Karl Lagerfeld ganha memorial
A morte de Karl Lagerfeld encerra uma safra de designers nascidos na era da Couture, na qual exercícios com a silhueta renderam criações históricas
O minuto de silêncio que antecedeu a apresentação da derradeira coleção de Karl Lagerfeld para a marca dos Cs entrelaçados prestou reverência ao último dos grandes costureiros a ter revolucionado a indústria fashion. O desfile de inverno 2019 da Chanel, realizado em um Grand Palais travestido de estação de esqui, foi o epílogo de uma era.
Com a morte do kaiser, em fevereiro, desaparece também uma maneira de pensar, de sentir e de construir a moda. Saem criadores icônicos, que fizeram de suas silhuetas uma assinatura, e abrem-se as alas para nomes que exercem muito mais a função de direção criativa e de marketing do que a de estilista.
É bem verdade que Lagerfeld, formado pela couture de Jean Patou, foi um caso único de genialidade que soube se adaptar como ninguém aos novos tempos ao injetar um combustível pop e fun, altamente rentável, no repertório das grifes que comandou – a homônima, a Fendi e a Chanel. Estão aí o Karlito, a Choupette e a prancha de surfe customizada, entre outros tantos exemplos, que não me deixam mentir. Ao lado de Coco Chanel, Christian Dior e Yves Saint-Laurent – além de Hubert de Givenchy e Cristóbal Balenciaga, se quisermos ampliar o leque –, Lagerfeld fez da alta-costura a sua escola e sacudiu as estruturas do prêt-à-porter com sua profusão de ideias.
Chanel, fundadora da maison que ajudou a tornar mito Lagerfeld, ganhou fama no pós-Primeira Guerra Mundial ao liberar as mulheres de seus corsets e popularizar a estética esportiva, casual chique e feminina. Foi uma revolução. Única estilista listada no ranking das 100 personalidades mais influentes do século 20 da revista Time, ela antecipou o que viria a se chamar prêt-à-porter ao ser a primeira a ampliar o repertório com produtos chamados de “porta de entrada”, como joias, perfumes e chapéus, complementos para os vestidos sob encomenda. Seu legado? O tailleur de tweed e o little black dress, apenas. O tubinho preto ajudaria a construir a fama de outra lenda da alta-costura.
Em 1961, Hubert de Givenchy eternizou Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo com o vestido que seria reconhecido como uma das peças mais importantes da história da moda e o mais icônico little black dress de todos os tempos. Sorry, Coco. Mas não foi só. Queridinho de estrelas do cinema e da aristocracia global, Givenchy tem no currículo o Balloon Coat – uma clara reverência às linhas encasuladas de seu ídolo, Cristóbal Balenciaga – e o vestido Baby Doll, uma transgressão que botou a lingerie na rua e virou clássico, reproduzido por um sem-número de grifes década após década.
Contemporâneo de Givenchy, Christian Dior teve uma trajetória curta, mas histórica. Os dez anos que separaram o lançamento de sua primeira coleção, em 1947, até o ano de sua morte recolocaram Paris no olimpo da moda e deram ao mundo o New Look e sua silhueta ampulheta. O Bar Suit é um tema obrigatório para estudantes e tem lugar cativo nos mais importantes museus. Não é pouca coisa.
Quando monsieur Dior faleceu, em 1957, um novato de 21 anos assumiu seu lugar na direção da casa. Surgia mais uma lenda: Yves Saint-Laurent, que fez dos anos 1960 e 70 o seu playground, com contribuições icônicas. A jaqueta Saharienne, o Le Smoking e o vestido Mondrian, anyone?
Ah, mas Karl Lagerfeld não criou nenhuma peça histórica como essa turma aí, dirão os detratores, que insistem em afirmar que ele era uma figura desprezível e preconceituosa. Talvez, mas ele fez de sua silhueta esguia (na era pós-Hedi Slimane, é verdade) – com calças e blazer pretos, camisa branca de colarinho altíssimo, óculos escuros e luvas sem dedos – uma figura tão reconhecível quanto o Mickey Mouse. Acha pouco? Aliás, a estética construída por Slimane desde os tempos da Dior Homme, na virada deste século, é uma das pistas quentes para quem procura a resposta à pergunta “what’s next?”.
Sim, porque quando uma geração dessa vai desaparecendo, os órfãos e os românticos da moda logo se apressam em eleger o próximo hot ticket. Controverso – há quem ame e existem os que odeiam tudo o que ele faz –, Slimane talvez seja o único dos players atuais que pode se gabar de ter sua assinatura em uma silhueta ou em um mood. O skinny, o rock’n’roll, o grunge e o glamour boêmio no qual ele aposta desde sempre o seguem aonde quer que vá. Foi assim na Dior, na Saint Laurent – cujo faturamento ele triplicou entre 2012 e 2016 – e é assim atualmente na Celine.
Ok, o slim vem lá dos mods, nos anos 1960, o grunge explodiu com o Nirvana 30 anos depois e o ar blasé de seus modelos reinava na noite parisiense dos anos 1980. Não dá para dizer que o francês seja um criador de fato, mas saber captar o espírito de seu tempo e ser um exímio image maker o coloca em posição privilegiada no século 21. Espertíssimo, ele tomou para si essa lucrativa estética. A era do styling, da individualidade, do Instagram e do wannabe cool tem em seus espetaculares shows em Paris um palco e tanto.
Cenário é tudo, afinal. Virgil Abloh que o diga. Convocado para assinar o masculino da Louis Vuitton, ele sempre assumiu que não era estilista, mas um artista multidisciplinar, uma antena de seu tempo, com um forte penchant street. Shows instagramáveis, consciência social, ativismo racial, laços estreitos com a música e uma vontade enorme de ser o baluarte da geração millennial praticamente ofuscaram o seu colega de maison, Nicolas Ghesquière, um enorme talento responsável pelo feminino da Vuitton, mas cujo nome ganha hoje bem menos atenção.
Junto com Riccardo Tisci, outro que sabe muito bem como juntar ruas e alto luxo, Abloh talvez faça companhia àquela turma do início do texto na história da moda, mas os motivos diferem. O conteúdo hoje importa muito mais do que as formas. No império do efêmero, cometas do hype são frequentes, clássicos já não existem mais e a causa de hoje pode não ser a mesma de amanhã, nem tampouco a foto. Em tempos nos quais modelos de elegância podem vir da vizinha de baixo, ditaduras de estilo à l’ancienne não fazem mais sentido. Não é melhor nem pior. Apenas diferente.