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Clarice Falcão fala sobre a criação de Truque, seu novo álbum

Diferente, consistente! Truque, novo álbum de Clarice Falcão, acompanha mais uma das trocas de pele da cantora e atriz.

Clarice Falcão
Clarice Falcão

Desde que colocou seus olhos azuis e cabelos castanhos sob os holofotes – dos palcos, das câmeras, das telas e das redes sociais –, há mais de uma década, Clarice Falcão tem se provado uma exímia e resiliente performer, daquelas que parecem trocar de pele na frente do público, tanto aquele ávido para exaltar seu ídolo quanto aqueles prontos para achincalhar qualquer uma de suas novas aventuras artísticas, um pequeno exército de haters sempre prontos para trabalhar na missão falha de tentarem destituir a estrela de sua posição já conquistada.

No relógio imaginário da fama, dez anos talvez marquem a primeira “linha de chegada” de qualquer um que se proponha a jogar o jogo da vida pública, ao mesmo passo em que busca exercer seu trabalho artístico. No caso de Clarice, sua trajetória até aqui foi marcada por uma sabedoria exímia no caminhar pela corda bamba que conecta os extremos da fama: sucesso, fracasso, ápice, frenesi, depressão. Seja cantando, seja atuando ou demonstrando outro de seus muitos talentos ainda guardados, ou já explorados, Clarice nunca deixou de encarar os desafios de tal vida, que muitas vezes aparecem como um verdadeiro obstáculo para o exercício pleno de seu trabalho.


Recentemente, dez anos depois do lançamento de seu disco-fenômeno
Monomania, Clarice Falcão pôs no mundo Truque, seu quarto álbum de estúdio, deliciosamente complexo, cujas canções inéditas encaram a passagem dessa década que separa suas duas obras. Em seu disco atual, convivem tanto as rupturas que houveram de lá para cá quanto, especialmente, confirmam-se as permanências e reincidências da personalidade artística da cantora.


“As pessoas diziam muito que mudei, que eu sigo mudando. E eu acreditava muito nisso, de que eu tinha mudado muito de dez anos para cá. Sempre falava em entrevistas: ‘estou totalmente diferente’. Às vezes, quase enxergava a Clarice de antes como uma pessoa de fora, como se eu tivesse tomado meu próprio corpo”, dispara, refletindo sobre como se entende e como vê a si mesma, atualmente.

“Outro dia fiz uma live em comemoração aos dez anos do álbum Monomania e aí fui escutar as minhas músicas antigas e a verdade é que eu me identifico com todas elas ainda. Sinto que me colocam em um lugar que não era o meu exatamente. A coisa da Clarice ingênua, vulnerável... eu nunca fui ingênua! Sempre tive consciência das minhas próprias paixões, da minha própria loucura, da minha idiotice e até da minha própria crueldade”, reflete.


Durante nossa conversa, Clarice não economiza na sinceridade – como de costume, diga-se, seja em suas entrevistas, seja falando diretamente com seu público nas redes sociais ou até mesmo ao vivo, em um encontro fortuito com a cantora, figura fácil de se esbarrar, por exemplo, na noite do Rio de Janeiro, entre um drinque e outro, procurando a próxima festa para aportar junto de sua entourage de amigos.

“Acho que a gente começa a entender que vai crescendo e descobrindo mais de si. É como se existisse uma cidade oculta dentro da gente, coberta de areia e aí você vai desenterrando as coisas que sempre estiveram lá. Tudo o que eu cantava e dizia há dez anos continua aqui. Mas desde então já desenterrei muitas outras coisas também”, conclui, vislumbrando o horizonte futuro.


Um tanto aconteceu nessa movimentada década: após ser alçada à fama massiva por seu trabalho como atriz e comediante junto da turma do
Porta dos Fundos, Clarice ainda se tornou uma espécie de emblema da “garota possível” do imaginário coletivo brasileiro. Bonita, mas não tão bonita a  ponto de nos intimidar; engraçada e capaz de rir de si mesma, qualidade rara nas jovens starlets do circuito; e, sobretudo, é transparente o bastante para dividir com o mundo externo o que se passa dentro de si mesma.

Clarice Falcão

Foi assim, por exemplo, que Falcão encarou o início e o fim de um relacionamento amoroso (com o ator Gregório Duvivier, com quem teve um relacionamento de cinco anos), acompanhado atentamente pela mídia, pelos fãs do casal e até por aqueles que nem costumam transitar pelas páginas de fofocas de celebridades. Seu relacionamento seguinte, com o jornalista e apresentador Guilherme Guedes, já ultrapassou os anos de duração do casamento com Duvivier. A escolha por uma vida discreta, distante dos holofotes tacanhos dos tabloides e da vigilância constante das redes sociais, talvez seja o ingrediente que alimenta a consistência da relação, inabalável após os últimos oito anos desde que se conheceram.

“Se saio à noite, eu oscilo muito entre achar que as pessoas estão me olhando e sentir que eu não sou ninguém, que não estão nem aí para o que eu sou. Sou muito mais feliz acreditando na segunda opção, aliás”, ri de si própria, como de hábito. “Depois de já ter me separado (de Duvivier), eu saí com o Guilherme em um dos nossos primeiros dates e filmaram, saiu em um site ‘Clarice Falcão com um moreno misterioso’. É horrível, você se sente mal”, diz. “Porém se você não se permite viver as coisas, se sente muito pior. Eu prefiro me arriscar e aparecer onde for a me trancar em casa ou, sei lá, ir só a eventos cheios de pessoas famosas. Pois aí as pessoas sentem um conforto grande, ninguém está olhando, você é só mais um. Eu não quero acabar me inserindo numa bolha e perder a referência do que é a vida.”

O primeiro single do novo álbum – a ótima e dançante balada Chorar na Boate – praticamente ilustra os pensamentos de Clarice. “Essa é pra eu chorar na boate / Enquanto tiver o que chorar / Enquanto tiver eu/ Essa é pra eu chorar na boate / Enquanto tiver boate / enquanto tiver eu”, canta, sob as afiadas batidas eletrônicas concebidas por Lucas de Paiva, músico carioca que, mais do que um parceiro, revelou-se um fiel escudeiro da cantora, em tudo aquilo que envolve música em sua carreira.

A escolha pelo single como a música carro-chefe do lançamento do álbum revela a força sintética da composição. Parece estar tudo lá, intacto, de Monomania ao seu atual Truque: a capacidade de rir de si mesma, de chorar ao mesmo passo que se esgota de dançar, de ser resiliente mesmo quando o mundo parece estar desabando.

“Eu já chorei na boate muitas vezes, não é só uma força de expressão, é quase um estilo de vida para mim”, afirma, entre risadas tímidas e ácidas. “Eu acho que a festa é um dos lugares mais vulneráveis que existe, está todo mundo aberto ali. Eu amo me apaixonar, amo estar totalmente presente e me emocionar, me jogar, me abrir para amar e para sofrer. Isso me deixa completamente vulnerável.”

Tamanha é a sinceridade do discurso de Clarice que dificulta decifrar o “truque” que a artista elege para intitular seu novo álbum. “Já chorei por tristezas profundas, já vi a pessoa que eu gosto com outra, já vi um amigo que amo e de repente vocês dois não têm mais nada a ver. Mas também já chorei muito de felicidade na pista de dança, de sentir ‘esse é o dia mais feliz da minha vida, esse é o momento, é hoje’, vou chorar de felicidade.”

“Já fui de um extremo ao outro, conheço bem as duas pontas”, reflete, ao passo que nos dá pistas de que seu truque não seja exatamente um daqueles jogos de mágica ou ilusionismo que busca esconder do observador a verdade por trás da execução ordinária deste. Talvez o maior truque de Clarice seja um realizado às claras, diante de qualquer observador que deseje vê-lo, sem filtros ou mediações que o protejam.

Ao mesmo passo em que chora e ri – nas pistas de dança da vida, em sua vida íntima ou na partilha de afeto que direciona ao seu público fiel –, a artista nos permite ver através de sua própria persona, razão pela qual, talvez, em um universo banhado pela superficialidade e rarefeito em integridade artística integral, Clarice executa seu truque de permanecer a bailar, aos prantos e aos risos, sem que tenha medo das lentes e dos olhos que a dissecam, por todos os lados.


É logo após este rito público de exorcização e exposição de seus medos, angústias, fracassos e da consciência de seu sucesso, da beleza da vida, do valor do amor e da amizade que há dentro dela, que a estrela prepara uma nova pele a ser vestida – não tão diferente da anterior, nada que pareça que de repente Falcão está nos
trollando com um truque faceiro. Clarice joga limpo e assim seguimos a jogar com ela.

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