projeto ou da ideia. Não somos uma marca que faz coleção a cada estação – apresentamos duas vezes por ano, no máximo, e trabalhamos muito com projetos. Por exemplo: em 2022, fizemos um com a Adidas Originals da Alemanha. Eles nos enviaram estoque parado de roupas que tinham pequenos defeitos e seriam destruídas, então trabalhamos com isso. Outro momento foi com a Fred Segal do Japão. Eles queriam um tema militar, então ativamos Dar - ren Romanelli, um colecionador de roupas vintage de Los Angeles que selecionou várias peças para nós. Compramos muito vintage em Paris – se quisermos fazer uma peça de lã, garimpamos nos brechós até achar o máximo de material na qualidade e cor que queremos. Também temos parceria com o Nona Source, uma plataforma patrocinada pela LVMH que vende as sobras de tecidos das maisons por um preço superacessível – e, claro, em quantidade limitadíssima. Trabalhamos bastante com o material de lá.

L’O O processo criativo parte dos dois lados, tanto do design quanto do material, então? 

DM A maioria parte da matéria-prima, muito antes do que o design. Fazemos um exercício que aprendemos com esse nosso mentor: quando começamos um projeto, temos um briefing, nosso desafio é não ter nenhuma referência de moda envolvida. Olhamos para artistas, fotografias, ambientes, produzimos nosso conteúdo criativo. A partir disso, buscamos esse material e dali vêm as cores, técnicas e silhuetas.

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

L’O Não há o momento da frustração, de querer fazer algo e não ter o material certo disponível? 

DM A Murmaid é uma startup, algo grande e pequeno ao mesmo tempo. Então, naturalmente, é difícil de sobreviver. Já tivemos muitas frustrações por não termos o budget para chegar aonde queríamos. Mas, nesses momentos, digo que é quando fizemos as nossas melhores peças. A frustração é parte desse processo criativo. Até as ideias que não dão certo, tudo é caminho para algum lugar. 

L’O Até que ponto um idealismo consegue sobreviver no mundo da moda? Acha que é possível construir um mundo paralelo na indústria? 

DM Acho que, se não fosse, não teríamos tido tanto progresso na área. Mesmo no exemplo do Virgil Abloh: independentemente de gostar ou não das coleções, mas um cara como ele, ao chegar à Louis Vuitton, mostrou que diferentes pessoas e ideias podem alcançar esse nível de relevância cultural. Para mim, a questão de querer ser 100% sustentável, crescer nesse sonho e chegar à alta-costura é algo que soa virtualmente impossível. Pois a moda gira em torno de dinheiro, essa é a verdade. É muito difícil sobreviver só de nicho. Então é sobre quanto se está disposto a abrir mão para alcançar o que se quer. Ao mesmo tempo, se há um sonho, uma ideia, essa utopia é muito importante para seguir como designer. Senão, não se consegue criar e acaba-se perdendo tanto a identidade quanto a motivação. Muita gente se frustra por pensar que nada muda. Mas só o fato de eu conseguir impactar alguém de uma maneira mínima, que vai se interessar por uma peça que às vezes demora 30 ou 40 horas para ser finalizada e fazer essa pessoa respeitar o processo criativo, já é algo.

L’O Um mundo dos sonhos: trabalhar na alta-costura? 

DM Sim. Nem por uma questão de ser diretora criativa de uma casa ou algo assim. Mas amaria estar na área de fabricação material de uma Chanel, Dior ou Givenchy, trazendo a materialidade e as técnicas que trabalho para desenvolver a criação de outros designers. Isso, sim, é um sonho.

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Uma pincelada das criações do duo à frente da Murmaid: projetos diversos, coleções sem temporada e um foco especial no reuso de matérias-primas através do handmade - Foto: Divulgação.

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