Airon Martin, da Misci, em bate-papo exclusivo com a L'Officiel
Questão de imagem! Airon Martin é uma figura única da sua geração de criadores. Mato-grossense radicado em São Paulo, bate ponto oficialmente há meros dois anos na moda nacional e, com o projeto da sua Misci debaixo do braço, tem movimentado discussões calorosas e necessárias
A vivência além-moda — e além-Sudeste — ajuda a encarar o mercado com olhares menos viciados e sem pudores de análise. Enquanto constrói uma moda que revê códigos do Brasil-vida-real através de uma elegância global, o designer rebate comportamentos dos colegas e se esforça em se posicionar como um luxo possível “made in aqui mesmo”, sem viralatagem, a fim de competir com players internacionais. Para isso, conta com um bom olhar de produto e vontade (rara) de dar ouvidos ao chão de fábrica, revoltado com o abandono da indústria nacional. “As pessoas e o mercado não sabem o que o industrial passa; mesmo os estilistas não têm ideia”, reflete em conversa com L’OFFICIEL na Mateus Grou, rua em São Paulo que abriga a primeira loja da Misci e que se tornou novo point da moda nacional, muito por conta dele. E faz tudo isso sem tirar o olho do TikTok, que usa para distração pessoal mas onde vê a Misci conquistando espaço como marca-desejo dos influencers genzers.
Você protagonizou um boom com a Misci nesses últimos anos. Já chegou aonde queria?
Estou maior que eu esperava e não imaginava que seria tão rápido. A marca é meu trabalho de conclusão de curso, desde a abordagem estética do produto até o planejamento estratégico. Começou em 2018, com uma coleção bem pequena, vendendo em casa e pelo Instagram. Mas conside- ro mesmo esses dois anos, com loja, desfiles e e-commerce, como a história oficial. Tenho noção de onde saí, da família que vim e aonde estou chegando. Tenho noção desse espaço, o que me torna mais consciente para valorizar onde estou e entender o próximo passo.
Foi uma estruturação que aconteceu 100% em crise.
Sim, mas foi uma oportunidade valiosa para mim. Muitas fábricas a que eu não teria acesso em tempos normais, por ser uma produção muito pequena, estavam paradas. Então pude desenvolver a minha primeira bolsa no meio da pandemia. Fiquei dentro da fábrica, desenvolvendo produto e colocando para vender.
A concepção de todo o hype em torno das bolsas foi deliberada?
Eu sou designer de produto, então sempre construo de maneira tridimensional e isso facilita. A construção de uma bolsa está no mesmo lugar da construção de uma cadeira, algo que eu já fazia. Foi um sucesso assim que lancei a Nine, o nosso primeiro modelo. Não era a bolsa ideal, mas lancei no fim de 2020. Se esperasse o momento certo para lançar do jeito que eu gostaria, não teria a venda que tenho hoje. E imagine, hoje elas são o meu ganha-pão: 42% do faturamento da Misci vêm das bolsas. É um volume alto de produção para uma marca de quase dois anos de ambiente comercial.
É curioso pensar que, numa pandemia, com a sociedade mal funcionando, uma bolsa é um item praticamente inútil de consumo.
O acessório tem aquela sensação do apego. E a compra é muito mais fácil, pois não é preciso provar. Não importa se você engordou ou emagreceu na pandemia, a bolsa está lá para servir em qualquer corpo. É uma compra que tem menos erro. Há esse apego clássico para a mulher; sinto que, para o homem, também está se caminhando para isso.
Você mantém uma entrada boa no masculino com a Misci?
Comecei com um agênero, de modelagem masculina, que a mulher consome. Agora estamos com o público bem meio a meio, mas com tendência do feminino aumentando. Ao mesmo tempo, percebo que o homem que atinjo não consome muito produto nacional. Você vê pelo repost do Instagram, em que ele está usando Gucci, Hermès e Misci. Para mim isso é interessante, é alguém que já está interessado num produto bom. Assim como as nossas clientes: muitas vezes a bolsa da Misci é a primeira nacional para uma mulher que só comprava acessórios internacionais. Isso sim é furar a bolha.
Por que acha que a Misci já atinge esse público e outras marcas, mais antigas, não?
Sinto que as marcas nacionais estão muito presas ao discurso. Falta produto no geral, falta profundidade. Até por uma questão de acesso financeiro das empresas, para ter dinheiro para escolher um tecido caro, uma matéria-prima realmente boa. Não que eu tenha grana, não sou de família rica nem tenho investidores por trás. Mas consegui fábricas que querem estar comigo e me dão essa abertura, é uma questão de bom posicionamento.
Essa dificuldade das outras marcas não seria pela indústria nacional ter passado por esse processo de desmonte nas últimas décadas?
Está um caos, sim; mas não é só aqui. O Brasil já vinha se desindustrializando, cada dia mais. E esse governo só tem contribuído para essa desindustrialização. O Brasil faz tudo, mas não faz nada. Já chegamos a ser, se lembro direito, o sexto país mais industrializado. Hoje somos o décimo terceiro. E a pandemia foi mundial, então não dá para usar isso como desculpa.
Então o problema também não é só a falta de dinheiro das marcas... se é uma indústria que mal existe, como se faz para ter acesso? Como você faz?
Eu faço pois vou me metendo. Quero entender como é, saber por que aquele tear está parado. O que se pode fazer com ele? Eu questiono muito as coisas e a indústria. Comecei questionando os representantes até conseguir chegar ao dono da fábrica. É sobre ter profundidade e estimular. Falta autoestima para o industrial; potencialidade, ele tem. Falta maquinário, falta investimento, temos muita limitação para fazer produto, é claro. Mas aí a gente vai substituindo... se não dá para fazer isso, a gente faz aquilo. Vamos testando.
Sambando nas possibilidades.
Sim. Mas no geral sinto que falta, tanto para os estilistas quanto para as marcas, a vontade de experimentar, sair da zona de conforto. O fato de eu ser formado em design de produto me coloca num lugar que me faz pensar no processo. Eu não acredito muito na figura do estilista como futuro.
Para si ou em geral?
Em geral, ainda bem que não sou estilista. Nem quero ser. Sou designer, gosto de pensar no 360. Gosto de pensar no processo, na comunicação. Penso que o mercado mudou e essa figura do estilista ficou. Há muita coisa bonita que não é tão bem-feita e tem comunicação boa, assim como há coisas bonitas que não são pensadas a partir do processo. O designer tem que pensar no processo. No final das contas, como o Brasil não tem um cenário de marcas estabelecidas que poderiam dar espaço para novos diretores criativos, os estilistas vão abrindo suas marcas. Mas eles são estilistas, não diretores criativos. E aí tem esse monte de marcas, mas acabam se salvando duas, três, quatro.
Não acha que é preciso volume para surgir algo? Se você poda tudo desde o começo, nada acontece. Faz parte do processo.
Mas o volume também depende do incentivo do consumidor. O principal problema do Brasil é a falta de consciência do consumo.
E de dinheiro, não?
No mercado geral, com certeza. Mas não no mercado de produto de luxo. Não é falta de consumidor, é falta de consciência. Olha que loucura está o consumo do TikTok. No Brasil não é o estilista, o criador, que vira celebridade. A celebridade é o stylist. Tem noção do que é isso? Tudo porque os stylists colocam roupa gringa na gata, na famosa ou na influencer, que viraliza. Olha a inversão que isso é. Esse comportamento diz muito sobre a nossa sociedade.
Isso é falta de consciência ou falta de informação?
A informação se torna consciência e vice-versa. Acho um absurdo o que está acontecendo, com a abertura de mercado e a globalização, com o próprio TikTok. A celebridade brasileira usando a roupa que a outra famosa gringa vestiu na semana passada e o stylist ser aplaudido por isso. O stylist brasileiro, em sua maioria, é uma sacoleira de luxo. Eles não criam imagem de moda, eles repetem. Quando o Kanye West namorava a Julia Fox, por exemplo, nenhum stylist precisou trabalhar durante meses! Todos repetiam o que o Kanye fazia.
Mas esse não é um problema crônico nosso? Se nos anos 1920 copiávamos Paris, nos 1980 copiávamos o Japão, até virar um grande mix de tudo... nesse mesmo movimento?
Tudo, em todo lugar, é um grande mix de tudo. A globalização é boa por isso. Mas quando a pessoa repete um look idêntico, uma maquiagem igual... isso é muito errado. Essa figura deveria estar ali para criar uma imagem de moda, não ser uma sacoleira de luxo. A moda nacional hoje, com o trabalho dos stylists, é um delay do que a Bella Hadid usou anteontem.
A parte criativa da moda nacional, você diria, acaba se encaixando nesse movimento por necessidade?
Eu não vou nesse caminho, mas com certeza. As pessoas precisam vender, precisam comer. Se isso é o que o mercado está pedindo, a moda muda. E a gente depende dele. As marcas precisam criar narrativas. Para isso, precisamos dessas pessoas que criam imagens de grande alcance. Não sou eu. Eu crio imagem para um nicho. Quem cria imagem de alcance são os stylists. E, agindo desse jeito, eles são inúteis para a nossa economia, não valorizam o mercado.
Mas isso não é uma bolha?
Não acho, é muito grande. E impacta as vendas, seja na minha loja, seja nos comércios populares como o Bom Retiro. Eu venderia muito mais se a minha bolsa fosse igual à trend do momento, é claro. E a indústria acaba se adequando até naturalmente, pela necessidade. Por isso é ainda mais importante que se gerem imagens que representem a nossa realidade industrial, nossas possibilidades. Não é um problema a gata usar Balenciaga ou qualquer outra marca gringa. O problema é usar só a marca gringa — e o stylist acreditar que isso é normal. Não é normal.
Como se resolve isso? Como mostrar que há essa potencialidade mal aproveitada, qual é a questão?
Fazendo perceber o quanto isso é ridículo. Que não é interessante. Vou dar um exemplo prático. Quando uma celebridade nacional se torna uma personagem global, a imagem dela, que até então era um delay da Bella Hadid, não funciona mais. Com a internet, com a globalização da imagem, é muito mais interessante que as pessoas descubram marcas. Não falo só da Misci, pode ser uma marca do interior do Peru. E aí essa celebridade será aplaudida, pois estava linda e a roupa era legal. Se ela gera uma imagem nova com uma marca nova, é muito mais interessante do que ser um delay perante o mundo. A celebridade precisa entender isso, para que a demanda chegue ao stylist e, de algum jeito, o mercado amadureça e entre no jogo. Eu não quero cancelar ninguém, mas é preciso entender que não é esse o caminho. Assim como eu me pergunto o tempo inteiro se estou fazendo certo ou errado, as pessoas precisam pensar em outros caminhos. Criar uma imagem não é repetir o que já deu like.
É preguiça, falta de tempo ou pressa?
É o olhar para o mundo, acreditar que aquilo é muito legal e o melhor que dá é fazer igual, ser raso. O Brasil tem muito potencial — não só de criar uma moda nacional, mas de gerar imagens relevantes. A moda é muito importante para contar a história através da imagem. Que história contaremos, no final, se estamos só nos repetindo? Veja o que está acontecendo agora. Nós conseguiremos perder o medo da bandeira nacional, se a imagem do verde e amarelo viralizar. Até um ano atrás a gente olhava a bandeira e morria de pavor. Hoje, se essa moda pega... está aí, viralizando no TikTok. Eu enfrentei o meu medo ao criar uma imagem verde e amarela. Se isso acontece, o medo diminui. Por isso a imagem é tão importante.
O boné foi feito de propósito para viralizar?
Não, foi para ressignificar o uso das cores, queria rever esses códigos. Não sabia se ia colar ou não. Viralizar foi consequência.
Mas viralizou e entrou nessa onda de #brazilcore, que de repente influenciou um monte de gente a usar verde e amarelo como símbolo cool nas redes. O que acha disso?
Vejo esse monte de influencer usando as cores mas com a jaqueta da Bottega Veneta e a bolsa amarela da Miu Miu. Isso não faz sentido pra mim. O Brasil nasceu da exploração e continuar isso através de uma hashtag sem trazer nada para o país... não acho ético. Mais uma vez, é explorar o que temos de riqueza sem deixar nada aqui. Brazilcore de verdade é valorizar o povo brasileiro, é valorizar as marcas e a indústria nacional, consumir o que gera emprego e renda para o povo. É devolver para a sociedade brasileira o que tiramos dela o tempo o inteiro.
Passamos muito tempo, nos anos 2000, nessa discussão do que é moda brasileira, do que é característico nosso...
A nossa moda não tem cara, o Brasil é continental. O Sul é completamente diferente do Nordeste, e tudo bem.
Certo, mas a partir do momento que o mercado está globalizado, os shoppings têm as principais marcas do mercado de luxo internacional, a internet deixa você comprar o que quiser, independentemente do nível financeiro... é onde estamos hoje. E o consumidor jovem, em quem você causa desejo, sabe o que está acontecendo em qualquer lugar. Como uma marca brasileira se sobrepõe nesse cenário?
Eu queria muito que o brasileiro valorizasse o meu produto como o gringo valoriza. Já vendo muito bem para fora. Pois é um produto diferente, com design diferente, ainda que dentro de uma narrativa brasileira. A Misci traz todos os benchmarks dos níveis de acabamento das marcas internacionais, dos processos tradicionais de alfaiataria, e constrói isso com os nossos tecidos, com um desenho que acho relevante pro momento.
Mas como sobressair nesse mercado, é essa a questão.
Entendendo a sociedade. A Misci é a minha leitura da sociedade. Olho para as referências do meu convívio. Olho para a Ucrânia, para o consumo nos EUA, para os processos da Hermès com couro, pesquiso e olho tudo. E isso acaba influenciando na minha criação, de alguma forma. Todos passamos pelas mesmas coisas em todo lugar. Cada dia que passa, a moda brasileira será mais francesa, a francesa será mais africana. Sempre se disse que o Brasil olha demais para a moda parisiense. Eu diria que eles olham mais ainda para a gente, hoje. O jogo inverteu. O melhor designer é aquele que lê a sociedade e entrega um produto o mais rápido possível.
E você consegue fazer isso?
Às vezes, sim, às vezes não. Julgo que faço, para um certo nicho. Materializo esse olhar através dessa abordagem que é a Misci. E, com isso, consigo atingir um público, uma certa parcela da sociedade, que se identifica com os meus processos.
Um ano e meio atrás, você me disse que queria era fazer design — e quem diria se você faz moda seriam as pessoas, no futuro. Esse momento já chegou?
Eu não sei receber elogios, eu não ouço. Sou assim, exigente demais comigo mesmo. Se você elogia algo, posso te rebater apontando onde esse produto pode melhorar mil vezes. É horrível para mim, mas é bom para a moda nacional (risos). Não estou pronto, sigo amadurecendo o tempo inteiro. Já morro de vergonha do meu primeiro desfile. Gosto da insatisfação, ela me coloca em movimento. Sou uma crise desde que nasci, aceitei e aprendi a viver com ela. Por isso sempre quero fazer diferente. Sou do contra, sempre fui.
Pensando na Misci dentro desse mercado global, em que todo mundo olha para todo mundo: acredita que chama atenção por entregar uma imagem diferente de Brasil, que ainda não tinha sido exibida?
É uma construção muito pautada nas minhas vivências, de onde eu venho. Tenho muita vontade de criar uma identidade interessante e de falar de uma parte do país de que não falavam, fora do eixo Rio-São Paulo. Sou filho do interior do Brasil. Minha avó é do Ceará, minha mãe nasceu em Rondônia e eu vim do Mato Grosso. Eu não lembro de personagens de moda que saíram desse lugar e criaram uma imagem nacionalmente relevante. Ao mesmo tempo, estou no momento de redescobrir. Vejo que preciso criar imagens novas e ainda não sei para onde ir.
Mas o seu imaginário já vende uma ideia de Brasil menos caricata.
Menos óbvia, sim. É o meu Brasil, a cor da loja da Misci é a cor do chão em que pisei durante minha infância inteira. São cores que considero nossas, mas as pessoas associam a outras coisas, seja a Marrakech ou ao Nordeste, e se sentem confortáveis.
Faz sentido ser uma marca de luxo brasileira hoje em dia?
Em comparação com fora, eu não sou luxo, acabo me encaixando na faixa de produtos premium. Mas no Brasil a Misci acaba virando luxo, pela média do poder aquisitivo versus nossos preços. O que mais me deixa tranquilo é que tenho uma cadeia bem remunerada. O luxo deixa isso acontecer. Me sinto muito confortável que, através desse mercado, posso entregar empregos relevantes e que dão uma vida digna a essas pessoas. A moda barata não entrega isso.
Créditos:
FOTOS: Gabryel Sampaio
MODELO: Dani Pontes (Way Model).
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Ana Luiza Neves.
BEAUTY: Julia Bachesque.
TRATAMENTO DE IMAGEM: Quel Tâma