Arte

Masp abre caminho para situar a arte produzida por indígenas

Com quase 300 obras de artistas ao redor do mundo, mostra no Masp abre caminho para situar a arte produzida por indígenas em lugar de destaque

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Duhigó (São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Brasil, 1957) Nepu Arquepu [Rede Macaco], 2019 - Foto: Edson Kumasaka.

Com quase 300 obras de artistas ao redor do mundo, mostra no Masp abre caminho para situar a arte produzida por indígenas em lugar de destaque. Confira!

O Masp está de mudança em 2023, para melhor. Enquanto o prédio ícone desenhado por Lina Bo Bardi segue no mesmo lugar, seus interiores passam a ser ocupados por perspectivas bem diferentes de arte — e de mundo.

Dia 20 de outubro marca a abertura de três novas exposições que finalizam a programação do ano, dedicada exclusivamente à produção de pessoas nativas. Melissa Cody, de origem diné/navajo, ganha individual com suas obras têxteis contem - porâneas que reveem símbolos da sua cultura, enquanto a sala de vídeo exibe Quando o manto fala e o que o manto diz, documentário inédito dirigido por Glicéria Tupinambá e Alexandre Mortágua sobre a relação dela com a produção e a história dos mantos tupinambás.

 

Enquanto isso, outros dois andares são ocupados até maio de 2024 pela coletiva Histórias indígenas: um imenso esforço coletivo que reúne quase 300 obras de 170 artistas vindos de territórios diversos ao redor do mundo. Um momento histórico, ainda que tardio — não por culpa isolada do museu, mas do ecossistema social e artístico como um todo, que sempre focou em uma visão eurocentrada (e branca) dos fazeres de arte enquanto classificava tais produções como mera antropologia.

 

Essa correção de olhares reflete muito de um interesse atual do mercado institucional e de galerias (a Bienal de São Paulo, aberta há pouco, está aí para reforçar) pela produção indígena. Mas é circunstância que não veio de graça, e sim por esforço dos próprios. A mostra é cocurada por Edson Kayapó, Kássia Borges Karajá e Renata Tupinambá, curadores-adjuntos de arte indígena do Masp, além de uma série de nove curadores estrangeiros que ajudaram a pensar no conjunto.

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Acelino Tuin Huni Kuin, Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU) (Aldeia Chico Curumin, Acre, Brasil, 1996, vive em Terra Indígena Alto Rio Jordão, Acre, Brasil). Kapewë pukeni [Jacaré-ponte] , 2022 - Foto: Daniel Cabrel.

Dividida em núcleos, cada um faz um panorama específico sobre povos que costuram um imaginário coletivo, ainda que único: do território brasileiro, falando sobre entendimentos de temporalidades, passando por nativos do canadense, mexicano, australiano, norueguês, peruano e neozelandês, representado pela cultura maori e seu esforço para perdurar uma cultura minada pela colonização. A última sessão, conjunta, reflete sobre o ativismo incessante (e comum entre todos) pela defesa de seus territórios físicos e culturais. L'OFFICIEL conversou com Renata Tupinambá sobre o processo.

 

L’OFFICIEL Como você enxerga esse fluxo recente de interesse pela arte indígena?

RENATA TUPINAMBÁ Os artistas, realizadores, comunicadores e curadores indígenas têm feito um movimento intenso pelo reconhecimento das artes indígenas. Esse movimento coletivo tem gerado a conquista de espaços que antes eram fechados para essas produções, ou que não eram reconhecidas como arte de grande importância. As produções indígenas sempre foram vistas como inferiores — a falta de entendimento, respeito sobre as culturas e muitas generalizações ainda ocorrem em vários lugares. O atraso pelo reconhecimento dos profissionais indígenas vêm por questões históricas que fazem parte do processo colonial no Brasil: apenas em 1988, com a Constituição Brasileira, indígenas passaram a ser vistos como cidadãos.

 

L’O Qual foi o critério para trazer tantas histórias e povos diferentes sem cair no que o olhar leigo pensaria como uma “mostra etnográfica”?

RT A ignorância da visão apenas eurocêntrica sobre as artes limita muito todas as possibilidades e pluralidades existentes. Entender que a humanidade é plural, de muitos povos, é essencial para o exercício da alteridade. Os critérios para escolha das artes passam por um entendimento de suas cosmologias, universos culturais e a potência da mensagem que cada um traz mas, principalmente, as diferenças entre si, regionais e étnicas. Estamos falando de algo muito além da arte para a maioria destes povos: estamos falando também de educação, saúde, histórias e tantas outras coisas. A arte indígena contemporânea contribui muito para a quebra de estereótipos, de que está apenas no passado ou por meio de peças apenas tradicionais.

 

L’O Como foi pensada a equipe que construiu a mostra?

RT O time de curadores do Masp veio através da indicação dos próprios artistas e curadores indígenas. Poucas pessoas sabem que isso foi uma decisão de uma coletividade, em diálogo também com a primeira curadora indígena [Sandra Benites]. Daí chegou-se aos nomes que, por esse diálogo, foram apresentados à direção do museu, que respeitou a decisão. Inclusive a presença dos três curadores, e não apenas um, veio dessa demanda coletiva.

 

L’O Qual foi o ponto de partida do time curatorial para reunir perspectivas diferentes ao redor do globo, a partir de uma existência em comum?

RT Pensar os temas do nosso tempo tão atemporal, e o que muitos artistas estão querendo mostrar sobre suas artes, realidades e culturas. Um pouco do grito de cada recorte valorizando a diversidade em um diálogo com o passado, presente e futuro materializado no agora. Todas as pessoas que pertencem a um povo trazem consigo a continuidade de uma identidade coletiva, apesar das subjetividades de cada um. É essa identidade, esse outro lugar de pensamento no mundo, que é tão valioso. Esse compromisso passado de geração em geração. Não existe nada mais revolucionário e moderno do que ser originário. Eu vim de uma cultura milenar e que sobreviveu por séculos, adequando-se aos contextos históricos, por pertencer a uma cultura viva e não congelada.

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Sandy Adsett (Raupunga, Nova Zelândia, 1939). Koiri Series, 1981 - Foto: Jennifer French, Cortesia de Auckland Art Gallery Toi o Tamaki, Nova Zelândia.

L’O Penso que a própria classificação sobre o que é arte tem suas nuances, quando falamos sobre uma produção que aconteceu em paralelo à dita história da arte, comumente branca e europeia. Haveria um esforço recente em encaixar essa produção nos moldes institucionais?

RT O mercado de arte precisa sair das caixas estabelecidas, do padrão, e as instituições também precisam se adequar para que não sejam espaços excludentes e racistas, que atendam apenas a uma elite, reduzindo a arte a algo muito restrito, pouco abrangente, fruto de perspectivas aprisionadas não livres. Encaixar-se num formato não pode ser jamais o objetivo dos artistas indígenas — muito pelo contrário, os espaços é que precisam aprender a respeitar os artistas.

“TODAS AS PESSOAS QUE pertencem A UM POVO TRAZEM CONSIGO A continuidade DE UMA IDENTIDADE coletiva, APESAR DAS subjetividades DE CADA UM. É ESSA identidade, ESSE OUTRO 
LUGAR DE pensamento NO MUNDO, QUE É TÃO VALIOSO. "

L’O Há fatores (estéticos ou de pensamento) em comum no que foi produzido sob realidades tão distintas que faça possível traçar um fazer indígena de arte? Ou diria que esse é um pensamento que force essa produção a novamente ficar isolada em uma caixa própria, apartada do todo?

RT As artes indígenas não estão isoladas, embora a todo momento o mercado tente segregar por não conhecer de fato. É importante o entendimento de que um artista que é indígena produz algo muito além, não cabe em rótulos. Mas o público precisa entender que aquele profissional vem de uma cultura que foi massacrada pela colonialidade, é nesse momento que as artes indígenas se transformam também numa retomada e em uma mensagem de que existimos, estamos vivos e realizando. Não queremos mais ser reféns ou objetos do colonizador.

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Clifford Possum Tjapaltjarri (Alice Springs, Austrália, 1932 – 2002). Bush-fire II [Incêndio silvestre II], 1972 - Foto: National Gallery of Australia, Compra, 1994 Camberra.

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