Jean Paul Gaultier passeia entre suas memórias e referências
Desenhando desde looks para uma ursinha de pelúcia até peças icônicas para Madonna, Jean Paul Gaultier passeia entre suas memórias e referências na França
Cinéfilo por hobby e couturier por profissão, desenhando desde looks para uma ursinha de pelúcia até peças icônicas para Madonna e filmes de Almodóvar, Jean Paul Gaultier passeia entre suas memórias e referências na França. Confira!
Jean Paul Gaultier é um daqueles nomes associados imediatamente à sensualidade e à irreverência – o que lhe rendeu o título de l’enfant terrible da moda. De fato, essa até pode ser a identidade visual de sua marca, mas basta passar poucos minutos em sua presença que a gente logo percebe que, por trás da fachada, ele é uma pessoa de sorriso fácil, pouco filtro, sem a menor preocupação de misturar o francês e o inglês, seja em uma conversa casual, seja na frente de um grande público – tive o privilégio de participar de ambas as situações durante a semana de inauguração da exposição CinéMode, em Lacoste, na França.
O pequeno vilarejo na Provence francesa pode parecer remoto, mas tem uma história digna de filme que, no melhor estilo haute-couture, se costura perfeitamente com a do estilista. Foi lá onde viveu o infame Marquês de Sade, cujas obras literárias eróticas com tendências à dor e violência no século 19 inspiraram o termo “sadomasoquismo”. Grande parte da cidade ficou em ruínas após a Revolução Francesa e foi eventualmente vendida para dois grandes investidores: o estilista Pierre Cardin, com quem Gaultier iniciou sua carreira, e a universidade americana SCAD, dedicada a carreiras criativas. Hoje, Lacoste é uma mistura de centro cultural e fashion e um campus universitário. Por isso, é a locação apropriada para expor a junção de vários universos.
A CinéMode explora o cinema como uma constante fonte de inspiração para as coleções de Gaultier, bem como o seu trabalho como figurinista. Nossa entrevista foi caminhando entre as fotografias, pôsteres, roupas inspiradas em filmes e os figurinos selecionados a dedo na Cinémathèque Française, cocuradora da exposição. Logo de cara, o estilista afirma que foi por meio do cinema que descobriu o mundo da moda, quando era criança. O filme Falablas, de Jacques Becker, uma produção de 1940 que acompanha a relação de um estilista e sua musa, fez com que encontrasse a sua vocação. A partir daí, começou a brincar de criar roupas para a sua ursinha de pelúcia, Nana, a primeira usuária do sutiã pontudo. “Eu não sabia como fazer o formato de um peito, então fiz um cone”, brinca o estilista. A icônica peça está exposta logo na entrada, junto às suas tesouras, em contraponto com diversos espartilhos e lingeries e a fotografia Mainbocher Corset, de Horst P. Horst (1939).
Mesmo que tenha sido eternizado por Madonna nos anos 1980, o espartilho já “era uma peça da minha coleção”, conta Gaultier. A ideia veio dos sutiãs dos anos 1950, que eram mais pontudos. “Apenas exagerei esse formato, para que as mulheres pudessem sair só com ele, ou colocando alguma jaqueta, se quisessem.” Ele observou, na época, que aquela geração parecia não querer esconder o sutiã. De fato, muitos descrevem a peça como erótica ou até pornográfica, mas o designer explica que “não era para provocar os homens, mas uma decisão de estilo. É sexy, é bonita, mas também o formato é uma proteção”.
Outro item que também foi tema de controvérsias quando lançado, em 1983, foi a camiseta listrada com as costas abertas imitando uma tatuagem da coleção L’Homme-Objet, inspirada no filme Querelle, de Rainer Werner Fassbinder (1982). Foi a introdução do visual marinheiro, que se tornou quase marca registrada de Gaultier. “Era a primeira vez que iria fazer uma coleção para homens, e queria colocá-los como objeto, porque eles também podem ser sedutores. Então escolhi fazer essa objetivação nas costas”, lembra. As tatuagens falsas dão a impressão de uma “nudez sem estar nu. É uma coisa quase puritana. Extrapolar mas sem cometer um crime”. De qualquer forma, o estilista ressalta: “Tenho muito orgulho das transgressões que gerei”.
Mesmo no cinema, Gaultier aproveitou a representação da nudez, como no figurino de Gael Garcia Bernal em Má Educação, de Pedro Almodóvar (2004). O vestido, inicialmente desenhado como um jumpsuit, imita em bordado um corpo feminino nu. “É provocador, mas ao mesmo tempo não é grosseiro, porque está escondido em um contexto de um belo vestido longo de lantejoulas. É grandioso, teatral, mas leve na provocação.” O couturier fez três filmes com Almodóvar e ficou impressionado com o fato de como ele era específico na sua visão. “É diferente para mim. Sou mais espontâneo com as minhas coleções. Acredito que, quando acontece algum erro, pode acabar se tornando algo bom, algo inesperado. Ele já é mais estrito com o seu filme. São como filhos: o meu, gosto de deixar mais livre e ver como vai crescer”, reflete.
Trabalhar com grandes diretores é “ajudar a contar uma história que não é sua”, explica o designer. “É uma colaboração que enriquece a minha mente. Você desenvolve uma imaginação que tem que funcionar com o resto. O visual de como tudo se encaixa é importante. Adoro a atmosfera. É ótimo, porque também me faz escapar um pouco da moda.” Ser um outsider de jeito despojado lhe rendeu momentos memoráveis, como na produção de Prince no filme O Quinto Elemento, de Luc Besson (1997). Por se tratar de uma história futurista, desenhou um visual provocador no qual imitaria uma “anquinha” – aquela estrutura das saias do século 19. Quando foi explicar a roupa para o cantor, quis americanizar a palavra francesa, que acabou soando como forte xingamento, a ponto de chocar Prince. No fim, foi tudo superado, e o look nem foi usado.
“NA moda, HÁ A PREOCUPAÇÃO DE A ROUPA FUNCIONAR NA vida real. NO filme, ELA DEVE FUNCIONAR PARA A cena, NÃO IMPORTA O CONFORTO OU COMO A ROUPA SE MOVE.”
No entanto, o que mais gosta de trabalhar com figurino é que “você tem que ser ainda mais criativo. Na moda, há a preocupação de a roupa funcionar na vida real. No filme, ela deve funcionar para a cena, não importa o conforto ou como a roupa se move”, explica. Isso é muito bem ilustrado na exposição com as roupas de metal de Qui Êtes-Vous, Polly Magoo (1966), dirigi do por William Klein, que fazem sátira ao mundo da moda. Juntamente com as fotos de Jane Fonda em Barbarella, armaduras medievais cinematográficas e vestido metálico de Pierre Cardin fazem o link para uma de suas peças favoritas da última coleção que fez como diretor criativo da Jean Paul Gaultier: um espartilho similar ao de Madonna, só que totalmente de metal.
De fato, a lista de filmes que o inspiraram é digna de um cinéfilo de altíssimo nível. Gualtier assiste a tudo: James Bond, Mad Max, clássicos das décadas de 1930 e 1940 e até pequenas produções independentes internacionais. Mas, quando o assunto é fashion-film, “não indico Prêt-à-Porter. Não foi muito bom para mim”, brinca, sobre sua breve aparição. Ao contrário dos filmes que mostravam o glamour da indústria, que um dia já foram seus favoritos, hoje se interessa por histórias mais pessoais, como Trama Fantasma (2017), de Paul Thomas Anderson. “Não é sobre moda, é o trabalho. É alguém que fez da sua paixão a sua profissão. Há o romance, claro, mas também mostra o íntimo de alguém que ama fazer roupas. É um filme fantástico”, conclui. A exposição CinéMode ficará aberta até setembro deste ano.