L'Officiel Hommes: Raí em entrevista e editorial exclusivos
Os verdadeiros ídolos ultrapassam os limites da razão, cravam os seus nomes na história e tornam-se exemplos a serem seguidos, caso do ex-jogador de futebol Raí Oliveira que, mesmo longe dos campos há mais de duas décadas, ainda encanta as novas gerações com o seu legado, e firma-se como um dos grandes humanistas da atualidade.
Se essa matéria tivesse sido escrita no fim da década de 1980, certamente ela apresentaria um dos maiores craques do futebol brasileiro apenas como o “irmão caçula do doutor Sócrates”, o jogador genial, que ressignificou a profissão e elevou o status de ídolo a outros patamares. Porém, o filho mais novo do casal Raimundo e Guiomar, nascido em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, ganhou brilho próprio. Tornou-se um dos atletas mais admirados dentro e fora dos campos e, assim como fazem os deuses da bola – de Pelé a Tostão, de Leônidas da Silva a Garrincha –, cravou o seu nome até entre os torcedores de times rivais. Raí Souza Vieira de Oliveira, ou simplesmente Raí, no alto de seus quase 1,90 metro, não esconde a timidez. Fala baixo, quase pausadamente. Pensa nas palavras com cuidado, mas já faz tempo que dá a sua opinião em assuntos que a maioria prefere esconder a sete-chaves. Na política, por exemplo, ele declarou voto em Lula, escreveu artigo para o jornal francês “Le Monde”, em que citou o clássico livro “A Peste”, de Albert Camus, para escancarar o negacionismo diante da pandemia e o crescimento da extrema- -direita em solo nacional, e ainda fez o “L” no púlpito do evento “Bola de Ouro 2022”, quando foi encarregado de entregar a primeira edição do “Troféu Sócrates”, criado para prestigiar atletas envolvidos em causas sociais.
A trajetória nos gramados começou no Botafogo de Ribeirão Preto, quando ele tinha apenas 15 anos. “Sempre amei esportes. Jogava bets (também chamado de taco ou tacobol) e futebol na rua, no asfalto, na terra... Ficava com o pé todo ralado. Na escola, pratiquei basquete influenciado pelo meu irmão, Raimar, que era atleta da modalidade, e bem próximo a mim. Então comecei a ver que tinha facilidade com o futebol, fazia mais sucesso. Até que um amigo me convidou para fazer um teste no ‘Bota’, onde ele atuava. Eu fui, mas não queria que soubessem que eu era irmão do Sócrates para que isso não pesasse a meu favor. E fui aprovado!”, relembra. Entretanto, a vida de esportista não era exatamente o que ele planejava. Raí confessa que os seus sonhos fluíam numa direção distante da vida de boleiro. “Só queria sair para o mundo, de mochila nas costas. Queria ser hippie, estudar História, Filosofia e Publicidade.” Mas a gravidez precoce da namorada, fez com que ele mudasse os projetos. À época, os dois adolescentes – ele contava com 17 anos e ela com 16 anos – resolveram seguir juntos e encarar a responsabilidade que estava por vir. “Ao saber que seria pai, virei profissional da noite para o dia. Fui até o presidente do clube e falei: ‘Ou vocês me pagam um salário ou vou buscar um trabalho porque vou me casar’. Aí ele começou a rir e respondeu: ‘Passa lá, a gente vai dar um jeito, conversa com o diretor do amador’. E acabou que eles me pagaram dois salários mínimos! A partir daí passei a levar o futebol a sério. Então, penso que devo a minha carreira ao nascimento da minha filha.” Por sinal, a jornada de sucesso do camisa 10 renderia um filme. Do Botafogo-RP ele foi emprestado à Ponte Preta e cogitado pelo Corinthians. Talvez por alguma ironia do destino, foi o São Paulo que assinou contrato com Raí – e aqui cabe um adendo: Sócrates só não foi para o Tricolor Paulista graças a uma manobra maliciosa do então presidente corinthiano, Vicente Matheus, que se antecipou a Nunes Galvão [dirigente são-paulino] na compra do meio-campista. O troco pelo “golpe de sorte” converteu-se em azar para a legião de fiéis alvinegros, que sofreu de 1987 a 1993, com as apresentações majestosas de Raí – e eis que há espaço para outro comentário: Na primeira partida da final do Paulistão de 1991, Raí marcou três gols no Corinthians. Para a felicidade dos adversários, em 1993, o Paris Saint-Germain o levou para o outro lado do Atlântico. E por lá ele permaneceu até meados de 1998, tendo disputado 204 jogos e marcado 71 gols. Nesse período, ele esteve na Seleção Brasileira que ganhou o tetracampeonato, em 1994, nos Estados Unidos. Quando retornou para o time do coração, o “Terror do Morumbi” ainda ajudou a levantar a taça do Campeonato Paulista de 1998, em cima do Corinthians (sic). Inclinado em trabalhar com empreendedorismo social, enquanto recuperava-se de uma lesão, deu start à Fundação Gol de Letra ao lado do amigo Leonardo. Em 2017, depois de finalizar o “FA International Coaching License Course” e o “UEFA Executive Master for International Players”, ingressou no Conselho de Administração do São Paulo, sendo convidado a assumir o cargo de diretor executivo do departamento de futebol do clube. Aos 57 anos, o taurino com lua em escorpião e ascendente em leão, é pai de Emanuella, Raíssa e Noáh, e avô de Naíra.
Atualmente, ele vive entre São Paulo e Paris, onde cursa o mestrado em Políticas Públicas e é sócio do clube Paris PC. Por sinal, é em Paris que ele se sente em casa. Foi explorando os “arrondissements” da capital do amor – ou do humanismo, que foi pátria de Rousseau, Descartes, Simone de Beauvoir e Diderot –, que Raí encontrou-se consigo mesmo. Descolado, um tanto atrevido ao transitar a bordo de seu skate ou de sua bike numa manhã chuvosa a caminho da SciencesPo, onde faz a especialização, ele se sente livre. De volta ao Brasil, o foco é cuidar da instituição, que segue o objetivo ao atender 4.500 crianças e jovens por meio de programas que visam a sustentação de uma nova pedagogia provedora de conhecimento, cultura e cidadania. “A organização foi reconhecida pela Unesco como modelo no apoio às crianças em situação de vulnerabilidade social.” Com a agenda lotada de compromissos (foi difícil à beça e demorou alguns meses para finalmente tê-lo nestas páginas), no dia marcado para o ensaio, uma sexta-feira com gosto de missão cumprida, ele chegou de camiseta, jeans e chinelos. Estava abatido por conta de uma intoxicação alimentar repentina, mas, com o profissionalismo correndo pelas veias, driblou o desconforto, papeou com a equipe, permitiu-se sair da zona de conforto para entregar um editorial lindo e ainda recebeu dezenas de alunos do Liceu de Artes e Ofícios – local que cedeu um de seus galpões centenários para o shooting – com o sorriso estampado no rosto e a caneta para autógrafos em punho. Essa vibe positivista não compõe o manual de nenhuma celebridade instantânea, mas, sim, de alguém educado, que entende a grandeza que carrega e a magia que exerce sobre os demais. Foi num clima agradável, com a simplicidade genuína de um cara bacana, que rolaram as fotos. Fica aqui a lição de que a humildade e a gentileza são os pilares que mais edificam um ser humano, enquanto a arrogância poderia ser aferida a Cronos, que devora mitos em duas mordidelas. Como pontuou Camus, “A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a própria condição humana”.
L’OFFICIEL HOMMES Ser irmão de um dos maiores gênios do futebol mundial pesou? Qual foi a sua estratégia para fugir das comparações?
RAÍ OLIVEIRA Ser irmão do Sócrates foi um grande peso, eu pensei até em parar de jogar por causa disso, pois as comparações acabavam se transformando em pressão, e eu só tinha 19 anos. Ficava perguntando para os meus amigos se eles achavam que eu tinha talento para ser profissional. Entretanto, acredito que foram dois motivos que fizeram com que eu encarasse isso de forma positiva – um é a competitividade, para você ser atleta, você precisa gostar de competição, e eu amava isso; o outro é aprender a reverter comparações e pressão em motivação. A grande qualidade de um esportista é conseguir transformar as dificuldades e os momentos complicados da vida em metas que precisam ser superadas – e esse se tornou o meu objetivo: provar o meu valor, independentemente do meu irmão ser quem ele era.
L’OFF HOMMES Você vem de uma família intelectualizada e engajada em questões democráticas. Isso foi determinante para a sua atuação como empreendedor social?
RO É difícil dissociar os nossos projetos, atos, da nossa origem, então eu acredito que, sim, que a minha família teve uma influência grande, não só por ser intelectualizada ou politizada, mas principalmente pelas histórias dos meus pais, que são de origem muito pobre. O meu pai é de Fortaleza, a minha mãe é de Belém do Pará; ele era ativista, autodidata, um intelectual popular que buscou conhecimento como pôde. Deixou a escola com 13 ou 14 anos, e foi estudar por conta filosofia grega, história, psicologia, sobretudo, Freud e psiquiatria. Ele fazia questão de mostrar o lado da injustiça do País em que a gente vive, e isso nos deixou com espírito crítico sobre a nossa realidade. A minha mãe era educadora. Ele cursou Direito depois dos 50 anos, quando já tinha carreira como funcionário público estabelecida. Aí fez Direito, Economia, Ciências Contábeis – três universidades –, e ele dizia que talvez o Sócrates realizasse o sonho dele, de ser um deputado constituinte. O meu pai imaginava um mundo mais humano, mais justo, mais democrático, mais participativo. Com certeza isso influenciou a nossa visão e as nossas atitudes.
L’OFF HOMMES Pode nos contar como surgiu o projeto da Gol de Letra?
RO A Gol de Letra surgiu bem antes do seu lançamento oficial, que foi no dia 10 de dezembro de 1998, data em que se comemora os Direitos Humanos. Sempre tive vontade de participar de movimentos da sociedade civil para um País mais justo. Claro que pensava em montar um projeto, mas, ao mesmo tempo, logo que comecei, vi que fui influenciado por muita gente, que depois da redemocratização do País – que o meu irmão ajudou a fazer – veio o desafio de reorganizar 20 e tantos anos de ditadura, reorganizar a sociedade civil. A Gol de Letra é um projeto que tem como objetivo ser um modelo de construção de centros cultural-esportivo- -educativo em bairros pobres, que sejam fonte de uma revolução de oportunidades para as novas gerações e suas famílias, para que eles tenham espírito crítico e sejam cidadãos capazes e bem informados para transformarem as suas realidades. A origem da Gol de Letra também teve a influência da França, pois quando morei lá, percebi que a educação pública de qualidade era para todos, mesmo para a pessoa que trabalhava na minha casa, que a filha dela estudava na mesma escola que a minha filha, que tinham o mesmo médico, isso para mim é sinônimo de justiça social. E o que eu pensava ser uma utopia no Brasil, eu sei que é possível, então, tenho um longo caminho pela frente, mas ainda sonho em dar essa contribuição ao País.
L’OFF HOMMES O Brasil historicamente é um país com profunda desigualdade social – mas, nos últimos quatro anos, sob o comando de um governo sem compromisso humanitário, viu aumentar os episódios de ódio (político, de gênero, de classes...), o sucateamento das estruturas culturais e de educação, o desmatamento da Amazônia e o empobrecimento da população. Você foi um dos poucos atletas a marcar posicionamento contra a manutenção do ex-presidente. Qual é o preço por não se calar? O que você espera da atual gestão?
RO Sim, nós vivemos um momento trágico da nossa história nos últimos quatro anos, antes de janeiro de 2023. Trágico porque essa extrema-direita, esse governo perverso e desumano, teve muita falta de empatia e só trabalhou em prol da destruição. Acho que o que foi feito no meio ambiente reflete o que é esse pensamento de curto prazo, de busca de interesses econômicos para as minorias. O governo Bolsonaro atacou a democracia e quis impor a sua maneira destrutiva de ver o mundo pela força, através de fake news, e combatendo, como é comum, a cultura, a educação, a ciência e tudo o que é preciso para que a vida seja cultivada, alimentada. É importante planejar um ecossistema sem fronteiras, pensar em um projeto para a humanidade.
L’OFF HOMMES São poucos os jogadores de futebol que realmente alcançam o sucesso e a independência financeira. Dentro da “bolha futebolística” não são raros os casos de abuso e exploração sexual e de condições precárias de trabalho. O Flamengo, por exemplo, time que tem conquistado títulos importantes – e não padece de falta de verba –, viu dez de seus atletas da base morrerem num incêndio nas dependências do Ninho do Urubu. Até agora, nenhum culpado foi preso. Como mudar essa realidade e garantir a integridade e os sonhos de milhares de crianças e de jovens?
RO Esse é um caso triste e ao mesmo tempo simbólico. Trata-se de uma tragédia vista diante da morosidade da justiça brasileira. E isso mostra o quanto a formação dos atletas é deixada de lado. Boa parte dos jogadores vai morar nas dependências dos clubes na adolescência. Então, esses clubes passam a ter a responsabilidade não apenas na formação desses jovens, mas na segurança deles – e isso vai além da condição física. Melhores estruturas, condições psicológicas e acesso à educação são temas obrigatórios para as categorias de base. Todos nós sabemos que uma parte mínima dos profissionais ganhará bem, portanto, é imprescindível dar possibilidades àqueles que não alcançarão a independência financeira através do futebol.
L’OFF HOMMES Outro ponto dentro do futebol brasileiro ainda é o sexismo. As mulheres seguem completamente à parte em temas como salário, campeonatos e patrocínios. Qual é a sua visão sobre isso e o que imagina que possa ser feito para que exista equidade?
RO Todo preconceito deve ser combatido e imagino que para isso seja necessário impor medidas compensatórias. A FIFA, por exemplo, anunciou que vai igualar as premiações entre homens e mulheres. Vejo alguns avanços, mas ainda são pequenos e não imprimem mudanças significativas ao futebol feminino.
L’OFF HOMMES Dois casos de estupro chocaram os fãs de futebol: um envolvendo Robinho e o outro protagonizado supostamente por Daniel Alves – que esteve na Copa do Mundo de 2022. Wallace, do vôlei, também apareceu no noticiário ao incentivar o assassinato do presidente eleito. Isso mostra fragilidade de valores e total ausência de consciência social. Há alguma chance de transformar esse cenário? O que é preciso ser feito?
RO Vejo esses episódios como reflexo da sociedade em que vivemos. É importante ressaltar que o Robinho foi condenado na Itália, mas o Daniel Alves ainda está sendo investigado. O Wallace experimentou algumas punições e acredito que vai repensar as suas atitudes. É necessário ter exemplaridade, pois não dá para admitir determinadas condutas em nenhum segmento da sociedade. O abuso sexual acontece em todos os lugares do mundo e, no esporte, temos ciência, por exemplo, da vulnerabilidade das categorias de base. Por isso, a educação e o entendimento moral dessas ações devem ser discutidas e colocadas em prática.
L’OFF HOMMES Você tem uma vida entre Brasil e França. Conte-nos sobre os seus projetos atuais.
RO Tive uma vivência muito rica na França e isso superou muito as minhas expectativas. Rolou uma identidade generalizada com o país e com o povo, tanto que recebi o passaporte francês das mãos do próprio presidente da república (François Hollande). Hoje curso mestrado em Políticas Públicas em Paris, e penso que todo este aprendizado poderá ser aplicado por meio da Gol de Letra, em alguma cidade do Nordeste de até 15 mil habitantes, seguindo como diretrizes as integrações da cultura, da educação e do esporte como forma de promover os desenvolvimentos econômico e humano. Paralelo a isso, sou embaixador global do programa “Fit for Life”, da Unesco, e tenho um projeto de formação de atletas no Paris FC, time que está na segunda divisão, mas tem potencial para chegar à elite do campeonato francês.
L’OFF HOMMES Já pensou em dirigir algum clube de futebol ou ser treinador?
RO Quando encerrei a minha carreira, preferi me afastar do futebol e investir em outras áreas do conhecimento. Estudei Filosofia, Gestão Esportiva e Cinema. Eu gosto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e isso não funciona para um treinador de futebol, que só pode se dedicar ao esporte.
L’OFF HOMMES Na transição para o governo Lula, você esteve na equipe do Ministério do Esporte. Quais foram as suas contribuições para a pasta?
RO Tive a imensa honra de trabalhar na transição do governo, dando a minha contribuição sobre o que penso sobre o esporte, já que penso que ele pode ser aplicado em diferentes áreas da formação do cidadão – e deve ser visto como transversal entre saúde, educação, cultura, segurança. Enfim, o esporte tem enorme custo-benefício de curto prazo. Por isso, ele precisa ser visto como prioridade.
L’OFF HOMMES O que você espera do futuro?
RO O que vivemos nos últimos quatro anos é o que deve servir para saber o que não queremos para o futuro. É preciso resistir ao atraso e acreditar na evolução humana
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