Chef Andrea Kaufmann conversa exclusivamente com a L'Officiel
Cá está! Após uma temporada em Portugal, a chef Andrea Kaufmann está de volta a São Paulo e transborda de felicidade ao contar do seu novo projeto AK Deli que perpetua sua vontade de enaltecer a comida judaica no país.
Conheci o trabalho da Andrea Kaufmann em 2010 - se não me falha a memória – no seu AK Delicatessen da Rua Mato Grosso, em São Paulo. Eu me lembro de subir a sinuosa escada dessa charmosa casa do bairro de Higienópolis e sentar em uma das mesas do primeiro piso; me recordo dos sabores genuínos e confortáveis que chegaram à mesa, da chef circulando pelo salão e das notícias subsequentes na mídia especializada com diversos prêmios e homenagens. Um tempo depois, houve uma mudança de endereço para o bairro da Vila Madalena e o nascimento da marca AK Vila, um outro restaurante que durou bons anos até Andrea decidir vender. Durante um tempo nunca mais ouvi falar do seu trabalho, até um belo dia – ou melhor, uma bela noite. Num jantar inesperado – são sempre os melhores –, estávamos reunidos ao redor da generosa mesa da chef brasileira Ana Luiza Trajano, na sua casa, em Lisboa. Um rosto me parecia tão familiar que em poucos segundos a ficha caiu. Era ela mesmo, a famosa e sumida Andrea Kaufmann. Puxamos um papo gostoso e pude entender sua história familiar, sua identidade culinária, traços de sua intimidade e seu momento de vida. Andrea escolheu sair do Brasil para usufruir de um merecido respiro para dedicar mais tempo às suas filhas e realizar um desejo de exercer sua profissão de um jeito diferente, num país diferente. No seu tempo para pensar, que às vezes faz-se necessário e frutífero, ela decidiu prestar consultorias e fazer eventos menores. Tudo no seu ritmo, respeitando suas vontades. Quem dedica a vida à gestão de restaurantes sabe da exaustão repetitiva causada pelos desafios decorrentes desse métier. Mas sabe também da paixão contagiante e da vontade perpétua em compartilhar sua comida, receber e fazer as pessoas felizes. Depois de uma temporada tranquila de três anos em Portugal, com 46 anos e num espírito de plenitude e realização, Andrea está finalmente de volta a São Paulo e cheia de energia para compartilhar. De volta às raízes mais profundas, de volta à sua casa, suas origens e, claro, próxima de sua mãe. Nada melhor como movimento de vida: ir e vir, viajar e voltar. Radiante e feliz, ela está prestes a lançar seu novo endereço na cidade, uma deli com certa inspiração nova-iorquina e bastante bossa. Numa tarde de um sábado ensolarado, dei um pulo na obra para entender melhor o projeto, e ouvir dela a inspiração que motivou essa reconstrução e reconexão. No Alto de Pinheiros, num lugar que transborda luz, para nossa felicidade e de todos que apreciam a comida judaica, a belíssima novidade AK Deli chegou no mês de junho com um formato misto deli-café e um cardápio bem diverso. Com maturidade, o projeto é fruto do trabalho consistente e do amor de uma chef que sempre marcou os paladares paulistanos com sua delicadeza e sinceridade. Enquanto não provamos tudo, vamos ler seus pensamentos...
L’OFFICIEL Qual é sua relação íntima com a sua alimentação e a da sua família?
ANDREA KAUFMANN A minha relação com a alimentação é gostosa! Não sou de fazer dieta e gosto de comer com prazer, atenção e devoção. Costumo dizer que atrás de todo cozinheiro tem um grande comilão (risos). Por isso não desperdiço refeição, prefiro não comer nada a comer qualquer coisa. Isso quer dizer, como pratos estranhos em horários estranhos. Por exemplo, amo peixe e o incluo até no café da manhã.
L’O O que se come na mesa da família Kaufmann?
AK Meus filhos comem bem, a base da nossa alimentação noturna em casa é sopa, um belo caldo com legumes, carne e frango. Além disso, amamos massas e saladas. Minha mãe sempre cozinhou muito bem e de forma muito prática, então eu herdei dela essa característica de não me complicar muito na cozinha caseira. Gosto de optar por algo simples e saudável.
L’O Qual a importância de suas raízes, cultura, religião e origem na sua cozinha?
AK Os encontros de família são ao redor da mesa. Algumas sextas-feiras, dia de Shabat, são na casa da minha mãe e outras na minha casa. Essa relação entre mãe e filha é muito peculiar, porque eu sou mãe e eu sou filha. Mas na casa da minha mãe sou totalmente filha, e nas festas, quem cozinha é ela. Gosto de ser cuidada e que cozinhem para mim, para desfrutar desse tempo à mesa. A importância das minhas raízes, da minha cultura e da minha religião na minha cozinha é total. Primeiro a gente parte do pressuposto que esse povo viveu em guerra, então é uma cozinha que tenta evitar o desperdício, não é muito luxuosa – faço uso abundante de batata, cebola caramelizada, miúdos, ovos – mas invariavel- mente reconfortante e nutritiva. Também pode ser alegre e colorida quando falamos da comida judaica que vem do Oriente Médio, com suas saladas ultracoloridas e o uso do azeite. Outra marca dessa cozinha de conforto são os caldos, considerados a penicilina judaica.
L’O Quais são suas comidas reconfortantes da infância?
AK Bom, as comidas mais reconfortantes na minha vida são os consomês. Sou conhecida na família como Maria Sopeira. Se acompanhar a massa então, como um bom capeletti, eu estou no céu. Amo varenikes, spaghetti, capeletti. Além disso, sou uma foca. Amo tudo do mar. Também tenho memórias afetivas com as delis de NY, porque a minha família ia com uma certa frequência para lá, e entrar nas delicatessens era muito emocionante com aquela mistura maravilhosa de aromas e mix de pratos encantadores. Minha escolha: o Bagel Lox, e ao comer tenho memória afetiva desses bons momentos.
L’O Agora, quais são suas receitas preferidas como chef?
AK As comidas que me representam profissionalmente são por exemplo o nhoque de berinjela defumada servido sobre cama de tahine e tomates salteados, ou o varenikes de batata-doce com creme de haddock, amêndoas e dill. Tem também o pastrami, o salmão gravlax, a salada de batata e, claro, o sanduíche de pasta de ovos.
L’O Como define sua profissão, como enxerga o métier de chef?
AK Eu acho que o chef deve ser um profissional plural, com uma função social, que acolhe e ensina às pessoas o seu ofício. É um professor, um pesquisador e um empreendedor quando consegue juntar as forças necessárias para ter seu projeto e saber formar times. Ah, claro, e tem que ser bom na cozinha!
L’O Seus restaurantes em São Paulo sempre foram um suces- so, por que fecharam?
AK O primeiro restaurante fechou por que eu estava num lugar muito pequeno e teve uma uma questão de um aumento insustentável no valor do aluguel. Nesse momento, era a oportunidade que a gente tinha de crescer, então fomos para esse segundo endereço na Vila Madalena e abrimos o AK Vila que foi um grande sucesso por cinco anos. Em 2015, decidi encerrar um ciclo. Considero que a vida de um restaurante dura enquanto ele conta uma história. Ele existiu no tempo que ele tinha que existir, nenhum dia mais, nenhum dia menos. Eu precisava mesmo era cuidar da minha vida pessoal e por isso decidi vender.
L’O Quais são seus restaurantes favoritos no mundo?
AK Logo penso em Nova York, onde há um restaurante que fica na Charles Street chamado Mary’s Fish Camp. Lá é um lugar de frutos do mar especializado em lobster roll. Simples, descompromissado e delicioso. Ainda em NY, me inspiro no Russ and Daughters, que não é um restaurante e sim uma delicatessen para comprar peixes, ovas e bagels. Também amava um lugar chamado Prune, da chef Gabriela Hamilton, que fechou, mas era uma festa. Em Paris, o meu restaurante favorito é L’Ami Jean, mas também amo entrar nesses bistrôs mais modernos e curtir a sazonalidade dos menus. E tem o Clamato, que eu amava mesmo sem ter pisado nele. Depois que conheci, gostei ainda mais... Tem também um restaurante em Buenos Aires chamado Sudestada, com comida do sudoeste da Ásia. Em Portugal, eu amo as tascas mais “toscas”. Quanto mais simples e familiar, melhor. Portugal me ensinou muito sobre uma cozinha acessível e simples. Lá a simplicidade é levada ao pé da letra.
L’O Falando em Portugal, o que motivou você a se mudar para Lisboa?
AK A experiência de morar em Portugal foi muito interessante, me mostrou como é a sensação de ser estrangeiro em um país e me ensinou também como é ser minoria. Isso para mim foi muito transformador. Por motivos familiares, eu acabei voltando um pouco antes do que o previsto, mas foram três anos lindos. Claro que no começo a adaptação foi complicada e essa sensação de estar longe deixa você fora do lugar. Mas com o tempo eu fui invadida por um sentimento de gratidão. Parece que Portugal me devolveu o trabalho com oportunidade, com a possibilidade de exercer a minha profissão em outro país de um jeito diferente. Sem equipe como eu tinha, mas, sozinha, era obrigada a fazer tudo do começo ao fim como personal chef, por exemplo. Isso me deu muita força como cozinheira.
L’O Por que decidiu voltar ao Brasil?
AK Eu antecipei um pouco a volta da minha estadia em Portugal por conta da minha família mesmo. Minha sogra precisava da nossa ajuda e os meus pais queriam aproveitar de um tempo com os netos ainda jovens. Ao morar fora você abre mão do dia a dia, né? O ano vai passando e os aniversários, as festas, os encontros, tudo isso você vai perdendo... O tempo não volta. Se família é tão importante na minha visão, ficar longe dos meus era duro demais. Mas pessoalmente foi uma experiência mágica.
L’O Você está prestes a inaugurar no bairro Alto de Pinheiros em São Paulo, conte mais sobre isso.
AK Vou abrir uma delicatessen com uma inspiração nova-iorquina com muito peixe e um grande salad bar. Vamos ter salmão defumado, gravlax, peixes e carnes curados, vários tipos de picles, sanduíche de pasta de ovo, bagels, homus, coalhada, queijo de búfala, de cabra, diferentes tipos de tomates e, claro, muito caldo delícia e boas massas... sem esquecer do cheesecake que amo. Esse novo projeto vai se chamar AK Deli. É uma loja onde se vende comida boa e prática, com pratos tipicamente judaicos e outros mediterrâneos. Estou gestando a criação desse projeto há um bom tempo. Quero oferecer produtos de muita qualidade, como os já citados, para trazer praticidade e amor para as pessoas. Também vai ter uma boa máquina de café com um blend desenvolvido com a nossa marca, o que vai contribuir para uma ambiente acolhedor na loja.
L’O Depois de décadas de ofício, você se sente bem mais segura em tudo que faz?
AK Voltar a ter um negócio me coloca em uma rotina interessante. Por gostar muito de rotina, e acreditar que quanto mais estabelecida, organizada e direcionada for a nossa rotina melhor a gente cozinha, então eu quis estabelecer uma cozinha de produção em que eu pudesse exercer esse dia a dia que é cuidar cedo das compras, organizar e processar os alimentos, vendê-los de forma calma e recorrente, organizar as informações pós-venda e pós-serviço para afinar e melhorar no dia seguinte.
L’O Qual é seu propósito de vida?
AK Engraçado esse papo de propósito... A gente pode pensar e passar horas falando sobre isso, mas acho que cada pessoa tem um propósito íntimo e quanto mais a gente se aproxima dele, consegue pensar, falar e agir coerentemente. E com isso tá tudo certo. Eu sou muito família, gosto muito do dia a dia e da rotina. Ter uma vida profissional é parte disso. Minha mãe me ensinou que cada pessoa tem a sua profissão e você tem que dar o melhor de si. Então, assim, não vamos começar a filosofar agora no final, mas acho que é isso!