Vinagre: indispensável da cozinha na busca pela sintonia de sabores
No universo da cozinha, o vinagre é um dos curingas na busca pela sintonia perfeita de sabores
No universo da cozinha, o vinagre é um dos curingas na busca pela sintonia perfeita de sabores. Saiba mais!
O segredo de um bom prato costuma ser sintonia entre os cinco sabores básicos: doce, salgado, amargo, ácido e umami. E para chegar ao almejado balanço, cozinheiros e chefs do mundo todo praticam uma verdadeira alquimia na busca pela harmonização de suas receitas.
Nesse laboratório sensorial, um dos elementos fundamentais é o que aporta acidez aos preparos. É aí que entra em cena o vinagre, um ingrediente milenar usado pelas mais diversas culturas e que ganha cada vez mais variantes, especialmente pelas mãos dos cozinheiros que mantêm produção própria. É o caso da brasileira Lara Espírito-Santo e do neozelandês George McLeod, a dupla à frente do SEM, em Lisboa.
De acordo com Lara, o sabor ácido é essencial no processo de construção de camadas de paladares. “Ele tem a capacidade de cortar a gordura e os açúcares, e elevar o umami. Às vezes você não percebe, mas ele está presente. Você certamente sentiria falta se ele desaparecesse. Por isso, transformamos os nossos subprodutos em gotas imperdíveis de ácido”, revela a chef.
Na prática, tudo o que tem açúcar que se transforma em álcool durante a fermentação pode virar vinagre, que nada mais é do que um vinho ácido, transformado em ácido acético. Por isso, a aposta do SEM é na diversidade e nuances de sabores. Nas estantes que fazem parte da decoração do restaurante, no coração da Alfama, são pelo menos 15 tipos de vinagres em pleno processo de fermentação dentro de garrafões de vidro. “O vinagre é uma ferramenta importantíssima para o nosso modelo, porque nos permite criar complexidade de sabor e evitar o desperdício.” Aqui, vale reforçar que o conceito do restaurante preza a sustentabilidade por meio da utilização e da transformação máxima dos ingredientes.
Na linha de frente, há vinagres simples, como o de vinho tinto feito de restos da bebida de garrafas abertas para servir vinho ao copo, ou vinagre de malte de cerveja, fabricado com espuma e o final do barril da cerveja artesanal do SEM. “Também criamos vinagres com muita complexidade de sabor, como o de casca e apara de batata yacon, vinagre de casca de aspargos brancos e vinagre de mirim de casca de amêndoa verde”, explica. Outras composições que chamam a atenção são preparadas com talos de cogumelos ou com misturas de ingredientes, como o vinagre de semente de pera, casca de yuzu e kombucha de flores. Aliás, no SEM, há até vinagre de magnólia.
Todo o processo produtivo acontece no restaurante, no que Lara chama de controle dos chamados subprodutos. “Para nós são simplesmente itens com potencial. Aquilo quase sempre indesejado e muitas vezes descartado, é onde vemos o maior valor. O vinagre entra nesta fase e viabiliza o desencadear dos sabores que fazem a diferença na nossa cozinha”, finaliza.
Na busca por nuances de acidez, a chef espanhola Begoña Rodrigo, do La Salita, em Valência, tem investido em ingredientes fora da caixa para produzir os seus vinagres. É o caso da chufa, o tubérculo a partir do qual se origina a horchata, bebida típica valenciana. “A chufa nos surpreendeu porque não sabíamos como iria evoluir e a base madre saiu muito rapidamente, em apenas dois meses, o que significa que tem muito mais açúcar do que imaginávamos.”
A chef reforça que é possível fazer vinagre de tudo o que tenha um pouco de açúcar, o que inclui praticamente todas as frutas e outros ingredientes como carboidratos. “Atualmente, estamos fazendo vinagre a partir de raízes e de tubérculos, aos quais adicionamos açúcares naturais, como a cenoura”, explica.
Além do açúcar, outro ingrediente essencial para a produção de vinagre, segundo Begoña, é a paciência. Não é à toa que o trabalho com os vinagres começou na época da pandemia, com um tanto de casualidade. “Quando passamos a observar a evolução de alguns alimentos na geladeira na transformação da frutose em vinagre, vimos uma possibilidade de aprimorar os nossos pratos com diferentes níveis de acidez e substituir o uso de vinagres industriais.” A empreitada deu tão certo que o La Salita usa pelo menos 12 tipos de vinagres autorais, que têm feito a diferença na qualidade dos pratos do restaurante com uma estrela Michelin.
O francês radicado em Portugal, Julien Montbabut, tem o vinagre como um dos elementos de equilíbrio de praticamente todas as receitas do Le Monument, restaurante que comanda no Le Monumental Palace, no Porto. O apreço surgiu a partir de um trabalho com um chef que não gostava de pimenta e ensinou que o vinagre poderia cumprir um papel semelhante. “O vinagre era usado para trazer o sabor mais picante, mais ácido e gostei dessa abertura. O ingrediente tempera a comida e dá um twist, um outro sabor. Se o prato está linear, o vinagre pode mudar tudo”, ensina. A descoberta na França passou a acompanhá-lo no seu percurso como chef e fez com que ele montasse um pequeno laboratório de produção de vinagres autorais no seu restaurante ao Norte de Portugal. As experimentações eram mais discretas, com limão, mostarda e cítricos, por exemplo. Mas não demorou para carregar a linha de produção de vinagres com mais audácia. E tudo começou com uma florzinha muito dada à alquimia praticada nas cozinhas mundo afora. “Trabalhamos com a flor de sabugueiro fresca e guardamos algumas para fazer vinagre”, revela. A depender da época do ano e da oferta de produtos, os sabores dos vinagres mudam. “Já fizemos de shiso, funcho, mimosa e framboesa. No ano passado, tentamos as folhas de figo, com frutos e flores. Estamos constantemente em teste.”
Quando o resultado é positivo, o vinagre segue para a criação dos pratos do cardápio, que trabalha com menu degustação de cinco (150 euros) ou sete passos (180 euros). De acordo com Julien, quase todas as delícias têm um toque de vinagre. “Usamos em marinadas ou em molhos nos peixes, em substituição ao limão, e, às vezes, em cima da carne. O foie gras, por exemplo, é selado com vinagre.”
A versatilidade do vinagre é tanta, que até mesmo nas sobremesas o ingrediente aparece. “Um vinagrete de morango, por exemplo, serve para contrabalançar o dulçor de uma torta com chantilly”. Ao fim e ao cabo, tudo é mesmo uma questão de equilíbrio. Até mesmo na cozinha.
VINAGRES PELO MUNDO
BALSÂMICO – Produto de Denominação de Origem italiana, recebe esse nome porque antigamente era usado na cura de algumas doenças. É feito do suco não fermentado de uvas brancas amassadas. O mais autêntico e tradicional é feito em Módena, por 30 ou 40 famílias, sendo produzidos apenas 8 mil litros por ano. Tem coloração escura e sabor forte e marcante.
CORINTO – É produzido na Grécia a partir de uvas-passas. Antigamente, era especialidade da região de Corinto, mas após o século 16 começou a ser disseminado pela ilha de Zante. A feitura do vinagre de Corinto segue padrões e métodos tradicionais, semelhantes aos da produção de alguns vinhos doces feitos com passas.
JEREZ – Vinagre espanhol de vinho Jerez de alta qualidade, que amadurece em barris por um tempo que pode variar de dois a 25 anos, com engarrafamento médio de 30% da produção. Trata-se de um vinagre frutado, ideal para molhos.
MAÇÃ – É produzido há milênios na França e na Inglaterra, a partir de maçãs azedas conhecidas como cidras. Atualmente, outras espécies de maçãs podem ser usadas como matérias-primas e muitas delas trazem um toque mais aromático ao vinagre.
MEL – Fabricado desde o Egito Antigo, resulta da fermentação alcoólica do mel, dissolvido em água, seguido pela reação acética. O grau de acidez é levemente mais baixo que o dos outros vinagres. Combina com queijos, saladas de frutas e pratos de arroz.
VINHO – Resultante da fermentação acética do vinho. Nos tempos atuais, quase toda a produção de vinagre de vinho concentra-se em grandes fabricantes. Em sua elaboração são usados tanto vinhos tintos como brancos. Os vinagres de vinho são usados como temperos de saladas, podendo ser perfumados com ervas aromáticas.
MOCHIGOME-SU – Vinagre japonês feito a partir de arroz marrom cozido em vapor e misturado a arroz com o bolor Aspergillus, um dos componentes do molho de soja. O sabor é leve e menos ácido do que o da maioria dos vinagres. Costuma ser usado na confecção de sushis.
SHANXI – Vinagre chinês envelhecido feito de arroz gohan misturado a outros grãos. O resultado é um vinagre escuro, quase negro, espesso e adocicado, comparado aos balsâmicos italianos.
VARIETAL DE VINHO – Vinho de sabor frutado feito a partir de uma única casta, das mais famosas vinícolas do mundo. As principais produções do gênero estão no Piemonte, na Itália, com uvas Barbera ou Barolo.
Foto Divulgação | Fonte Dicionário da Gastronomia, Myrna Corrêa