George Love recebe a primeira retrospectiva sobre seu trabalho
Primeira grande retrospectiva de George Love joga holofote essencial sobre o trabalho pouco conhecido do fotógrafo
Artista fotográfico pouco ortodoxo, George Love fez história única no Brasil. Nascido na Carolina do Norte, mudou-se para o país por incentivo de Claudia Andujar, com quem foi casado e produziu imagens seminais sobre a Amazônia — publicadas pela revista Realidade e em livro de artista da dupla nos anos 1970. Trouxe na bagagem uma convivência estética com a fotografia experimental dos EUA e aqui desenvolveu esse olhar que mesclava o documental com sua própria personalidade — retratando de povos indígenas à selva paulistana, passando por projetos comerciais e até alguns raros registros de moda. Falecido em 1995, o fotógrafo ganha agora a sua primeira grande retrospectiva no MAM-SP. George Love: além do tempo abre em 29 de fevereiro, resultado de um esforço de organização desse arquivo múltiplo e insólito confiado ao também fotógrafo Zé de Boni, que assina a curadoria fomentada por décadas de convivência pessoal e profissional com Love. Dividida em 20 “exposições individuais temáticas”, a mostra resume um acervo de milhares de negativos, cartas e diários desse personagem misterioso, que tanto se revela nos seus próprios cliques.
L’OFFICIEL Por que finalmente montar uma retrospectiva sobre George Love, em 2024?
ZÉ DE BONI Na verdade, a resposta principal é: por que tão tarde? Levou um tempo para juntar todos os pedaços dessa história. O arquivo que George me entregou estava muito embaralhado, costumo dizer. Ele foi para a Amazônia em 1966, junto com a Claudia Andujar, que é quando começa sua história com o Brasil. Em 1971, ele participa da edição especial da Realidade sobre a floresta. O clássico livro dos dois sai sete anos depois. Às vezes não conseguimos controlar toda a dinâmica. O trabalho que estamos apresentando é a revelação total desses documentos dele. O momento é porque agora temos finalmente a dimensão do que ele deixou aos meus cuidados. O conteúdo principal vem dos documentos e fotografias que juntou durante a vida e carregou em todas as suas mudanças, tentando conservar do jeito dele, não necessariamente organizados, que, hoje, podem ser apreciados. George é um dos grandes precursores da fotografia contemporânea brasileira, mas é pouco conhecido. Ele já era mal conhecido em vida. Era uma figura misteriosa, uma lenda ainda viva. Nos conhecemos em 1979, quando o convido para participar de um espaço que eu tocava, dedicado à fotografia, que se chamava Álbum. Ele me adotou nessa época. Foi ali que começamos a trabalhar juntos, a gente passa a conviver muito e trocar muitas ideias. George me entregou todo esse material em junho de 1995, praticamente uma semana antes de falecer. Tinha voltado dos EUA com pacotes e pacotes. São mais de 50 mil originais, de slides a muitos filmes que ainda estavam inteiros, sem edição. Então foi um trabalho de anos, pesquisando e tentando editar e identificar o que são as imagens mais importantes. Os materiais dos livros que publicou, dos eventos que montava, muitos baseados em slides e instalações audiovisuais, e os trabalhos comerciais. George é bem conhecido pelas imagens da Amazônia, pois era marido da Claudia, e também pelo trabalho que fizeram juntos no MASP. Ainda assim, é pouco conhecido. Acho que temos que resgatar esses nomes a cada tantos anos, sempre que possível. Essa exposição do MAM não tem um veio comercial, digamos. Estou fazendo uma coisa que é pela cultura brasileira. O desafio principal, que também é uma vantagem, é que tenho um conhecimento desse material todo e da história íntima do George. Eu poderia ter entregue esse arquivo para uma instituição, mas não saberiam das histórias preciosas que envolvem cada situação. Por isso consigo encarar esse desafio de entregar a coisa relativamente decifrada. George é um enigma e tenho essas chaves mais fáceis, pela convivência. Eu não era o maior amigo dele ou o mais importante. Ele tinha uma agenda cheia de gente importante. Mas fui a quem ele confiou sua história, seus diários, suas cartas guardadas. Quando comecei a pensar nesse projeto, há mais de dez anos, eu sabia a quem recorrer para trazer as informações mais essenciais.
L’O Chegou a encontrar algo que não esperava nessa organização?
ZDB Foi uma busca interessante. Tem a parte do trabalho comercial dele que nunca foi muito clara, que George fazia, mas não deixava organizada em portfólio. Encontramos cromos com uma visão do modo plástico que ele usa na Amazônia, que ao mesmo tempo tinha suas procuras gráficas. Escaneamos mais de 2 mil cartas e documentos, além dos diários dele — inclusive sobre as primeiras incursões na Amazônia, contando sua visão de homem da cidade na floresta e suas experiências fotografando dos fundos abertos de um avião, pois era de cima que se devia retratar a imensidão das árvores, entre as nuvens. Mas também de ele tentando se entender em São Paulo, outro trabalho que dava a maior importância. E tinha coisas guardadas do começo de carreira, de antes de vir ao Brasil. Ele foi membro da Association of Heliographers nos EUA, falava muito sobre o Walter Chapell. É uma associação que até lá é pouco conhecida, mas que reuniu nomes marcantes da fotografia dos anos 1970/80. George tinha essa origem interessante. Achamos um material maravilhoso que era documental, sobre uma ferrovia em Vermont, que rendia até uma mostra própria. Esse arquivo todo que ele deixou… poderíamos montar uma exposição diferente a cada mês. Temos umas 500 fotografias na seleção do MAM, mas queria ter colocado mais 2 mil. É um trabalho muito rico e muito diferente. Há também material produzido no fim dos anos 1980, quando voltou para os EUA e não tinha mais uma atividade fotográfica consistente — mas continuava fazendo pesquisa visual.
L’O Vi que há até imagens de moda na exposição, tipo de material que nunca soube que George chegou a produzir.
ZDB Sim, há um painel de moda que entrou na exposição, produzida para a revista Claudia. Ele chegou a registrar desfiles, fotografou um desfile do Paco Rabanne na Fenit. Acho interessante porque ele vem com uma ruptura de barreiras. Você não tinha mais que mostrar todos os vincos e costuras, era um mood. Então ele fotografa moda e faz isso em infravermelho, usa filmes em tons diferentes, faz fotos na luz negra ou sem mostrar o rosto da modelo. Essa era a escola dele, e é um dos pontos importantes que mostramos. A formação dele pela Association of Heliographers traz exatamente essa ideia de que você não tente mais representar o assunto, somente. Eles discutiam isso, de que não se consegue retratar o assunto fielmente a partir da fotografia. Então ele vai e dá a sua visão sobre o assunto. Ele dizia que a fotografia bem-feita é um retrato de si próprio. Tudo parte de um filtro de quem está fotografando. O assunto era a imagem dele.
L’O George acaba desenvolvendo uma veia muito forte de fotojornalismo, mas que abre espaço para experimentações, especialmente na Realidade.
ZDB Eu tentei ao máximo fugir da palavra fotojornalismo, o próprio George não considerava seu trabalho assim. Ele tinha um talento para esse registro, ainda mais se você pensar que a fotografia documental americana é muito forte. Você tem exemplos de trabalhos importantíssimos. Mas se pegar o material que ele produz para a Realidade, são poucas coisas de documentação de fato. Ele tem esse compromisso de não reproduzir exatamente o que está vendo. O fotojornalismo teria essa transparência de trazer ao público a informação. Para o George, a informação do fato é menos importante do que a informação visual, então ele usa esse estímulo. Temos que entender muito mais o George através desse olhar da reação de um artista visual a um tema, uma percepção.
L’O Ele tinha uma liberdade especial para isso, algo que não aconteceria novamente tão fácil.
ZDB Sim, ele lutava por essa liberdade. E tem essa coisa fascinante da sua história, de ter sido acolhido e reconhecido por pessoas importantes. Seja na editora Abril, fazendo as séries todas para a Realidade ou para outras revistas, como a Quatro Rodas. É muito raro uma empresa jornalística ter essa visão de falar “vá e produza do seu jeito”. Ou do próprio Pietro Maria Bardi, quando convida George e Claudia e abre as portas do MASP para que façam as coisas do seu jeito. Eles tiveram o museu nas mãos por quase 14 anos, numa época que, informalmente, conseguia-se fazer grandes coisas — algo impossível, hoje. São sementes de liberdade que vão ficando, trabalhos que marcaram época e atingem gerações de fotógrafos até hoje. A influência de George na fotografia contemporânea é imensa. Mesmo sem saber, as pessoas são influenciadas por ele. Ele tentava sair da convenção.