Alta costura e alta gastronomia compartilham busca pela perfeição
Um encontro com os criadores de uma culinária excepcional divide seus pontos de vista sobre a procura do gesto perfeito da alta-costura e alta gastronomia
A alta-costura e a alta gastronomia têm muito em comum: o amor e o respeito pelas matérias-primas, a procura incessante do gesto perfeito e pelo sabor de uma experiência única. Com isso a L’Officiel pediu a Pascal Barbot, chef do L’Astrance, Alain Passard, chef do L’Arpège, Christophe Pelé, chef do Clarence e Assaf Granit, chef do Shabour, em Paris, seus pontos de vista sobre a questão. Um encontro com os criadores de uma culinária excepcional. Confira!
Um vestido com acabamentos requintados, uma saia sedosa com estampas preciosas, uma blusa cortada rente ao corpo no melhor dos tecidos: seria preciso muito pouco para que essas mesmas descrições chegassem ao campo lexical da crítica gastronômica, pois certos pratos parecem nascidos de ágeis dedos de rendeiras, com uma visão estética que aspira ao deslumbramento, à busca pela forma perfeita. “Essa analogia é óbvia para mim, afirma Pascal Barbot, chef do L’Astrance [uma estrela no Guia Michelin saudou a reabertura de seu lendário restaurante alguns meses após sua mudança]. Sempre falamos de savoir-faire nessas duas profissões. Para falar da culinária francesa, podemos nos inspirar nos artesãos: os ceramistas, os cuteleiros, os que fazem as toalhas de mesa, as porcelanas, as mesinhas de pedestal… tudo aquilo que compõe a arte de receber à francesa. No luxo, as mãos que trabalham e o fornecimento das matérias-primas também estão no centro da questão.
Em ambos os mundos são as bases sólidas nas quais nos apoiamos para criar e imaginar, onde diversas profissões se encontram.” No piano do L’Arpège, que em breve festejará 30 anos de três estrelas, Alain Passard confirma esta intuição: “São duas profissões muito parecidas: na abordagem das estações, nas necessidades e nos apetites. Gosto dessa comparação: o costureiro, no verão, trabalha com tecidos leves. Nós, cozinheiros, temos o pepino e o tomate, que nos refrescam”. Ele completa: “Nossos números na cozinha são o quatro e o cinco. Quatro estações e cinco sentidos. O grande costureiro se alimenta deles também: o barulho das tesouras, das máquinas de costura, os perfumes dos tecidos, do tweed ou do couro… O desafio do estilista de moda é tornar sua coleção apetitosa, dar-lhe sabor”.
A alta-costura baseia-se tanto na história das Maisons quanto nos dois pilares essenciais: a escolha das matérias-primas – excepcionais – e um domínio técnico extraordinário. “Nós somos a excelência", diz Pascal Barbot. “Procuramos o corte perfeito, o cozimento perfeito. Semelhante ao estilista, trabalhamos com a precisão do gesto, com sua perfeição.” Alain Passard enxerga sua abordagem em total simbiose com a dos designers: “Eu sou um maníaco do trabalho manual, tenho sempre necessidade de encontrar um novo gesto: por exemplo, quando imaginei minha quimera [uma carne híbrida, por exemplo, um frango e um pato cozidos juntos]. Sobre nossos balcões de trabalho na cozinha há facas, tesouras, fios para amarrar… Estou em busca de novas formas, como fica evidente na minha torta de maçã buquê de rosas. Isso oferece outros sabores, outras texturas. É preciso ter essa sensibilidade, eu amo o corte, a colagem, o jogo de brilhos e transparências. Se eu não fosse cozinheiro, poderia ter sido costureiro. Interesso-me muito por esse trabalho, pela tecelagem”.
Materiais e maneiras
Se as cozinhas premiadas privilegiam as matérias-primas mais nobres, não é às cegas, por reflexo. Assaf Granit que, juntamente com Dan Yosha, está à frente do Shabour [entre outros restaurantes igualmente excepcionais, tanto em Paris quanto em Israel ou Berlim], uma estrela Michelin, especifica: “Eu não gosto de utilizar lagosta, caviar ou foie gras apenas para tê-los no cardápio. Se eu os utilizo, eles devem ter uma função real para a expressão do prato”. Da parte do Clarence, duas estrelas, Christophe Pelé teoriza essa convenção: “O que é o luxo hoje em dia? O caviar ou uma excelente cavala pescada ontem?”. Indo nessa mesma direção, Pascal Barbot desenvolve sua abordagem: “No primeiro endereço do L’Astrance, eu fazia uma sopa de pão, uma torta de casca de abobrinha. O que é nobre? Aos meus olhos, todos os produtos são nobres! Para mim, uma cebola, uma cavala, o caviar ou cascas de abobrinha são iguais. Tomemos como exemplo a trufa: ela está em todas as coletâneas históricas de receitas da cozinha francesa, e por quê? Eram encontradas em todos os lugares! Eram servidas aos porcos! Essa noção de produtos de luxo é uma consequência da lei da oferta e da procura. É o mesmo na moda: não é porque você trabalha com um material dito luxuoso que sua roupa será bonita e bem cortada”.
Todos os chefs relatam sua relação com as texturas dos produtos que cozinham: “Eu preciso tocar no produto, é uma necessidade, mas há toques e toques", diz Pascal Barbot. “É preciso muita delicadeza para compreender o produto, respeitar sua fragilidade. É preciso fazer isso para entender a sua textura, para acompanhar o cozimento. Mas não é o suficiente: a resistência dará informações, portanto é preciso conhecer o grau de maturidade ou de frescor dos produtos.” Assaf Granit, e ninguém se surpreende com isso, pois seu repertório culinário é vivo, ardente, animal, vai ainda mais longe: “Eu preciso tocar os produtos, cheirá-los. Também tenho o impulso de quebrá-los para ver o que posso fazer com o líquido que sai de dentro, ou de queimá-los para avaliar se posso usar as cinzas. A maneira com que eles reagem pode também me mostrar um outro caminho”.
Alain Passard joga uma luz ainda mais explícita sobre este entrelaçamento de visões: “Estamos falando do tecido vegetal ou animal. Temos a sorte de podermos tocar grãos diferentes, termos emoções diferentes. Nossa criatividade, como a do costureiro, vem daí. Eu toco os produtos principalmente com os olhos: é muito importante visualizá-los. Posso observar um nabo durante um quarto de hora, impressionado com o que a terra nos oferece: esse degradê de tons de branco, um pouco desbotado, um pouco de marfim, esse toque de malva que parece fluir como um molho, seu penacho majestoso… Tudo isso dá muitas informações, principalmente sobre os tempos de cozimento”.
E Christophe Pelé, dos sublimes salões do Clarence, acrescenta: “Não há dúvidas de que há paralelos, principalmente no apego dos estilistas aos materiais, à sua evolução em sua própria história. O toque e a sensibilidade estão no cerne das nossas profissões”.
Na mesa, a ecorresponsabilidade
Um outro ponto que une a alta cozinha e a alta-costura, embora os problemas colocados pelas questões contemporâneas digam respeito a todos os níveis da gastronomia e da moda: o dever da responsabilidade ecológica. Assaf Granit tem um ponto de vista encorajador: “A ecorresponsabilidade faz de nós chefs melhores. Quando comecei, pegávamos um pedaço de carne de uma carcaça e jogávamos fora o resto, o mesmo com os aspargos, usávamos somente uma parte deles. Não pensávamos no potencial dos nossos resíduos. Quando passamos a nos interessar por eles, isso nos tornou mais criativos. Até entregamos os copos quebrados a um artesão que confecciona com eles cabos de talheres. Refletir sobre esses novos parâmetros abre campos mais interessantes”. Os esforços despendidos pelo mundo da moda para inventar outras técnicas, encontrar outras fontes de abastecimento, encontram imperativos há muito levados em consideração por, entre outros, Pascal Barbot: “Nós temos as mesmas preocupações: a origem das matérias-primas, privilegiar os produtores locais, pensar no bem-estar animal, não desperdiçar, reciclar. Pensamos em traçar uma rota, como trazer a natureza para dentro da cidade, por exemplo, com plantinhas sobre as mesas que voltarão em seguida para a floresta, para serem replantadas. Trabalhamos com carvalho francês para a madeira, cal nas paredes, pedra vulcânica no chão, linho francês, até o piano é francês, mesmo que tenha vindo dos Molteni, uma família de imigrantes italianos que chegou à França em 1923. Tentamos ir até o final com a nossa abordagem.”
Horta moodboard
Se algumas roupas nascem de um croqui, de um sonho, outras derivam de um material sublime: tal lã será adequada para um mantô e tal tweed para uma saia. Os chefes não trabalham de forma diferente: “Às vezes, penso em termos de combinação de cores", revela Pascal Barbot. “Adoro amarelo com verde, preto com verde. Mas isso vem naturalmente, com as estações. Agora [primavera no momento da entrevista], temos vermelho, laranja, amarelo, verde… A montagem começa na horta! Já fiz pratos em torno do caroteno, tudo laranja.” Alain Passard, cuja produção de suas duas hortas-jardins alimentam, por assim dizer, sua cozinha, vê nelas uma salvação em tempos de dúvida: “Quando tenho uma crise na minha criatividade, me volto para um eixo de cores. Digo a mim mesmo que trabalharei em torno do malva, pego meu cesto e vou para os meus jardins. E percebemos que, gustativamente, olfativamente, visualmente, funciona”.
Assaf Granit testemunha uma evolução ao que se refere à sua criação: “Até um ano e meio atrás eu teria respondido que eu sempre parti dos produtos. Por vinte anos eu olhava para um ingrediente, no melhor de sua estação, e imaginava um prato. Há alguns meses no Shabour, criamos um cardápio completo articulado em torno dos utensílios de mesa, começando pelos pratos, pelos talheres… Por exemplo, uma jarra de absinto, um magnífico objeto art déco. Que podemos fazer com ele? Voltamos ao absinto para pensar no seu equivalente israelense, o arak, com seus sabores de anis. Acrescentamos suco de limão, um pouco de açúcar, sal, pimenta picante, mais azeite dentro da jarra: e aí obtivemos o molho do peixe. Isso realmente mudou minha abordagem em relação à culinária. Eu conheço as estações, os condimentos, os produtos, eu cozinho há vinte anos, e repensar minhas técnicas de acordo com estes dados é estimulante”.
Retoques finais
Percebemos que um outro desafio aproxima os ateliês de costura e as brigadas de cozinha, o de apresentar o prato, o traje perfeito, sem coqueteria supérflua. “A apresentação é também um elemento de reflexão”, argumenta Pascal Barbot. “No meu primeiro endereço, a cozinha era minúscula, era preciso ir ao essencial e isso se tornou minha assinatura: se concentrar no corte, no cozimento, no tempero. Eu queria que este fosse nosso fio condutor. Para depois colocar o mais naturalmente possível no prato. Hoje eu tenho muito mais espaço e uma equipe bem maior. Podemos fazer um trabalho que era impossível de ser feito antes. Mas como é difícil manter as coisas simples! Eu aspiro à pureza. É a mesma coisa no luxo: podemos anunciar lindos materiais, mas são os cortes que farão a diferença. É um conceito a que aspiro: servir o arroz perfeito, sem manteiga, sem sal, com um ouriço-do-mar.” Mesma constatação de Christophe Pelé: “É preciso se apagar diante do produto, talvez apenas um condimento seja o suficiente.
O problema do cozinheiro é adicionar, é esconder, porque oferecer um produto quase bruto é se mostrar nu, o que é muito difícil, temos a tendência de vestir e às vezes de vestir demais”. Como um estilista que retifica uma silhueta no último momento, a apresentação é fruto tanto da reflexão quanto do instinto mas, sobretudo, da experiência: “Quanto mais amadureço, mais foco no minimalismo, no interferir o mínimo possível, para mim a elegância é isso”, afirma Assaf Granit. “É o que Coco Chanel dizia, ‘quando você sair de casa, olhe-se em um espelho e tire um acessório’… Quando comecei, tentava acrescentar cada vez mais, hoje procuro a essência do prato.”
Nas cozinhas do L’Arpège, Alain Passard não aspira nada diferente: “Como na costura, nós praticamos gestos simples: pregar um botão ou cortar uma cebolinha… Mas se você o faz com graça, torna-se um gesto artístico e isso transforma seu dia. Esta é a questão. Faço alguns de meus pratos com três gestos, apago o máximo possível. Mas é preciso encontrar os gestos certos, começo com quinze e chego a três. É o trabalho, a experiência que nos leva até eles. Os grandes costureiros também fazem muito poucos gestos. Depois, é maquiagem. Há alguns dias, dei carta branca a um dos meus cozinheiros e ele fez um prato magnífico. No último momento o arruinou com um elemento a mais que pôs tudo a perder. A escola do gesto é fundamental, sempre temos a mão presente demais. É mais fácil acrescentar que se apagar por trás do seu prato”.
“COCO CHANEL dizia: ‘QUANDO VOCÊ sair DE CASA, olhe-se EM UM espelho, E TIRE UM acessório’…
QUANDO comecei, TENTAVA acrescentar CADA VEZ MAIS, HOJE procuro A ESSÊNCIA DO PRATO.”
ASSAF GRANIT
Espírito de ateliê
Conhecemos a história das brigadas culinárias – estabelecidas, e não inventadas, por Escoffier – e sua sinistra conotação tirânica. Aqui, especialmente com Alain Passard, nos é oferecida uma outra abordagem: “Nas minhas cozinhas, estamos mais em um ateliê de alta-costura do que numa brigada à moda antiga. Uma cozinha deve ser um ateliê. É preciso valorizar essa aproximação para destacar a precisão, a exatidão, as trocas de olhares, observo muito as mãos. Quando contrato alguém, sempre observo a maneira como ele vai pegar alguma coisa, seu jeito de pousála, de largar a flor de sal, a gente vê imediatamente a agilidade dos dedos, sua flexibilidade”.
Na outra margem, da parte do L’Astrance, percebemos uma sensibilidade idêntica: “É trabalho do chef de cozinha estabelecer um elo entre todas as funções, o chef dos molhos, o confeiteiro, etc., exatamente como em um ateliê de alta-costura onde várias funções e várias especialidades contribuem entre si, com o objetivo comum de oferecer o melhor ao cliente”. A excelência em um serviço de excelência, um certo gênio sensível para atingir o sublime: não há dúvidas de que esses mantras também ressoam nos mais belos ateliês de costura…
Fotos: ANNE-EMMANUELLE THION; PAULINE GOUABLIN; BERNHARD WINKELMANN; CLÉMENCE LOSFELD; RICHARD HAUGHTON; ILYA FOODSTORIES; JOANN PA.