Tocando em frente: Pantanal pode ser o seu próximo destino
Dividido entre os estados brasileiros de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (além de parte da Bolívia e do Paraguai), o Pantanal é um bioma que se estende por cerca de 210 mil quilômetros quadrados. Desses, 151 mil quilômetros quadrados estão em solo nacional. Maior planície alagável do mundo, o território funciona com um regime de águas fracionado em quatro ciclos, capaz de transformar as paisagens e ditar o cotidiano de quem vive por lá. Na primeira fase, a da cheia, que ocorre entre dezembro e março, os rios transbordam e invadem quase dois terços da área, deslocando as pessoas para as cidades vizinhas.
Ao mesmo tempo, a estação acolhe tuiuiús (ave-símbolo do Pantanal), garças, cabeças-secas e outros pássaros aquáticos que buscam esse tipo de região, bem como mamíferos, que se espalham pela vegetação exposta nos trechos mais altos. Com a chegada de abril, a vazante muda a geografia – a partir da formação dos morros e dos pequenos rios, os corixos –, trazendo de
volta queixadas e catetos, também chamados de porcos-do-mato, cujos hábitos alimentares são essenciais para a dispersão das sementes das plantas. Ideal para desbravar os segredos dessa terra, a seca estende-se de julho a outubro, acompanhada pela floração das árvores, pela cantoria dos pássaros em período reprodutivo e pelos animais atraídos pelos cardumes que lotam as lagoas. Antas, capivaras, quatis, tamanduás-bandeira, cervos-do-pantanal, jaguatiricas, veados-catingueiros e macacos povoam o lugar e enchem os olhos dos moradores e dos turistas interessados na vida selvagem. É o caso dos grupos que visitam o Refúgio Ecológico Caiman, localizado no município de Miranda, em Mato Grosso do Sul.
As atividades que acontecem no espaço – pecuária extensiva de corte, ecoturismo e geração de conhecimento – constituem o que a companhia denomina de “ciclo sustentável”, por meio da ampliação das oportunidades de emprego, do aumento da qualidade de vida dos pantaneiros e da valorização das tradições locais. Fundada em 1912 com o nome de Miranda Estância, a propriedade da família de Roberto Klabin funcionou como fazenda de criação de gado tradicional até 1985, quando o empresário herdou do avô uma parte dela, convertendo uma área de 53 mil hectares em rota de lazer e educação ambiental. As mais de três décadas de experiência contribuíram ainda para a composição de um serviço de alto padrão, cuja estrutura de hospedagem reúne três instalações absolutamente integradas à natureza – Pousada Baiazinha, Pousada Cordilheira e Casa Caiman, essa última formada pela Antiga Casa da Fazenda e pela Casa do Proprietário –, que totalizam 26 acomodações contornadas por varandas e árvores frutíferas.
Soltos a voar, passarinhos...
No trajeto para minha pousada, fui recepcionada por milhares de pequenas borboletas amarelas, que abriram espaço para o carro passar. De quebra, mais um belo presente de boas-vindas: uma linda e desconfiada onça-parda cruzou calmamente a estrada.
Pouco depois da chegada, os caimaners, guias naturalistas do hotel especializados no bioma do Pantanal, e as equipes de guias de campo, que incluem nativos e moradores treinados para esse tipo de excursão, nos falaram das atividades disponíveis. Contam-se rotas para bikers, focagem noturna de animais, passeios de canoa canadense no pôr do sol, circuitos em carros adaptados para registro fotográfico, caminhadas, observação de aves entre trilhas repletas de árvores centenárias e visitas às comunidades, entre outras atrações. A programação, é importante dizer, segue as variações do clima e pode ser alterada sem aviso prévio.
As atividades acontecem de manhã e à tarde. Durante a hora do almoço, entre uma aventura e outra,o hóspede é convidado a relaxar na pousada, desfrutando um belíssimo cenário no qual pode escolher relaxar na piscina ou simplesmente deixar o tempo passar na rede ou em algum canto aconchegante. Na programação, fui convidada também a conhecer as técnicas de manejo do gado, uma atividade típica pantaneira há mais de 200 anos. Logo ao raiar do dia, presenciei um verdadeiro espetáculo, no qual 700 cabeças de gado foram habilmente transferidas pelos vaqueiros, ao som do berrante, de uma invernada (pasto) para outra. Logo depois experimentei o tradicional café da manhã regional, o famoso quebra-torto, na casa do senhor Domingos e da dona Elisangela, moradores antigos da região.
Café fresco, tereré (bebida à base de erva-mate), arroz carreteiro, mandioca frita, acompanhada de bolo quente e queijo fresco, foram parte do cardápio que embalou minha manhã emocionante. Em uma das noites, um típico churrasco pantaneiro também foi oferecido no Galpão dos Peões, próximo à sede da fazenda. Em meio à natureza, entre a sinfonia dos animais noturnos (com direito a vocalizações de onças que passeiam livremente pela região) e de violeiros, milhares de vaga-lumes se mesclaram com as estrelas. Um programa inesquecível, uma verdadeira imersão na cultura pantaneira.
Durante a estadia, pude conhecer e participar do dia a dia, do trabalho de campo de duas iniciativas importantíssimas, apoiadas pela Caiman, que fazem bastante sucesso entre os hóspedes. Na primeira delas, o Projeto Arara-Azul, acompanhamos o rastreamento dos filhotes e o atendimento dado às aves adultas por biólogos e demais especialistas. Criado e coordenado pela professora-doutora sul-mato-grossense Neiva Guedes, o centro pesquisa a biologia e as relações ecológicas da arara-azul-grande e estuda as espécies que coabitam com ela nesse meio, das araras-vermelhas aos tucanos, gaviões, patos-do-mato e corujas.
Em pouco mais de 30 anos, o projeto cadastrou quase 800 ninhos, naturais e artificiais, em 65 propriedades do entorno. Os cerca de 1.600 monitoramentos realizados anualmente na porção brasileira do Pantanal indicam que a população de araras-azuis esteja em aproximadamente 5 mil indivíduos. Essa conta, claro, vem sendo recalculada após o fogo destruir 23% do bioma no ano passado, causado pelos 22.116 focos de incêndio registrados pelo Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em entrevista ao National Geographic Brasil, a professora-doutora comentou que varreduras preliminares feitas nas áreas onde elas se reúnem sugerem que boa parte conseguiu manter-se a salvo. Um dos desafios daqui para a frente está na alimentação, já que as palmeiras de bocaiúvas – matéria-prima da dieta das araras – também arderam nas chamas.
Grandes jornadas
Outro animal ameaçado nesse tsunami incandescente foi a onça-pintada, maior felino das Américas, que precisou escapar dos focos de calor que alcançaram 80% do Parque Estadual Encontro das Águas, em Mato Grosso. Resgatadas pelas equipes de salvamento, muitas delas tiveram as patas queimadas e precisaram ser tratadas com células-tronco, sem garantia de reinserção na natureza. No workshop com os monitores do Onçafari, outra das parceiras da Caiman, vimos que a luta pela sobrevivência faz parte de sua história. Veneradas pelos nativos do continente e personificadas em inúmeras divindades incas, elas passaram a ser ameaçadas com a chegada dos europeus. Nos anos de 1950 e de 1960, para se ter uma ideia, de 15 mil a 18 mil indivíduos eram mortos todos os anos para suprir o comércio de peles.
“Hoje, os dentes e os ossos são enviados de forma ilegal para o mercado asiático, onde serão utilizados como amuleto”, explica o monitor, que continua: “Lá quase extinguiram o tigre, e como agora é muito difícil encontrá-lo, os caçadores voltaram seu interesse para as Américas atrás das onças-pintadas”. Por aqui, a modificação dos ecossistemas nativos em campos para a pastagem e para a agricultura, bem como o abate daquelas que atacam os rebanhos das fazendas, estão entre os maiores problemas dos felinos. No período anterior às queimadas, a Wildlife Conservation Society (WCS) estimava que 5 mil onças vivessem no Pantanal.
Idealizada por Mario Haberfeld, ex-piloto de Fórmula 1, a Onçafari iniciou os trabalhos em 2011, depois que o paulistano trocou as pistas de corrida pela conservação da vida selvagem.
“O termo que dá nome à organização é uma junção de ‘onça’, da onça-pintada, e ‘safári’, palavra de origem africana, do idioma suaíli, que significa ‘jornada’ ou ‘grande jornada’.” Essa experiência
de observação levada ao Pantanal – denominada de habituação – remete aos acampamentos instalados na África, como os vistos na rede de luxo Wilderness Safaris, em que as pessoas percorrem trajetos em veículos adaptados para avistar leões, elefantes, rinocerontes e girafas bem de perto. O Refúgio Ecológico Caiman, por sua vez, recebe muitos visitantes de outros países, alguns vindos de passeios feitos na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná. Entre os brasileiros, a maior parte é de São Paulo.
A parceria desses empreendedores ambientais já demonstra ótimos resultados. Só na década em que a Onçafari passou a atuar no refúgio, houve um aumento de 270% no número de hóspedes. Nesse período, foram contabilizados mais de 3.400 avistamentos de onças e, em 2019, 98% dos aventureiros disseram ter visto ao menos uma delas. Sem perder tempo, a organização levou sua expertise para o Cerrado, para a Amazônia e para a Mata Atlântica, onde são feitos o monitoramento e a reabilitação de onças-pintadas e de lobos-guará. Somados a eles, outras espécies são preservadas pela entidade, como onças-pardas, bugios-pretos, ariranhas, jaritatacas, gatos-mouriscos e tatus-canastras. Por fim, lembrando a etapa que fecha o ciclo das águas do Pantanal – a das chuvas –, espera-se que as nuvens trazidas pelo vento nos meses de novembro e de dezembro tenham abastecido um tanto do Rio Paraguai e dado condições para uma nova temporada de recuperação.