Giuliana Romano abre sua Casa/Ateliê para o mundo
Retornando a suas origens Giuliana Romano abre sua casa para suas vivências criativas, em uma nova perspectiva minimalista
Giuliana Romano é o tipo de pessoa que gosta do que faz e, atualmente, faz o que gosta. Um dos grandes nomes surgidos na moda brasileira em meados dos anos 2000, importada de carreira no mercado financeiro, construiu sua estrela (e uma cartela de fãs) com olho afiado na alfaiataria, feita de maneira desprendida e sem afetações ou effortless, como ela gosta de pontuar. Hoje, quase cinco anos depois de fechar a marca que levava seu nome (com uma ligeira correção dada pela numerologia para garantir proteção) e passar pelo cargo de diretora criativa de um grande conglomerado de moda, reconstruiu suas bases com a Giu (agora, sem ajudas esotéricas).
Começou fazendo máscaras no auge da pandemia e, com a volta da realidade, reapareceu produzindo suas roupas em coleções cápsulas de peças numeradas, baseadas em estoques de tecidos antigos que garimpa por aí. Tudo pensado e vendido em casa, exatamente como era no começo de carreira. Foi na sala que Giu recebeu L’Officiel para uma conversa sobre nova fase, novas vontades e uma nova vida para a moda.
L’Officiel: Tanta gente briga para manter nome e sobrenome conhecidos, você voltou apenas com essa abreviação na etiqueta. Tem alguma razão?
Giuliana Romano: É, apenas Giu. Não quero ser rotulada, não quero ter nome, ser essa personagem. Gosto de ficar no backstage. E Giu tem esse mistério: pode ser um homem, pode ser uma mulher. Hoje em dia, não é sobre todos? É “a Giu” ou ”o Giu”, não preciso me mostrar. E gosto do lado simples da coisa. Por isso, Giu: porque pode ser qualquer coisa. A moda é arrogante, um mundo seletivo. Eu não acredito mais em nada disso.
L’O: Você acreditava?
GR: Não, sempre soube que era um ambiente hostil. Não é relaxado, né? Zero à vontade. Isso já me incomodava, hoje ainda mais.
L’O: Essa nova fase tem a ver com o seu começo, não?
GR: Comecei a Giuliana Romanno aqui mesmo, em casa, com um modelista e uma costureira. Cortava a peça piloto, fazia tudo, bem estudante de moda. Mas já com aquele olhar de alfaiataria, de camisaria, porque vim do mercado financeiro antes de cair na moda. Então ficava pirando na camisaria de algodão. E já comprava tecido antigo. Era um acervo guardado da década de 1970, dois andares cheios de panos. Eu ia feliz, passava o dia fazendo composição, juntando padronagens, misturando xadrezes e listras. Agora, a Giu tem dois anos, foi esse momento de retorno. Voltei a usar estoque parado, de novo aqui em casa. É também um jeito de pensar sobre transparência de relações, a proximidade. Cuido de tudo. Vou à casa da costureira, ela passa o café, conheço a sobrinha , falamos além do trabalho. É sobre relações mais íntimas e verdadeiras. É uma bolha que criei, mas é uma boa bolha. Isso é algo que falta muito na moda, essas relações genuínas de verdade, de energias mais próximas.
L’O: Na época da Giuliana Romanno, não era assim?
GR: Como qualquer mercado, pode ser complicado. Eu era mais ingênua, achava que era para ser tudo lindo. Tinha um guru que me acompanhava, estava sempre ali cuidando da energia nos desfiles, nas entrevistas. Hoje, consigo me proteger, saber o quanto posso me doar. Adorei pensar que a Giu seria aqui, de volta às raízes.
L’O: Como a Giu se encaixa na moda?
GR: Hoje em dia, quem dita a moda são os acessórios. A roupa é cada vez menos. Estou com esta roupa hoje, conversando com você na sala de casa num sábado à tarde, mas fui com esta mesma peça, semana passada, em uma festa mais chique. Sigo confortável, o que muda é o cinto, o brinco, o sapato. Adoraria fazer uma linha de acessórios, é algo que está no meu radar. E uma collab de beleza, quem sabe? É meu foco para 2023. Não quero ficar só no mundinho da Giu.
L’O: Como assim?
GR: Não é só sobre roupa, entende? Quero trocar experiências. A Giu é um braço do meu trabalho. Mas tenho feito consultorias, assinei essa collab agora com a Lafort. Quero fazer mais, levar o olhar, a experiência, ajudar a construir a imagem. Gosto de pensar sobre essa disrupção, o novo. Quando comecei a Giu, ela era phygital. Até isso já está antigo. O futuro é sobre colaboração, ainda mais do que hoje. Olha todas as marcas colaborando, do luxo à Zara. Você não é ninguém sozinho. Tenho a experiência da vida, de empreendedora. Tenho a maturidade com o espírito jovem. Mas sozinha? Esquece.
L’O: Esse espírito jovem reflete na criação?
GR: Reflete na maneira de montar o business. A roupa é effortless, despretensiosa. É para conseguir se ver dormindo, acordando e saindo à noite com a mesma peça. É o que eu mesma quero usar, o que sinto falta por aí. E as camisas, que são algo que amo e uso, então sempre tem na coleção.
L’O: Como era seu guarda-roupa antes de se tornar estilista?
GR: Eu trabalhava em banco, com mercado de capitais. Isso era fim dos anos 1990, mas já tinha um pé na moda. Era um ambiente super-hostil, machista — mas me montava para trabalhar, era cada dia um look. Imagina, chegar ao banco com calça de moletom, camisa, escarpins de salto alto e broches imensos na lapela do blazer, o cabelo cheio de fivelas. Um dia chamaram a minha atenção por isso. Fui até o presidente do banco e disse: “quando pararem de usar terninho de poliéster como regra, a gente pode conversar”. O assunto acabou aí. Tempos depois ele veio elogiar o meu trabalho.
L’O: Você sempre foi workaholic?
GR: Super, trabalho que nem uma louca. Abri mão de muita coisa na vida. Sou virginiana, focada, e fui nadadora e jogadora de polo aquático. Era atleta a sério, fui recordista em São Paulo durante 13 anos. Treinei nos EUA para tentar índice olímpico de natação. Aos 14, nadava 18 mil metros. Lembro desse técnico argentino que ficava na borda da piscina e só me deixava sair da água depois que atingisse o tempo que ele queria. Acho que a minha disciplina veio muito disso. E sou economista, um tipo de cabeça que falta na moda. Já não é fácil empreender no Brasil. Se você não tem alguém para cuidar do business, do financeiro, é impossível seguir com uma marca. Eu tive por muitos anos a Fabiana Delfim, que era maravilhosa. Ela me dava esse conforto de só pensar na criação. Hoje, lido com planilha, sirvo o café, pago fornecedor, vou até o Bom Retiro comprar tecido, visito a costureira.
L’O: A roupa está mais fácil, de certa forma?
GR: É uma casualização do meu trabalho, sim. Mas eu sempre tive esse workwear da alfaiataria, e o que é esse new workwear? O que a advogada, a publicitária, querem? É um algodão confortável, sem aqueles forros horrorosos de poliéster, de acetato. Nem quero mais forro nenhum na verdade, quem quer? Estava falando ontem à noite com uma advogada, os colegas dela só vestem terno pra ir ao fórum. Não se usa mais. É austero, antigo. O chefe não usa mais terno, nem a secretária usa mais aquele tailleur de sempre: ela vai com uma camisa, a blusa com amarração, uma calça. Não se vê mais o blazer. Eu mesma uso como statement, para sair à noite. Não é mais aquela power woman de antigamente, a mulher precisando se provar no ambiente masculino. Todo mundo está mais real.
L’O: É menos sobre roupa e mais sobre a vida?
GR: Sim, meu desafio agora é tentar traduzir essa informação do estilo de vida na roupa effortless, de tecido natural, confortável. Claro que, fora da bolha, esse movimento ainda não alcançou. Eu sou pequena, não consigo perpetuar essa informação para todo mundo. Mas a minha cliente, se ela precisa levar algo para a sogra, já não vai mais comprar uma roupa de crepe, a blusa de poliéster estampado. Daí a comunicação vai se abrindo. E eu atinjo da menina de 14 anos, que gosta do shortinho, da malharia, até as 50+. É democrático, é fácil.
L’O: Acha que consegue atingir preços democráticos?
GR: Sim, foi um pilar. Eu tive uma análise de marca no começo, poderia aumentar o preço, pela qualidade que a Giu entrega, e não quis. É o preço justo para uma roupa com acabamento bom, tecido bom. Mais barato que isso, só se usar poliéster, coisa que nunca gostei. Usava muito crepe patu, hoje em dia tenho pavor. Não dá, não cabe mais na vida.
L’O: Em compensação, a Shein abriu, em novembro, uma loja em São Paulo, com multidão e briga na porta.
GR: Aí é toda uma cadeia que eu não estou de acordo, ninguém deveria estar. É tudo de poliéster, você não sabe de onde vem nem quanto custou. Fora da bolha da moda as pessoas ainda consomem isso, é claro. Querem a cópia rápida da Gucci, de não sei mais quem, a roupa para o look do Instagram. Mas acho que isso vai mudar. Eu vejo as jovens conscientes, que estão transfor- mando peças da mãe, comprando em brechó, alugando roupas.
“ACHO QUE trabalhar SEM ostentar palavras PARA CHAMAR ATENÇÃO TAMBÉM É ser sustentável. ESTOU FAZENDO, AQUI, E ACABOU.”
L’O: A ideia é seguir com a Giu em casa?
GR: Com certeza, não penso em ter loja. Não tenho nem produção nem energia mais para isso, lidar com o todo o movimento que uma loja exigiria. Aqui eu consigo tocar com muito mais facilidade. O grande vilão do mercado de moda é o fluxo de caixa e o capital de giro. Na Giu, faço questão de pagar todos os fornecedores à vista. Isso é algo raro no mercado, você sabe. E aos menores, muita gente que perdeu emprego por conta da pandemia, ainda dou uma porcentagem adiantada. Eu realmente reduzi tudo, é um esquema bem petit. Sigo com minhas costureiras, que sempre trabalharam para mim, e agora estão em casa. Minha costureira mais jovem tem 42 anos. É um mercado em extinção, pela falta de estrutura, de profissionalização. E olha que a moda é o segundo maior empregador do Brasil. Eu quero muito achar um caminho de fazer uma capacitação real, de instruir e ensinar para o mercado de hoje.
L’O: Você já teve uma marca de sucesso, depois entrou no mundo dos grandes conglomerados quando cuidou da Le Lis Blanc e agora está petit, como disse. Enxerga que esse trabalho é o possível no mercado de agora?
GR: Esse nosso mercado não tem um meio termo. Ou você é pequeno, e vai comendo fatias desse bolo, ou você é gigante e beira o monopólio. Você não vê marcas médias realmente performando. Eu já estive no grande e não quero esse ambiente hostil, essa falta de verdade. A Giu é onde eu quero estar. Nas gigantes, ambições comerciais ofuscam liberdades criativas. Hoje em dia, trabalhando numa marcona, cria-se em cima de números. A cliente é praticamente uma cocriadora desse produto. Principalmente por causa do digital, é tudo data driven, sobre análises. Cada vez sabem mais fundo sobre você, onde você foi, quem você encontra, do que você gosta. E aí o mercado, ou vai muito para isso ou acaba focando no pequeno, no autoral, mais calmo.
L’O: De onde veio essa collab de tricôs?
GR: Quando comecei a Giuliana Romanno, queria fazer tricô e fui atrás do melhor fornecedor possível. Imagina, era dona de uma marca minúscula, peguei um avião e desci em Curitiba para ir à fábrica da Lafort. Nossa relação vem dessa época. Agora, entrei no acervo deles, peguei todos os estoques de fio e me joguei no desafio de fazer uma coleção de tricô do zero. É algo que eu nunca tinha feito: sentar no computador com o operador e ajudar a pensar na programação. Fiquei superfeliz de colocar a mão na massa. Eu gosto de chão de fábrica, de ficar no desenvolvimento. Foi na raça. Primeiro vimos todos os fios parados, aí foi rebolar para montar uma cartela que fizesse sentido. Misturar fio com fio, ver onde dão as nervuras. Consegui fazer tudo em dez dias, nem saía para almoçar. Ficava na fábrica o tempo inteiro. Além do desafio de fazer uma coleção de alto-verão em tricô — se fosse no inverno, seria muito mais fácil.
L’O: Também é tudo com matéria-prima antiga, então?
GR: Sim, fios que eles tinham por lá e não usavam, fitas de tricô, mil raions. Desenhei um jacquard belíssimo, nervuras com diversos tipos de fios. E tem camisaria também, que não posso deixar de fazer. Achei no estoque 40 metros de tecido e construímos uma parte da coleção com essas camisas oversized para compor com as outras, que são multifuncionais — saia que pode usar como vestido sem alça, tem uma capona incrível. Isso é algo que acredito, há mil maneiras de usar uma roupa; amarrando aqui e ali, brincando sozinha no espelho. E ficou uma roupa mais jovem, bem jovenzinha. E ali não é só pensar na peça, né? Você está criando os tecidos, as texturas. Tem que sentir o peso, entender se funciona. E, posso ser sincera? Queria fazer só tricô, hoje em dia. Acho a coisa mais chique do mundo.
L’O: É curioso que você tem esse trabalho com deadstock, algo que já fazia no começo, mas não usa a palavra sustentabilidade em momento nenhum para descrever suas roupas.
GR: Mas você acha que é preciso sempre fazer discurso?
L’O: Não necessariamente, mas você consegue atingir vários pilares — usar matéria prima parada, pagar as pessoas do jeito certo, se preocupar com esses fatores. Já é mais do que muita gente do mercado.
GR: Está todo mundo olhando pra isso, é verdade. Mas é tudo muito fake, por obrigação, e aí é só discurso. Fica essa conversa que começa a ser chata, os adjetivos todos. Eu não quero ser um adjetivo que todo mundo fala. Melhor ser natural do que proposital. É a base do effortless que eu tanto falo. O brasileiro em geral não é despretensioso, todos querem mostrar grife. É show-off, ostentação. Estou fora, nunca fui sobre isso. Acho que trabalhar sem ostentar palavras para chamar atenção também é ser sustentável. Estou fazendo, aqui, e acabou. Quem me conhece, sabe quem eu sou; e a Giu é sobre isso. Quem me dera ser um Margiela e não soubessem nem meu rosto hoje em dia. Eu amo essa ideia, seria muito essa pessoa. Sei que o personagem ajuda mas, hoje, eu fujo muito.
L’O: Como é essa sua caça de tecido? Quais são os critérios?
GR É resto de fábrica, sempre. Desde matéria prima de anos atrás até sobra de tecido, 20 ou 30 metros de alguma marca, vou lá e compro. O primeiro lugar que comprei foi no acervo da Natalie Klein, da NK, bem no meio da pandemia. O critério é meu olhar. E tem que ser de fibras naturais, por favor. Para mim, hoje em dia, roupa é sobre toque. Quero chegar do trabalho e deitar no sofá. Ninguém vai fazer isso com uma calça de crepe.
L’O: Você é uma pessoa de guardar roupas de acervo?
GR: Sou, mas na pandemia rolou um desapego e vendi 300 peças em dois dias. Da época da Giuliana Romanno, mantenho muita coisa guardada apenas como base de modelagem. Mas não uso mais couro, tenho pavor de crepe. Uso no máximo blazers e alguns shortinhos. Hoje em dia eu sou bem mais vintage, quero ter a peça única. Até aqui, na Giu, as peças são numeradas, tem uma exclusividade. Como uso estoque parado, as peças são poucas — depende muito do que consigo achar. O grande desafio é conseguir montar cápsulas e histórias. Não acredito mais em coleção, em datas, calendário, nada disso. Nem em clima, inverno, verão. Na semana passada, estávamos usando moletom! Não dá para uma marca pequena se deixar guiar por essas divisões de antigamente.
L’O: Por falar em antigamente: você deixou muita gente órfã dos seus desfiles. Tem essa gana de voltar à passarela?
GR: Não agora... não tenho saudade e nem acho que faz sentido para a Giu como é hoje. Mas com certeza, para outros desafios. Curto muito o rolê, a energia, a montagem, a loucura toda. Essa onda de pesquisar. Fico até arrepiada.