Moda e suas constantes mudanças em busca de novidades
Caos e liberdade! A moda, suas constantes mudanças e a busca pela novidade como registro do ar dos tempos
Qualquer realidade do processo criativo, de qualquer área, está intimamente ligada ao tempo na qual foi engendrada. A este “ar dos tempos” ou “espírito de uma época” dá-se o nome de zeitgeist, pegando por empréstimo da filosofia alemã esta palavra muito usada até mesmo em outras línguas e que dá para ser aplicada a qualquer tempo e a qualquer realidade de suas respectivas épocas. Tenho esta palavra germânica como verdadeiro sinônimo para a moda. “Zeit” quer dizer “tempo” e “geist” é “alma”, “espírito”, portanto, trata-se do verdadeiro espírito de uma época, do ar de um tempo. O que acontece a cada tempo parece que nos penetra pelo ar que respiramos. No processo criativo não é diferente. E, na moda, temos um verdadeiro rebatimento que caracteriza e contextualiza uma certa maneira de pensar e a sua resposta no agir e no vestir. A moda não está imune aos ventos que sopram, ajudando, inclusive, a criar a própria identidade temporal.
Hoje vivemos uma época plural e, por isso mesmo, não há nem mesmo um consenso de uma única palavra como adjetivação para a moda contemporânea. Falamos “pluralidade”, “multiculturalismo”, “mix”, “hibridismo”, entre outras que podem sugerir a tal multiplicidade. No seu processo criativo elaboram-se várias e tantas possibilidades de estilo, com a expectativa de se tornarem moda, que a falta de identidade específica do nosso tempo, paradoxalmente, passa a ser a própria identidade. Moda conceitual, interface com as artes, moda agênero, releituras, moda vintage, roupas de brechó, customização, aspectos de alfaiataria, clássico ressignificado, artesania, desconstrução, sensualidade, customização, upcycling, moda circular, sustentabilidade, hi-lo, reglamourização, etarismo, inclusão, empatia, bizarro, grotesco, lacração, humor, aspectos de luxo, dinâmica de opostos, collabs, premissas sustentáveis, atravessamentos temporais e estéticos, novas tecnologias têxteis, interface com as redes sociais e até mesmo as imagens geradas pela inteligência artificial nos tornam receptores e consumidores de uma “vitamina” de informações liquidificadas e amalgamadas num só composto que não dá para separar o que é o que nesta mistura e consequente ingestão deste shake de possibilidades. É o nosso “zeitgeist” com a teatralidade da moda, em sua diversidade, neste universo das grandes ações de business. Eis a dinâmica da moda contemporânea.
Se o nosso tempo é múltiplo, eloquente e até mesmo agressivo e corrosivo em diversas circunstâncias, a moda contemporânea não ignora dialogar com tais realidades e, portanto, também temos uma espécie de caos associado às liberdades criativas neste processo.
Nos últimos desfiles em geral e, especialmente, nos das semanas de prêt-à-porter (Nova York, Londres, Milão e Paris), pudemos observar muitas dessas dinâmicas nos respectivos conceitos e resultados das coleções. Na tentativa de escanear o mapa da moda contemporânea, descrevo alguns pontos de vista, lembrando que um mapa é sempre em escala. Se não houvesse a escala, o mapa seria o próprio território e, portanto, partindo desta metáfora, não dá para descrever absolutamente tudo. Sigo com algumas referências que considero significativas como registro e reflexão dos desfiles outono/inverno 2024-25 no Hemisfério Norte.
Nesta tentativa de traduzir as vivências da sociedade contemporânea com tantas informações simultâneas (inclusive neste artigo), começo citando Demna Gvasalia, para Balenciaga, que referenciou o “Overloading”, ou seja, o bombardeio de informações que recebemos diariamente. Ambientação do desfile com trocas constantes e rápidas de imagens digitais, tanto nas paredes quanto no piso, criando uma poluição visual, tendo, inclusive, os modelos com olhos cobertos, numa espécie conceitual de negação aos excessos e facilidades informativas da atualidade.
As releituras estiveram muito presentes nas coleções de D&G com os smokings e as rendas; no estilo punk de Versace; no romantismo da Prada com laços sessentinhas; em Simone Rocha com corsets e também laços; em Tom Ford, por Peter Hawkings, a bolsa baguete e, especialmente na Dior, por Maria Grazia Chiuri, com o resgate dos casacos e jaquetas largas e soltas usadas com cinto para serem ajustadas a cada formato de corpo, referenciando a criação da linha de prêt-à-porter, “Miss Dior”, em 1967, por Marc Bohan (1926- -2023) com a ajuda de Philippe Guibourgé (1931-1986). Associada às releituras, também temos a prática de atualização aos tempos das propostas identitárias de marcas mais tendenciosas ao clássico, como as referências de montaria da Gucci; o uso do couro em cortes impecáveis da Hermès; a estética romântica da Dior; a tradicional sofisticação da Valentino; Schiaparelli, por Daniel Roseberry, mantendo o conceito do onírico e Armani sendo sempre clássico, porém renovado em estampas nesta estação. A Chanel, por Virginie Viard, também manteve a identidade da marca e reviveu o início da carreira de “mademoiselle” em Deauville, com as releituras da própria história de Chanel, numa espécie de autorreferência em rosa, preto, dourado, debruns, camélias e chapéus. Já a Louis Vuitton, com os dez anos de Nicholas Ghesquière na direção criativa, houve a releitura do visual dos baús, malas e bolsas em estamparia nos tecidos de algumas roupas. Elie Saab releu sua própria identidade em franjas, flores e brilhos, mantendo-se fiel à sua visão de mundo em sofisticação e glamour.
TALVEZ, ESTEJAMOS vivendo UMA realidade VOLÁTIL, ETÉREA, AINDA MAIS IMPALPÁVEL E efêmera,
COMPARADA NA ÁREA DA moda À RÁPIDA transitoriedade DO PRAZO DE validade DAS ROUPAS.
A sensualidade também se fez notar nas transparências e rendados de Patrícia Bonaldi (PatBo), assim como nos brilhos, tecidos esvoaçantes e grandes fendas nas propostas de Valentino, Prada, Chloé e Tom Ford, entre outras, mesmo sendo coleções de inverno; sem falar na fluidez dos tecidos e os seios sutilmente velados. Já o erotismo e a sedução, beirando ao exagero, em Dilara Findikoglu e Vivienne Westwood. O agênero presente em Versace e Tom Ford. O bizarro com a Avavav, tendo as manequins propositalmente escorraçadas com lixo; e o grotesco com Rick Owens e Vivienne Westwood em apresentações bem questionáveis.
Com relação às atitudes contemporâneas e necessárias ao ar dos tempos atuais, a ideia do upcycling foi presenciada na Diesel; a inclusão e o etarismo na Balmain, por Olivier Rousteing, colocando mulheres maduras na passarela; os valores da sustentabilidade com Stella McCartney, que não utiliza o couro, criando texturas alternativas no lugar das peles e correlatos. As collabs marcaram presença entre Jacquemus com Nike (Le Sac Swoosh); Raf Simons com Miuccia Prada para a Prada, além de Miu Miu com New Balance e Simone Rocha com a Crocs.
Com Guram Gvasalia, para Vetements, além das roupas over-oversized, viu-se uma paródia (ou quem sabe, um pastiche) dos casacos com ursinhos de pelúcia de Jean-Charles de Castelbajac, lançados em 1988 (sem falar nas cadeiras dos Irmãos Campana). Em McQueen a diversidade baseada na postura jovem com volumes exagerados e… sem grandes emoções.
A pele de bicho (animal print) continuou aparecendo na Dior e na Blumarine; a monocromia em Dior, Hermès e, especialmente, na Valentino com “all black”; brilho e tecidos de alta performance tecnológica também apareceram; muito evidentes as bolsas com grandes alças e/ou correntes, porém carregadas nas mãos; e as botas de canos altos, acima dos joelhos, foram constantes. Muito marcante foi uma significativa predominância dos casacos com as mangas bem largas e armadas, bem no formato cocoon (casulo), que apareceram em várias marcas. E o marrom está com a bola da vez para o inverno 2024/25.
E para finalizar, na certeza de não ter explorado tudo e muitas informações terem ficado para trás, as interfaces arte e moda também se fizeram notar. Issey Miyake, no masculino, com o purismo das formas e uso de cores em estampas abstratas; Schiaparelli com as premissas do Surrealismo; Moschino com o Pop; Roberto Cavalli com estampas de mármores que remetem a pisos arquitetônicos romanos e esculturas; assim como Tom Browne em releituras góticas inspiradas no poema O Corvo (primeira publicação em janeiro de 1845), de Edgar Allan Poe (1809-1849), referenciando um mundo atual bélico, tenso e de pesadelos pretéritos, enaltecendo, então, o “Nevermore” (Nunca mais), na qual Allan Poe focava “o subjetivismo, o egocentrismo, a consciência da solidão e a presença sombria da morte”, num clima bem contemporâneo, diga-se de passagem.
Se o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017) desenvolveu o conceito da “modernidade líquida” na qual os aspectos gerais e atuais são “frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos”; hoje, talvez, estejamos vivendo uma realidade volátil, etérea, ainda mais impalpável e efêmera, comparada na área da moda à rápida transitoriedade do prazo de validade das roupas. Desta forma, vale também lembrar o que disse o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860): “A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir”, ou seja, uma espécie de mobilidade pendular que vai da ansiedade ou sofrimento por querer aquilo que não se tem e o tédio por ter conquistado aquilo que tanto era desejado, “tornando assim [a vida] um eterno vazio”, assemelhando-se ao desejo incontrolável do consumo da moda deste momento e já na expectativa das próximas coleções das estações vindouras. É a moda em busca do novo ou, pelo menos, da novidade efêmera.